Filme de Almodóvar

Sentado, diante da tela que fala. As imagens aparecem, junto com o sono que me invade. O bombom de avelã, que ainda sinto o gosto. A dor de cabeça pelo álcool do dia anterior. O filme de Almodóvar passando. Sempre tem uma mulher. Não irei criticar isso, apesar de previsível. Essa dramatização me cheira a novela. Fecho os olhos e me deparo com outros mundos, misturados. Consigo ver a fogueira enorme, que a cada ano acresce um metro, desejando beirar o céu, esquentando o rabo dos anjos, queimando a barba de deus. O pânico da mulher, que teme pelo marido, próximo a grande pira. Os cabelos que voam com o vento forte que parece vir do Leste. A chuva cai forte, sem apagar a chama, fazendo com que veículos parem, pela falta de visibilidade. Uma água marrom escorre das margens da rodovia. O céu, escuro, feito de fumaça e cinzas da fogueira, soltando raios e despejando água, como se tivesse enfurecidos com o templo de fogo que afrontara esse contemporâneo Olimpo.

Os túneis continuam lá, levando pessoas para uma ou outra dimensão. As árvores, povoadas por formigas gigantes e de quantidade infinita, que percorrem as pernas de quem se aproxima. As formigas percorrem a selva de pelos das pernas másculos daquele sujeito, encostado próximo ao corredor, escorado no corrimão, que lê Klossowski. As vozes próximas, de homens, ou melhor, de falos falantes que renegam a masculinidade, se concentrando nas secreções. A mulher magra, perdendo os sentidos, com olhar perdido. Próximo, a invasão de uma penitenciária mirim, onde estudantes são trancafiados e os carcereiros, conduzem com mão de ferro o sistema. Mas o resgate chega. Com marginais armados. Renegados, que enfrentam as leis que nunca foram direcionadas a eles. O ronco do motor, bombeando combustível, como um coração pronto a bombear sangue, só que o mecanismo é mais humano, já que o humano está cada vez mais mecânico.

Os carros largam, em alta velocidade. Um apenas chega ao destino. Abrindo as portas de uma galeria, com títulos expostos, para que a clientela se sirva e possa se divertir com o entretenimento insosso. As filas empurrando seus carrinhos, repletos de itens estranhos. O rosto da criatura que atende, com expressão dura e fala grossa. Os números são o que importa, por isso as pessoas passam a ser quantificadas. Recebemos nossa identificação numérica, feito as placas dos veículos. Os pelos das barbas se desprendendo, conforme os cabelos do couro capilar, que fazem relembrar que o tempo só tende a passar. A criança, ainda que tenha recebido a explicação, que a morte chega quando se envelhece, não entende porque uns envelhecem mais depressa, já que morrem alguns, aparentemente tão jovens. Na parede, pendurada, a tela com a flor gigante, que espera quem irá conseguir fertilizá-la. Imagens mortas. Imaginação limitada. O som alto agride, porque não é música escutada, mas poder sonoro executado.

A fogueira continua a crescer. O desejo dos antigos Titãs, de chegar aos Céus. Misturado ao fogo de Prometeu. É a eterna vontade de destruir os deuses. Agora é mais fácil. Já matamos os antigos, agora só nos resta um. Não. Nem esse mesmo resta. Já matamos também esse último, não nos resta mais nem uma divindade. Nosso desejo, é fugir. Fugir de nós mesmos. Deixar esse mundo. Chegar ao Espaço, flutuando, feito asteroides de carne sem oxigênio, chocando com outros fragmentos espaciais, reduzidos a pó cósmico. Cinzas de uma fogueira maior, que incinera tudo, inclusive o Sol. Apontados feito constelações, misturados em estrelas, só que sem brilho. Um drama de Almodóvar. Sim. Existirá uma mulher. Um drama. O drama. Rama que se espalha. Todos reunidos em uma grande dispersão. Sem início e nem fim. Suspensos. Soprados pelo vácuo em um chocar de partículas. Eis a vida. Nada mais que isso.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 24/02/2013
Código do texto: T4157032
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