NÓS, VILÕES- UMA BIOGRAFIA FALSIFICADA: Estágio Dois: Morri e ressuscitei, e minha vida começa de novo

Eu agora ia para a Quinta Série, no mínimo agora não era mais um moleque que saía da sala de aula na fila dos meninos, de mãos dadas com a “tia”. As revistas Herói e outras genéricas tinham mudado, a programação dos desenhos animados foi alterada, até mesmo a disposição dos móveis de casa mudou. Ano-Novo, vida nova. Um das maiores inovações desse ano, com certeza, seria que desta vez a Santa estaria acorrentada bem longe de mim, quieta, inatingível, devolvida ao seu mundo de origem.

(mais um engano, perdoem as nossas falhas. Pois ela voltaria para se vingar de mim. Sempre se utilizando da televisão, de programas jornalísticos. Ainda não tinha conseguido fugir, mas um dia ela com certeza me perderia e arranjaria outra vítima.)

As feridas roxas ainda queimavam um pouco, bem frescas, as cascas de coágulo ásperas e salientadas, vez ou outra vinha uma passageira sensação de ardor e desconforto, sempre que eu me lembrava das fatídicas noites. Mas, enfim, este ano seria diferente. No meu último dia de férias escolares, depois dum copo duplo de café com leite, fumegando até me turvar as lentes dos óculos, tomando o desjejum na cozinha da casa de meu avô, veio-me uma sensação de calor, um fogo esquisito que me deixou em questão de minutos encharcado de suor. Mais um pouco e aquela febre me desidrataria. Tomei chuveiradas geladas, engoli pedras inteiras de gelo, afundei-me no ar-condicionado do carro, e eu continuava queimando em brasas. Na viagem de volta, pela Via Anhangüera, fui soltando rolos de fumaça pelos poros durante todo o caminho. Bem tarde, ainda sem sono, larguei-me sobre o sofá, tomando o devido cuidado de não lhe incendiar o tecido. Passava um filme de Billy Wilder no Domingo Maior, A Mundana, em preto e branco, que começava com um grupo de americanos sobrevoando a Alemanha devastada após a Segunda Guerra.

Continuei febril, minha mãe trazendo uma coleção de termômetros para tirar a média da leitura de cada um, dando-me comprimidos de Tylenol e Novalgina, além de limonadas, mel e chás de erva-cidreira, para cortar logo a minha maleita. Não adiantou, os remédios só me derrubaram num torpor de pedra, para que eu acordasse no dia seguinte quando começavam os Power Rangers na TV Colosso, quase meu horário de ir para a escola. Lá, enfim, a febre cedeu, depois que uma carteira foi consumida em chamas, justamente a minha; mais risadas, broncas dos professores, esporros dos serventes e inspetores, um sermão da coordenadora, chacotas dos colegas. Comecei minha Quinta Série com o pé direito.

Minha vida começou novamente do zero, mas não era um começo tão novo assim. O mundo continuava o mesmo: o Brasil cheio de desempregados, as ruas lotadas de dedos-leves, carros se acidentando no trânsito, a situação em Israel abalada por uma eventual explosão.

Para variar, acordei naquela manhã me coçando todo, atacado duma sarna descomunal, por pouco não desfiei o próprio couro a unhadas. Eu sempre tinha coceiras causadas por pernilongos, onde eu cultivava o péssimo hábito de as dedilhar até avermelharem e arderem. Enfim, nada de tão unusual. Mas minha mãe, naquele tempo já aposentada e o dia inteiro em casa, começou a conjecturar mil moléstias e alergias, lá foi ela me arrastar de novo para a Beneficência Portuguesa.

Pronto, matutava eu, já seria repreendido por tarefas não cumpridas naquele dia, pois a fila dos enfermos simplesmente não saía do lugar. Quando enfim fui chamado, vi que o mesmo residente da noite em que eu passara mal seria meu esculápio. Com as faces coradas e um bafo de cerveja, começou perguntando para qual time eu torcia, depois começou com os exames de praxe, as inspirações profundas, as marteladas no joelho, auscultações, medições, esquadrinhações de narinas e orelhas, até comentou que eu andava gordo demais, sem saber que ele não era o primeiro.

- O seu filho tem um problema muito raro, minha senhora- falou o bêbado.

Minha mãe desabou na cadeira, já imaginando a minha lápide. Precisou de algumas doses de água com açúcar, pois a falta de verba do hospital tinha-lhes impedido de adquirirem drogas para rebater a angústia. Mas o médico explicou que eu não tinha chance alguma de morrer, pelo menos por enquanto, e que meu problema era uma “coisa congênita”.

- Ele tem três pedras no coração. Mas acho que ele já deve ter nascido com elas, por isso o corpo se adaptou e acabou por isolá-las. Elas estão num local seguro, não atrapalham em nada, nem influenciam os órgãos.

Mas minha mãe já queria que me passassem na faca. De mesas de cirurgia, do cheiro de éter impregnado pelos cantos, do soro fincado na veia, da espera infinita pelas gotas que caíam dentro do balão, daquilo tudo eu queria distância. Quantas vezes me lembrava da minha infância, de quando me tiravam de casa e me levavam para aqueles prédios brancos, espetavam-me com agulhas, não me deixavam nem comer e nem beber água, preso em camas de ferro...

Chegamos em casa, fui lá para os meus gibis da Marvel, minha mãe veio interromper as leituras bem no meio duma aventura dos Vingadores para brigar comigo e tentar me levar na lábia, para que me cortassem o peito e arrancassem de lá as tais pedras, que aquilo era para meu bem, pedia-me que fizesse um, sacrifício. A briga foi piorando, piorando, piorando, até que eu fui salvo pelo gongo, o relógio do vídeo Panasonic marcou treze horas.

Uns tempos depois, pela enésima vez, meu pai quis me ensinar a andar de bicicleta, e eu como sempre preferindo as páginas duma revista em quadrinhos ao guidão de ferro. Aproveitou também e quis me passar a lábia para que eu concordasse em que me sangrassem lá na Beneficência, mas eu resistia, como também não queria mais subir no selim. Daí vinha o velho papo de sempre, de que eu não era igual aos outros, que um filho dum amigo dele de quatro anos já andava sem rodinhas e eu, um marmanjo, ficava mofando em casa e não sabia nada disso.

Mais uma briga para o currículo, bem longo já. A minha enferrujada bicicleta, que eu nunca cheguei a andar por medo de cair e me machucar, foi doada para um conhecido. Voltei chorando no carro, como um condenado após deixar o tribunal. Mas sem a imprensa em seus calcanhares. Não sabia andar de bicicleta e tinha três pedras no coração, eu era um monstro.

Com certeza, a Santa viria me cobrar.

Um pesadelo. Balançando suas banhas, com uma voz incrivelmente fina, a cara duma criança infeliz e azeda, com três pedras no coração, um problema ambulante e de carne e osso. Eu só poderia mesmo ser um devaneio de terror, um sonho degenerado. Uma alucinação coletiva, enxergada por várias pessoas, uma imagem que não existia, mas que tinha consciência e que tinha criado vida devido à insistência dos que acreditavam que eu existia. Minha tia de Poloni sempre quis batizar um sobrinho, por isso, aproveitando-se duma gravidez somática de minha mãe, compartilhou de suas fantasias e lá foi na igreja me abençoar, o padre já deveria ser bem velhinho, a vista já cansada, a lucidez falhando. Depois, de tanto falarem e comentarem de seu único filho, meus pais sugestionaram todos à sua volta, até mesmo diretores e professores, que por sua vez condicionaram as crianças a verem um amigo imaginário.

Porém, quando se passa dos dez anos, a vida se desmistifica, apagam-se as luzes de magia para serem cobertas com as nuvens cinzentas de poluição. Fui sendo esquecido e erradicado pelos outros. Nem mais prestava atenção às aulas, pois também os professores não se ligavam em mim. Também não levantava a mão pedindo dúvidas, pois ninguém ouviria minhas questões e enxergaria meu braço em riste. Já quase ninguém olhava para a minha cara nem vinha conversar comigo, sempre que se formavam equipes para os trabalhos eu era esquecido, até mesmo pelos professores, uma sobra que não se encaixava em grupo algum. Tudo o que eu falava, os outros ignoravam.

Mas vez ou outra se lembravam desta sombra. Quando ia ao banheiro, sempre havia um rapaz mais velho do que eu que chacoalhava as mãos molhadas nas minhas costas, ou me empurrava ou passava a perna quando cruzava comigo. Na fila da cantina, como se não bastasse a demora em que iam me atender, sempre vinha o Brunão e me arrancava à força. Ele não era o único, grande parte do pessoal da minha classe fazia isso. E um dia três gigantes da sétima começaram a me puxar pela camiseta e me jogar guardanapos engordurados, soltando pilhérias.

- Aí, Jaime Palilo, vai lá chorar com a Professora Helena! Ei, Palilo, falei com você, responde, cê é surdo, ô gordo tonto? Ah, vai se irritar? Cala a boca, leitão, vai se foder, moleque, vai lá brincar de pega-pega com os pirralhos da tua classe! e cantavam as pancadas em mim.

As miragens sempre vão ao encontro dos nefelibatas para lhes deleitar, na hora em que mais precisam duma diversão metafísica e que não se pode definir em algumas palavras. Por isso, quando se queria alguém para irritar, descarregar a raiva e descontar uns ressentimentos, eu surgia na visão dos outros. Voltando para casa, a um quarteirão do prédio, um ônibus escolar da prefeitura, sujo de terra nos párachoques, com a lataria amassada, passou queimando óleo, envolvendo-me naquela venenosa névoa. Via-se sua suspensão balançando, sacudida por um terremoto violento em seu interior. Os alunos penduravam-se até mesmo nas barras de ferro, alguns viajavam até com as pernas balançando para fora das janelas.

- Cuidado pra não afundar a calçada, baleia! ouvi esse insulto partindo do alto do veículo, e arremessaram pedaços de borracha contra mim.

Já conformado com minha situação de ilusão passageira, passava todas as aulas desenhando, enchendo cadernos pautados e de cartografia de garatujas e rabiscos, a maioria abstrações, combinações de cores sem forma alguma. Outra vez, tinham alguma forma, bem grosseira, primária, desenhos de criança, nenhuma obra de arte. Gostava de traçar espaçonaves, satélites, aviões, prédios de arquiteturas bizarras, escrever comentários, imitar telas de videogame, caricaturizar o Ultraman, o Jaspion e o National Kid. Quando eu era visto, vinham me tomar o desenho ou escarnecer sobre ele.

Lembro da Dona Nilza, os cabelos brancos arqueados para cima como os cornos dum diabrete, a velha balofa arrastando os joanetes pela sala, o seu papo molenga balançando a cada palavra, lembro também das inquisições dela, em que expunha as piores ilustrações na lousa, desancava uma por uma e mandava vir os donos.

- Olhem isso, o que o autor desse desenho quis dizer com isso? Essa coisa...que lembra um homem no meio dumas caixas...isso não são prédios, não é? Olha o relaxo disso, ele quis imitar os outros abstratos, olha, nem assinatura colocou! E isso aqui...gente, não se pinta com giz de cera desta maneira, isso parece coisa de pré-escola.

De zero a cem, minha média com a velha mal-humorada foi um quarenta sofrido, que ela justificou pela falta de cuidados com os métodos, pelo péssimo desempenho nos trabalhos em equipe e por alguns atrasos. Mas Felipe foi solidário, ostentando o mesmo valor em seu boletim. Eu não fora o único.

- Calma, a gente vai estar vivo amanhã, fica sossegado! Bom, boa sorte lá com a sua mãe, que eu vou tentar conversar com a minha- disse-me um de meus poucos amigos, um dos mais atacados pela minha alucinação.

O apartamento escuro, o vento gelado sacudindo o vitral da sacada, um uivo ecoando pela sala vazia, uma réstia de luz escorrendo pela porta da cozinha. Lá, depois duma sopa malfeita que a empregada preparou de manhã(água quente, arroz empapado e batata desidratada, uma delícia!), eu ia sendo julgado, naquele inquérito onde eu era meu próprio advogado, com as leis se voltando contra um réu. Enfim, os olhos da Justiça sempre foram mais acurados do que os dos gaviões.

- Assim você me faz passar vergonha- falava a mãe- que lixo é esse no seu boletim? Que feio...isso lá é nota que se apresente, Marcelo? A mais baixa da classe! Olha, você está acabando com a nossa paciência, nunca vi você tá relaxado com a escola! Chega em casa e não sabe nada da tarefa, não pergunta para o professor, fica arrumando briga com os outros, só quer saber de ficar assistindo desenho japonês, jogando e lendo revista. Primeiro você vai mal no curso de Inglês, depois deixa de fazer tarefa de Ciência pra ver televisão, depois ainda deixa pra última hora pra traduzir um livro em inglês de trinta páginas...você vai ficar de castigo até que suas notas melhorem!

EU NÃO ERA MAIS CRIANÇA, PORRA! O que ela pensava de mim, que eu era culpado por tudo o que vinha acontecendo? Eu não queria aquela nota também, mas não foi pela minha falta de esforços que isso acabou por acontecer, aquela porca lazarenta foi quem implicou comigo, a culpa é dela, não minha? Mas, então, porque eu seria punido? E depois, a tal da tarefa de Ciências, foi a minha mãe que vinha toda hora vistoriar, o mínimo erro que ela encontrava me obrigava a começar de novo, deixe-me fazer as coisas do meu jeito! Não, não, não, esse monte de sanções eu não quero...por que, afinal, eu estou sendo julgado naquela noite? Eu não briguei, não fiz nenhuma maldade, não desrespeitei ninguém...o veredicto é claro e sucinto: um bimestre inteiro sem alugar filme na locadora, sem pedir pizza e sem comer lanche. REGISTRE-SE, APLIQUE-SE, CUMPRA-SE!

Porém, minha mãe e minha prima continuaram alugando suas comédias americanas, seus dramalhões chorosos e piegas e suas películas premiadas com Oscar na locadora ao lado de casa, o que significou uma leve trégua para mim. Logo depois de chegar da escola, eu me recolhia para o quarto e ligava a televisão na Cultura ou na Manchete, assistia tudo o que vinha, isso quando a afiliada local permitia e não punha no horário uns programas horrendos sobre esoterismos, televendas, beleza e uns telejornais improvisados. Bem no horário do Jornal Nacional, eu ficava entrincheirado, protegido em outra emissora dos ataques da Santa.

Se eu era uma ilusão fajuta, o que seria ela então? Uma alucinação de uma alucinação? Será que as miragens também tinham fantasias e fantasmas? De onde vinham os fantasmas das ilusões? Afinal, se uma sombra perseguia a sua própria, iríamos caindo em abismos sem fim, num ciclo de loucura.

Para suprir a falta das fitas, havia a biblioteca. Sempre que surgia uma pesquisa escolar, graças à sentença, minha prima me levava até a Biblioteca Municipal, a alguns quarteirões de casa, e lá, como traças, íamos revolvendo os volumes e calhamaços do acervo. Eu gostava das capas e dos títulos dos romances, procurando se havia algum nexo entre a ilustração e a frase sintética que lhe definia a trama ou dava uma amostra da história.

- Desculpe, mas para fazer a ficha você vai precisar dum comprovante de endereço- dizia a bibliotecária- pode ser conta de água, de luz, de telefone, qualquer coisa...

Só então vi que ela, ali atrás duma pilha de livros devolvidos, era a mesma menina que eu vira na farmácia, quando eu vomitava até me desidratar. Mais rápido do que eu, ela percebeu que eu a reconhecera. Mais uma alucinada vendo-me em seus devaneios.

- Pelo visto, você cresceu um pouco desde que nos vimos pela última vez- disse ela- e acho que já está gostando dos livros, isso é bom. Quando nos apaixonamos por eles é que nós nos libertamos das correntes da vida...

- Qual é um bom? indaguei eu.

- Bom, não se assuste pela grossura dele- apontou ela com uma caneta Bic para uma resma encadernada em couro, a lombada trabalhada com fios dourados, mais espesso que uma Bíblia- mas, pelo que eu te conheço, e conheço bem pouco, aquele livro vai ser bom, por ora...

Peguei o alfarrábio, que nem título tinha, somente uns rabiscos, parecidos com os garranchos que eu riscava na carteira, lembravam runas ancestrais, hieróglifos, aqueles caracteres ininteligíveis. Na primeira página, uma epígrafe, em português, sobre uma folha embolorada: O HOMEM PASSA A SER IMORTAL QUANDO ESCREVE UM LIVRO. OS LIVROS ATRAVESSAM OS TEMPOS.

Depois, somente páginas em branco, de papel de alta gramatura, novíssimo em comparação com aquela primeira página comida pelas traças. Eu reclamava pois não havia nada lá a ser lido...antes, porém, que eu o fechasse, suas folhas alvas começaram a borbulhar, lembrando a efervescência da água oxigenada contra o sangue.

De repente, sobre o livro, toda a minha história, desde o momento em que nasci, até minha morte, estava ali documentada, narrada, ilustrada, medida com infográficos, tabelada, com notas de rodapé para explicar as tramas paralelas, até mesmo com bibliografia. Li o momento que se passava, eu ali na biblioteca, o livro escrevendo a si mesmo, com um título infame, que eu não entendi até agora: “NÓS, VILÕES- uma biografia falsificada”. Arrisquei-me até a bisbilhotar o futuro...

Coisa que não se faz. E, mesmo lendo aquilo, eu ignorei o que me esperava.

* * *

Descobri uma maneira mais barata e menos anti-social de escapar da realidade: o RPG. Varava tardes lendo os livros de regras de Toon, Defensores de Tóquio e AD&D. Juntei-me também a Conrado, Felipe e Caio, respectivamente, Sir Conlirou, Sir Fereno e Sir Kayano. Não me perguntem de onde surgiram tais alcunhas, nem mesmo eu conseguia entender como eles inventaram esses nomes. Nos recreios, os quatro que não iam jogar peteca ou futebol com os outros iam para um canto do pátio, abaixo da grande mangueira, e improvisávamos uma busca imaginária. Geralmente, os cavaleiros invadiam uma fortaleza atrás dum mago negro, ou entravam em cavernas infestadas de aranhas gigantescas, quando não íamos matar um dragão no topo de uma montanha coberta de nevoeiro. Quando soava a sineta estridente, a aventura tinha de terminar.

Começaram no colégio com uma brincadeira besta, ridícula, a qual eu sempre caí e nunca consegui aplicar em ninguém, por pura falta de jeito e habilidade. Pegava-se um papel metálico de bala, esticava-o com a ponta do dedo médio, até escapar-lhe a tintura, depois se mordia para prender o ar ali dentro. Aquele alvéolo inchado era então introduzido e explodido nos ouvidos de algum distraído. A sensação era a pior possível, o estalo ardia no tímpano, zunia demais, parecia até mesmo que um besouro tinha invadido os pavilhões auditivos.

Para variar, sem o meu consentimento, fui cobaia dos testes com a nova travessura. Meus dois ouvidos voltavam dos recreios sempre zunindo, não havia nada que me irritasse tanto, e meus carrascos se divertiam ao me ver bravo, de cara amarrada, azedo. Riam mais ainda quando eu tentava ensurdecer alguém e geralmente não conseguia.

Os três cavaleiros de mentira andavam me aconselhando sobre o Weber, um ariano de olhos verdes, extraordinariamente forte para a idade e sempre de boné, que aquele cara não era uma companhia muito boa. Foi quem mais estourou papéis de bala nos meus ouvidos, e justamente o que eu nunca consegui pegar. As meninas o admiravam, tinha uma legião de seguidoras, conversava até com as das séries mais avançadas, coisa que o medo ainda me barrava. Diziam que ele até já tinha aprendido a fumar.

Aquela criatura era o meu vizinho de carteira, por isso, sempre que ele vinha me irritar ou me intimidar sobre alguma coisa, eu acabava apanhando, pois antes que eu lhe aplicasse um murro ele já me aparava o punho e me passava uma rasteira. Na saída, não raramente, tinha de me esconder na locadora até que ele sumisse no caminho de volta. Além disso, depois duma época, ele começou a me extorquir em troca de alguma clemência, embora não tenha honrado seus compromissos.

- Dá um murro na cara desse Weber- incitava-me o Caio- ele merece, puta cara cuzão. Se eu fosse você, já tinha quebrado esse lazarento, ele é folgado demais!

- Sem essa de brigar, não escuta esse doido não- acalmava-me Conrado- vai ser pior se você quiser sair no braço com ele, vai por mim, tô te falando isso porque sou seu amigo. Sei lá, conversa com a escola, vê se te mudam de lugar, fala aí com os professores...

Um dia, a anciã que queria nos ensinar arte, levou-nos até uma exposição na Biblioteca Municipal, duma artista plástica de Araraquara que lá montara inúmeras instalações. Bem porra-louca a autora: entrávamos por um túnel de papel crepon e celofane verde, coberto de purpurina e valvas de conchas, depois andávamos por um ambiente escuro, somente um pano preto, onde se projetavam flashes roxos, havia ainda uma sala cheia de redes, espinhas de peixes, imagens de Iemanjá e areia. Ela nos explicava que retratava ali o mar e todos os seus anexos, desde a casa do pescador até o mercado de peixe. Enquanto ela prosseguia suas explanações sobre o significado dumas algas pintadas em invólucros de pizzas, eu, para variar, estava conversando com o meu algoz.

- Então cê não sabe da festa de Halloween que vão fazer na casa do Renato? Ah, tão falando aí que vai ter a festa, e pelo jeito não vão te convidar não, sei lá, parece que os caras nem tem falado de você...vai, conversa com ele, que talvez até role. Se ele não te convidar então cê faz o seguinte...

Eu já tinha começado a falar em pragas, maldições e sortilégios que puniriam o anfitrião por meio de medidas mágicas, sempre procurando as fantasias para não encarar o mundo palpável, sólido e acinzentado. Weber me ensinava um passe no mínimo curioso, claramente aproveitando-se de minha ingenuidade: por cinco reais, ele me vendeu o segredo duma potente mandinga, em que se escrevia a giz e sal o nome de uma pessoa no chão, encharcava-se o letreiro com álcool e depois lhe ateava fogo, até as chamas apagarem os caracteres. Bastava-se executar esses rituais e tudo de ruim aconteceria com o alvo da maldição.

- Onde eu aprendi isso? Bom, eu vi...digo, eu li...- atrapalhava-se ele mesmo para inventar suas farsas- num...num livro preto que tem uma cruz na capa, um livro mó grosso, assim- desenhou-o no tampo branco da mesa- eu um dia ia armar uma barraca no quintal de casa, num gramado, e quando afundei a estaca eu bati numa coisa, achei uma caixa com esse livro dentro. Mas não li tudo, porque tinha páginas uma grudada na outra e outras com umas manchas pretas. Eu acabei queimando esse livro uma noite.

Voltamos para a escola com o resto da turma, pois ainda seria ministrada a aula de Matemática no último tempo, somente Weber e seu pessoal sumiram à frente da biblioteca, evaporando com uma volatilidade de álcool, sem deixar vestígio algum. No mínimo, a minha cédula extorquida seria para eles e seus precoces companheiros avançarem mais um passo no mundo adulto, comprando uma cerveja ou um maço de cigarros em algum boteco ali nos arredores.

No pátio, enquanto uma parte da turma ia aos bebedouros e sanitários, uma mão debaixo das escadarias me chamou, pronta a me salvar do inferno de anotações e números da próxima aula.

- Vem, vamos matar aula- chamou-me o Caio, junto com Conrado e Felipe, abaixo dos degraus, num cubículo onde os serventes amontoavam carteiras quebradas e mesas velhas.

Corri para lá com avidez, já comemorando a minha liberdade recém-adquirida, livre dos grilhões escolares e daquela aula medíocre e piegas. Tínhamos de controlar as nossas risadas e cochichos para que ninguém nos descubrisse ali naquele esconderijo tão comum aos vários alunos rebeldes, já manjado aos inspetores. Se nos pegassem ali, para fora da sala de aula, iríamos para a sala da coordenação, viriam as broncas, em casa um novo castigo me aguardava, e as cicatrizes do outro ainda tinham alguns coágulos frescos pendurados.

A luz da nossa sala, cuja janela se abria diretamente para o pátio ali embaixo, refletia os vultos de cabeças alinhadas, voltadas para a lousa que a professora enchia copiosamente de equações e operações matemáticas, explicando tudo aos berros, acreditando que palavras gritadas ajudam a enraizar o conhecimento.

- Puta que pariu, se pegarem a gente aqui, tamos ferrados- comentou Conrado, escondido atrás duma pilha de cadeiras empoeiradas.

- Daqui a pouco a aula acaba- disse Felipe, consultando o relógio e vendo que suas medições o contrariavam- bom...faltam uns quarenta e cinco minutos, mas isso passa logo.

- Vamos ver isso aqui que é mais legal- Caio tirou de dentro da jaqueta do uniforme uma revista de capa colorida, manchetes em dourado, um daqueles periódicos proibidos que sempre apareciam empacotados nas prateleiras. Figurava na capa a foto duma modelo nua, os bicos dos seios afiados, um girassol cobrindo o ventre depilado. Folheamos copiosamente a revista, olhando demoradamente para cada fotografia, as moças como vieram ao mundo, de pernas arreganhadas, de quatro, chupando os próprios dedos, fingindo masturbar-se.

- Não conta pra ninguém isso, senão a gente tá fodido, imagina o rolo que vai dar se pegarem a gente vendo revista de sacanagem! advertiu-me Conrado, como seu eu fosse um troglodita despejado de sua gruta.

- Bem que as minas da nossa classe poderiam ser assim- comentou Felipe- mas, tirando a Lívia, elas nem têm peitos ainda. Mas tem umas lá que vão ficar gostosas, iguais às meninas da sétima!

- Quem da classe que cês gostariam de catar? veio o Caio com aqueles assuntos tão cruéis e dolorosos para um tímido crônico como eu.

E daí o nome de Marília escapou, sem chance de conter a confissão escoada aos borbotões.

Quando se tenta estocar oceanos e mares bravios no interior de ânforas de barro, pos vezes as borbulhas do próprio líquido acabam por abrir rachos e fissuras, até estraçalharem de vez o recipiente. Aquele meu arremedo de sentimento infantil, aquele amor ilusório cozido com fantasias de ficção, aquela mentira tão bem travestida de Verdade, os meus pensamentos transformados em falsos sentimentos, dirigidos a Marília, subiam com o ímpeto de golfadas até a garganta e por fim respingavam pela cabeça. A simples menção do nome dela, conforme acontecia naquela situação, já me rechaçava a tosca bilha dos pensamentos.

Marília, aquela que eu escolhera para “gostar” em segredo desde o ano passado, e tal idéia fixa foi sendo empurrada, arrastada e requentada durante tanto tempo. Ela ainda era uma criança como nós, não tinha ainda a silhueta precoce duma mulher, nem os seios e as espinhas tinham ainda despontado. Ainda encravada no limiar entre a fase das brincadeiras e das fantasias e da fase dos desvelamento das sombras reais do mundo. Gostava ainda de amarrar os cabelos em maria-chiquinhas, usando elásticos e presilhas coloridas de plástico. Ainda trocava papel de carta e pulava elástico com as amigas.

Porém, logo o crepúsculo da adolescência viria para macular os céus azuis de nossa infância terminal. Eu queria ir até a tal de festa de Halloween organizada pelo Renato a fim de emular uma mesma festa, ocorrida há trezentos e sessenta e cinco dias atrás, depois de muitos dias e noites. Eu queria reconstruir um passado, uma época, somente juntando uns materiais remanescentes. Naquele baile de Quarta-Série, tolhido pelas vergonhas e bloqueios, eu pela primeira vez arrisquei-me a dançar com uma pessoa do sexo feminino, aproximando-me como nunca tinha me aproximado, estas criaturas as quais antes só me causavam uma dose de aversão e medo.

Lá ia eu em busca dum tempo que já se tinha perdido, procurando encontrar a minha versão antiga, anulando as mudanças ao se refazer o que já se tinha transformado. Eu não dispunha nem de xícaras de chá, muito menos de madelleines, e também nem sonhava em conhecer os palacetes de Paris...mas havia aquela festa, uma chance de mascarar o presente. Nem mesmo as histórias daquele livro, aquele mesmo que tinha escrito o meu futuro, eu dei crédito. Também ignorava a recomendação dos meus três únicos colegas mais próximos...

Deu no que deu.

Mesmo a contragosto e contra a vontade de muitos, consegui convencer o anfitrião a me passar um convite. Não gosto que escondam as coisas de mim e muito menos que me excluam, afinal, por acaso eu sou pior em alguma coisa, eu sou de alguma casta inferior, eu sou

um problema para alguém? Não, acho que não. Pelo menos achava que não, antes dos acontecimentos daquela noite fatídica e nevoenta...

Meu pai rodou de carro durante duas horas no bairro da Fonte Luminosa, atrás do Teatro Municipal de Araraquara, e a rua com o endereço dado pelo Renato simplesmente não surgia, parecia escondida por entre os quarteirões. Quando enfim a encontramos, era um castelo rodeado de plantas tropicais. Um portão de madeira, controlado por dispositivos elétricos, desfilava pelos seus entalhes um painel de ninfas, sátiros, diabretes, soldados romanos, samurais, águias, cavalarias e pessoas híbridas com feras e répteis, parecia uma fotografia panorâmica dum grande acontecimento público no Inferno. O casarão, de três andares, tinha seu pico coroado por uma estrela vermelha, cortesia da mãe de Renato, uma artista plástica controversa.

Na festa há um ano atrás, ele nos cedeu seu apartamento minúsculo, num prédio velho no centro, caindo aos pedaços, quase que tomado pelos sem-teto. Agora, tínhamos um quintal inteiro daquele palacete à nossa disposição. Como que o pai dele, um enfermeiro da Beneficência, tinha enriquecido tanto da noite para o dia? Com a casa toda negra, enfeitada para a festa, os convivas vestidos de preto, os meninos, como monstros e zumbis góticos, as meninas como bruxas de cabelos coloridos, eu só poderia pensar que tal fortuna veio dum acordo bilateral com o Tinhoso.

Por entre as cruzes negras, os jack o’lantern e as lâmpadas encapadas com celofane, feiticeiras de capas longas e espectros de correntes não me reconheciam. Fui confundido com tudo mundo dos meus amigos, com Felipe, Caio e até com o Rodriguinho, o menor em estatura da classe(mas prestes a me vencer, pois eu, ao contrário, dos outros, parecia não mais crescer em tamanho, só em largura), caracterizado como uma múmia revivida.

Eu estava perdido, deslocado, sem conseguir me encaixar entre as várias rodas de conversa e as “panelas” que se formavam, pois eu também não tinha muito contato com o pessoal fora dos horários de aula. Sugeri a tradicional brincadeira de arrecadar doces e guloseimas na vizinhança, e até que me ouvissem foi preciso muito esforço. Saímos às ruas desertas, tomadas por uma neblina estranha, tão deslocada e perdida quanto eu, uma fumaça densa e úmida misteriosamente nascida numa noite abafada de primavera, sem subsídios metereológicos que a justificassem. Foi ali, furando a bruma à frente dos outros, que eu descobri que, em trezentos e sessenta e cinco dias, todos haviam mudado, eu não estava mais com os mesmos de antes. Eu não conseguiria reconstruir o tempo que já fora.

Somente eu tocava as campainhas e pedia os doces, que ninguém nos deu, enquanto os outros, cochichando às minhas costas, observavam tudo à distância, indiferentes a mim e às guloseimas. Foi quando um Opala negro, com manchas de cola de adesivos velhos no pára-brisas, queimando óleo e estourando um escapamento entupido, cantou os pneus bem ao nosso lado e por pouco não subiu na sarjeta.

- Aí, molecada, vem brincar com a gente- um breu total inundava o interior do automóvel, quebrado somente pelos instrumentos do painel e do toca-fitas- quem vocês pensam que são pra ficarem correndo a essa hora da noite por aí, seus desobedientes? Os pais de vocês não deram educação não?

Meus “amigos”(amigos?) saíram em disparada, e eu fui no embalo mas, gordo que era, precisando de forças extras para rebocar todas as capas de gordura que eu carregava entre as vísceras, deixei que eles sumissem no meio de cerração, as silhuetas dos tênis espocando nas poças, até desparecerem na bruma. Minhas pernas já se enrijeciam, os coração saltava, a goela quase que se torcia, eu ia perdendo velocidades, as forças, e os faróis do Opala continuavam brilhando às minhas costas, por entre o nevoeiro, as vozes de seus ocupantes gritando palavras ininteligíveis...

- Por aqui- um braço surgiu duma porta, era o Renato, puxando-me para dentro de sua casa. Foi só então que percebi que o palacete varava o quarteirão, sorte minha ter sido salvo em um de seus flancos, se não fosse aquela outra entrada, o Opala ainda estaria me perseguindo.

- Não vai inventar de chorar agora, hein? já veio o Weber me escarnecendo.

- Incrível como você não consegue correr- o Tiago, cuja mãe era amicíssima da minha, talvez era um dos únicos que estavam ali para me ajudar- se você não aperta o passo, você não ia conseguir fugir dos caras do Opala...

Ainda tremendo, sem diversão alguma, Skank tocando a plenos volumes no aparelho de som, engoli um copo de refrigerante para me acalmar. Segundo as páginas daquele livro misterioso, o pior ainda estava por vir...

Por uns poucos segundos, eu vi o interior da casa de Renato, o que já me causou temor. Um salão escuro, sempre afundado em sombras, povoado por silhuetas e ruídos estranhos, etéreos, quase ilusões, com a fraca luz da rua e do quintal penetrando pelos vitrais arroxeados, donde não se via nada. Parecia uma daquelas igrejas escuras e abandonadas, daquelas onde eu sonhava que deveria ser o esconderijo da Santa...junto com o pessoal, saí novamente ao quintal gramado, aos pés da piscina coberta pelos rolos de névoa, a cascata de pedras coberta por plástico púrpura, o quartinho transformado em salão improvisado com seus incensos e suas velas vermelhas...

Com todos eu tentava conversar, mas sempre eu era enxotado, ninguém queria puxar e nem continuar os assuntos comigo. Quando num momento se reuniram Weber, Renato e os outros, a um canto dum caramanchão de cristântemos, Weber se irritou com a minha presença e, visivelmente enfurecido, empurrou-me com violência.

- SAI DAQUI!(essas palavras, com o timbre e a agresividade com que foram proferidas, ficariam cristalizadas para sempre na minha cabeça...).

Já não entendia mais porque estava ali, eu queria saber o que se passavam nas sombras, o que estava escondido naquela escuridão de velório. Num momento, a Lívia, talvez a garota que mais parecia uma moça precoce, puxou o Brunão para a garagem, oculta por toldos, onde havia um banco de jardim. Esbarrei com o Rodriguinho, perguntei ao faraó mumificado, ele se fez desentendido e escorregou por entre minhas perguntas, aquela famosa técnica de quiabo para se deslizar entre os assuntos cortantes e perigosos.

Só me faltava mesmo o Tiago, talvez o único que me pudesse ser solidário. Ele estava junto com as meninas(Marília inclusive!), jogando pebolim na mesa de Renato. A sua resposta, não tão pior quanto as irritações de Weber, também se cristalizou na seara das memórias.

- VOCÊ É MUITO INOCENTE PRA ESTAR NA QUINTA-SÉRIE!

As meninas largaram as hastes dos bonecos-jogadores por um instante, olhando-me com uma expressão ambígua, agravada pelo sombrio da noite, misturando nojo, desprezo, estranhamento, escárnio, mágoa. Mais uma profecia se cumprindo. A hora do pior tinha chegado, e então, bem na porta pintada por onde saímos da casa, eu vi Weber discutindo com Marília, gesticulando irritado demais, os dois nervosos, andando dum lado para o outro, somente as suas vozes se perdendo e não chegando até nós. Afinal, que maldade aquele pulha fazia com a minha amada de mentira? Só mesmo poderia ser um ato daquele desgraçado...sorte a minha que ela teria aversão a ele, a suas selvagerias, um concorrente meu seria eliminado...continuavam eles a briga verbal, a discussão interminável, os mesmos gestos, pareciam quase a ponto de saírem na porrada...a festa inteira assistindo àquilo, de camarote, acompanhando cada detalhe, os comentários ocultos surgindo, escondidos de mim. Num relance, o boné cor de azeviche de Weber e a capa estampada de meias-luas e estrelas de Marília sumiram, reapareceram uns minutos depois. Estranho, estranho, muito estranho.

Fui até o balcão da churrasqueira, ao lado duma moranga com rosto e cheia de velas, comi um croquete e umas coxinhas frias, até o guaraná, esquecido fora da geladeira, tinha esquentado e perdido o gás, e naquele instante todos sumiram, desapareceram, evaporaram, sumiram por entre as sombras fantasmagóricas e por entre a neblina, naquele intervalo ínfimo de tempo em que fui atrás dumas guloseimas. Somente escutava uma sinfonia lenta, instrumental, uma melodia macabra, como se tocassem uma marcha fúnebre ali perto, um réquiem abafado. Deveria passar pela rua, naquele exato momento, um cortejo, com caixão, carpideiras, velas, luto e clarins.

O quarto transformado em salão de baile, envidraçado, pois servia também como ateliê para as obras da mãe de Renato, estava fechado. Sombras e vultos se misturavam e surgiam por entre o vidro, eu já não conseguia distinguir quem era quem, mas tive uma vaga noção de que correspondia uma menina para cada menino, somente eu era o excedente. Ali, num canto, aquela imagem de pesadelo obscureceu e turvou tudo. Subitamente, a névoa se tingiu de roxo. Weber dançava junto com Marília, corpos colados, completamente diferente da cena de raiva e irritação que eles protagonizaram momentos antes.

Uma explosão, o tubo de luz fria do aposento se acendeu.

- Mas o que é esse W escrito a estilete no seu braço? Andréa agarrou o braço de Marília e apontou uma mancha avermelhada, que ela tentava esconder e que eu não também não tinha reparado.

- Não é um W, é um M- um laivo último de esperança veio-me à tona, para rapidamente ser também extinto- de Marília.

Weber também tinha um M ou um W traçado na base de coágulos de sangue, que ele me disse ser sua inicial. Desta vez misturou-se em mim a raiva e a tristeza, e eu via gotas grossas de sangue escorrendo-me pelo peito, pelos pulsos, por entre os dentes que se rilhavam e serravam a si mesmos, nos meus olhos agora injetados. A dor, como uma cratera, crescia dentro de meu peito, tragando-me num redemoinho, levando-me para o fundo do poço da minha alma, onde a água era podre, salpicada de limo, tomada por caranguejos, aranhas, ratos, dragões, baratas, polvos e outros monstros que eu guardava dentro de mim...

Naquela noite, eu deixava de ser criança para me tornar um adolescento míope, azedo e triste. Mas, reiterando o que diziam as páginas do livro, o pior ainda estava por vir...

Crescia mais um pouco a crosta roxa de feridas, acrescida por mais alguns cortes e equimoses, somando-se às extensas placas coaguladas deixadas pela Santa. Eu não estava preparado para despencar desta maneira tão súbita do alto de minhas nuvens douradas de sonho, nem tinha ainda a fortitude para agüentar as novas dores e frustrações. Fui pego de surpresa, e logo caí muito deprimido.

Meus pais foram até Ribeirão Preto, visitar uns amigos, e no fliperama do shopping eu descarregava minhas mágoas nos botões de plástico dos gabinetes de KOF, Tekken, Virtua Fighter e Marvel Super Heroes. Os bonecos que meu personagem espancava com golpes feitos de eletricidade estática e equações computadorizadas valiam como se eu aplicasse aqueles murros e chutes em Weber, aquele ladrão desprezível, no omisso e arrogante do Renato, no touro monstruoso chamado Brunão.

Ao final dos meus jogos, fiquei é com os tendões travados, doloridos devido ao esforço, o bolso vazio de fichas, o sábado ao anoitecer. Apertando os olhos, tão compulsivamente que minha mãe já pensava se tratar duma encefalite, vi que eu enxergava o mundo como um filme velho, cheio de riscos, listras, pontos escuros, pulos de imagem e cores pálidas. Como naquelas películas corroídas vagarosamente por fungos. Lembrei na hora das cópias mais empoeiradas de Chaplin e d’O Gordo e o Magro que eu alugava na locadora.

Inúmeros riscos desviavam a minha atenção da lousa, onde Teresinha, nossa professora de Português e minha antiga catequista, falava sobre os verbos irregulares. Tinham-nos trocado de sala de aula, puseram-nos num salão empoeirado porém muito mais arejado, com os janelões abrindo-se diretamente para o pátio. Weber não era mais meu vizinho na carteira ao lado, agora vaga, onde eu largava a minha pesada mochila, em compensação os meus três únicos amigos estavam mais próximos ali naquela fileira. Teresinha ia explicando, e naquela minha visão de filme se deteriorando, a lousa tinha a cor duma bala vagabunda de hortelã, daquelas vendidas na cantina.

Eu sou um azarado crônico, tanto que, sentando ali ao lado da janela, objetos estranhos surgiam para pousar sobre meu fichário gasto. Eram torrões de barro, pirulitos já chupados, bolas de guardanapo, picolés derretidos, embalagens de balas, tubos de chocolate, até mesmo um tênis feminino, decorado com flores rosa-choque e umas lâmpadas acionadas ao se pisar, certa vez apareceu sob a minha mesa.

Para temperar ainda o meu azar galopante, naquela época Marília e sua trupe, formada por Andréa, Mariana, Carol, Natália e Lívia, começaram a me perseguir, aproveitando-se do meu temor. Na verdade, esta onda de infortúnios tinha até mesmo uma outra face: por um lado, eu sentia que se dar bem com as meninas não era exclusividade reservada aos “populares” da sala. Viviam me perseguindo, queriam me apertar a papada, a barriga, as bochechas, pediam que eu pendurasse os óculos na testa e esboçasse supostos olhares sexys. Eu me esbaldava nesse oásis, pois a ingenuidade é como éter, pouco é preciso para brotar o vício.

Por entre as campanhas improvisadas de RPG, que nós jogávamos às escondidas, no meio das aulas, Conrado, Felipe e Caio inflavam-me o ego, enchiam-me de louros da vitória, pela primeira vez eu sobrepujaria e me imporia sobre aquele séqüito que tanto me desprezava e me tratava com pouco caso.

Mas, como dizia o livro, aquele que me salvou de ser para sempre uma ilusão, o pior estava por vir. E eu mais uma vez o ignorei.

Durante um trabalho em grupo de Educação Artística, um cartaz horrendo feito de recortes e colagens, Caio me passou uma folha de caderno rasgada, foi-lhe entregue o bilhete com o objetivo que me desse em mãos. Naquelas linhas tortas, em letras femininas e arredondadas, bem caprichadas se comparadas aos meus garranchos, havia uma inquirição. Tremi, suando em bicas, até que Conrado pegasse o bilhete e lesse seu conteúdo.

- Cara, é a sua chance? O quê, tá doido de vergonha? Deixa comigo, fala aí que eu escrevo, não tem rolo, meu amigo.

Uma pergunta de múltipla escolha, era aquilo que continha o bilhete. Era-me perguntado sobre qual menina eu tinha preferência, logo depois seguida a lista com o nome de cada uma, e parênteses delimitando a área para se assinalar, uma cédula de voto. Conrado marcou o nome de quem ele bem sabia que eu gostava e o papel voltou. Mais um bilhete escolar, que eu imaginava ser a mensagem tão temida e desejada, porém, aquelas palavras balançaram nos meus olhos já úmidos de lágrimas:

“A Marília já gosta de outro. Quem você prefere: ()Carol, ()Lívia, ()Andréa, ()Natália, ()Mariana?”.

Rilhei os dentes, mais uma vez o veneno entorpecente da raiva tomou-me o sangue, mais uma vez dopado pelas emoções, pelo ódio, pela irritação de se sentir novamente um coitado, um perdedor, um fracasso, um nada ali jogado a um canto daquela sala decrépita. Elas, todas reunidas numa única equipe de trabalho, bem perceberam quando me levantei, ruidosamente, quase derrubando a cadeira atrás de mim, os caras pedindo-me calma, rasguei o bilhete e o arremessei ao lixo, ao lado da mesa da velha. Voltei pisando firme, cada passo trincando os ladrilhos coloridos, e olhei para Weber, reunido com uma equipe ali à nossa frente, de costas para mim, as abas do boné voltadas para a nuca, indefeso. Num segundo, um estalo, o tabefe imprimiu meus dedos em sua pele, o boné esvoaçou até a janela e enroscou em seu peitoril, por sorte não foi para o pátio.

- Mas que selvageria é essa? Quem você pensa que é pra fazer uma coisa dessas aqui, em sala de aula, isso aqui não é a sua casa, seu moleque! Você sempre dá problema nas aulas, está mais que na hora da direção tomar umas providências pra te ensinar os modos, mocinho! os olhos da velha, intumescidos por suas bolsas, começaram a soltar faíscas, por pouco as pupilas não se tornaram lâminas afiadas. Suas mãos de avó se transformaram em garras de lobisomem.

- Se liga, que que cê acha que tá fazendo? Gordo folgado, palhaço, tá fodido, saco de peido! ali, Weber pronunciava a minha sentença.

- Vamos, fale alguma coisa, ou agora você tem vergonha, seu bandido! continuava a mestra a me dardejar.

Risos, risos e mais risos, agora éramos a atração principal da aula. A anciã virou de costas, rosando de tão irritada, e naquele momento de distração Weber me aplicou uma ombrada, trancei as pernas e tropecei nos meus próprios calcanhares, fui tombando até me agarrar a uma carteira vaga, ruidosamente, mais uma bronca da mulher. O trio não dizia nada, estavam todos perplexos, mais perplexos ainda ficaram quando uns ciscos de cana entraram pela janela, folículos negros que lembravam cruzes. Quando deveria ser umas cinco e meia da tarde, o sol me fritando ao invadir nossa sala em sua caminhada ao oeste, durante uma chamada oral de Geografia, ouvimos tocar nos alto-falantes da Matriz a Ave-Maria de Gounod, a litania usada em Poloni para se anunciar os finados. Fugindo de Weber, entrei na locadora à frente do colégio, lá peguei de orelhada umas conversas de que o dono do estabelecimento tinha acabado de falecer, as atendentes todas tentando segurar as lágrimas. Acabei alugando os filmes A Morte Lhe Cai Bem, Os Fantasmas se Divertem(Beetlejuice) e Um Morto Muito Louco II.

Quando cheguei em casa, mais uma desgraça. Minha mãe comentava meu pai, que tinha acabado de chegar do banco:

- Sabe o filho do casal do terceiro andar, do 32? Faleceu hoje, de falência múltipla dos órgãos. O Seu Waldomiro, o porteiro, avisou agora, eles estão arrasados.

Nem tive coragem de procurar no alfarrábio o meu destino mais próximo.

Naquela tarde, o grupo de teatro montava um espetáculo na sala de teatros ali nos porões da escola, e, pelo visto, a peça deveria ser das mais mórbidas. Tinha arranjado mantilhas e casulas roxas para os figurinos, e uma rápida vislumbrada durante o recreio nos deixou entrever um caixão roxo no meio da cena, entalhado com uma cruz de papelão. Penúltima aula, de Geografia, contava-nos a professora sobre o assassinato de Chico Mendes e o atentado ao papa João Paulo II. Depois, no horário de História, a Dona Anita contava sobre as intrigas palacianas dos romanos, de como Brutus matou Júlio César. No último dia do ano, o derradeiro trabalho em grupo. Sorteadas as equipes, fui ao encontro da minha, na fileira ao outro extremo da classe, e lá ele me esperava, os braços cruzados.

- Cadê tua carteira, sua bichinha! encarava-me Weber.

Renato ria de minha cara, escondido atrás de seu capanga, enquanto ele ia me dizendo que não era meu empregado, que eu era folgado e que tinha que aprender como funcionavam as coisas ali, com eles, os mandatários da turma, pois eu era um tonto ingênuo e inocente. Dei-lhe as costas, cruel deslize, e um chute doeu fundo nas minhas canelas. Mancando, já enfurecido, arrastei a carteira para perto deles.

- Como você não sabe fazer esse exercício, quatro-olhos? Porra, cê não presta pra nada, hein, tua mãe deve ter te cagado e teu pai gozado na merda pra nascer esse saco de peido ridículo! E quem você pensa que é pra vir me xingando, vai xingar aquela vaca da tua mãe, filho duma puta com um veado que gosta de dar pra cavalo! Vai lá chorar com a diretoria e pagar uma chupeta pros teus amiguinhos de merda, que eu como seu rabo, palhaço.

Renato até mesmo derramava lágrimas de tanto rir, deixando entrever seus dentões eqüinos e projetados para fora dos lábios, envoltos em arames e borrachas. Com que prazer eu arrancaria aquele aparelho, e cada dente, um por um, molar, pré-molar, caninos…tentei fazer de meu livro didático um porrete, porém Renato foi mais rápido e me comprimiu o diafragma ao empurrer a carteira, além de me furar o dedo com a ponta seca do compasso.

- Algum problema aqui? perguntou a professora.

- Nenhum, D. Anita- respondeu Renato, seguro e calmo, enquanto que um halo luminoso se desenhava sobre a cabeça de Weber. Mal ela virou as costas e eles continuaram com sua tortura. Desgraçados, se fossem verdadeiramente corajosos, fariam-no para quem quisesse assistir, aqueles sádicos.

As ofensas continuaram, agora me davam pontapés por baixo das mesas, começaram a rasgar minha mochila a golpes de estilete. Atrapalhavam-me, e eu seguia o conselho que uma psicóloga tinha me dito a tempos atrás, para agüentar passivo os impropérios, deixar que as palavras deles entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro. Mas meu sangue fervia, ardia em brasa, eu tinha sangue de dragão correndo pelas veias.

Renato então me chutou o joelho, dolorosamente, e larguei a folha de exercícios, prestes a chorar de tanta raiva acumulada. Se eu não continuasse a fazer a atividade, ameaçavam eles, e eles ficassem sem nota, a surra seria pior. Para que não me batessem, assim que o sinal indicasse o recreio, eu deveria pagar-lhes uma taxa, do contrário eu teria de ficar esperto na saída, ali dentro da escola não me perseguiriam, mas na rua o que mandava era a lei do mais forte. Fumaça já me subia pelas orelhas, os cabelos entravam em ebulição, uma corrente elétrica vinda da terra me atravessou. Eu perdi a cabeça.

Arrisquei virar um soco em Renato, porém, tão louco de fúria, errei a pontaria e acertei Weber, ocupado em conversas com integrantes dos outros grupos. Minhas orelhas arderam, senti o sangue escorrendo quente e misturado com o suor, quando meu carrasco me agarrou pelas orelhas e as puxou, uma criança indefesa apanhando dum brutamontes, as cartilagens estalando numa horrenda onda de dor e arrepios.

Weber então começou a me chacoalhar a cabeça, até que meus óculos se soltassem do rosto e pousassem sobre meu fichário, eles não sairiam danificados daquela briga. E minha cabeça girava, girava, sacolejava, tombava a cada solavanco, a testa latejava, a nuca pulsava, o estômago por pouco não me subiu à faringe, a língua se encrespava, a gengiva secava, por pouco meus olhos não pularam de suas órbitas, senti um gosto acre na saliva, o sabor de meu próprio fígado.

Soltei-me de Weber ao derrubar as carteiras, meu material se espalhando pelo piso, e nos erguemos numa feroz contenda ao fundo da sala, batalha esta que para mim já estava perdida. Eu não tinha uma funda, nem a bênção dos deuses, muito menos o poder de meus heróis de mentira, Davi derrotou Golias nos tempos bíblicos e aquela era a Idade Contemporânea, desprovida de deuses e entregue aos ímpios. Avancei para cima do alemão, ele me estalou o pescoço com um mata-leão, seu bíceps me sufocava, e uma chuva de socos coroou-me a cabeça, a testa, o rosto e o nariz, seus punhos maculando minha pele e fazendo eu morder minha própria boca até verter sangue. Fui arremesado contra várias mesas, caí sentado, o ventre se revirando, parecia que ia vomitar. Lancei-me em outro salto contra ele, e ele me devolveu ao chão com um pontapé na boca do estômago, mais uma vez aquele gosto voltou à minha boca. Pasmado, olhei para a camiseta de meu uniforme, ali ficara a marca de seu tênis, ali estava a prova da minha humilhação.

Fiquei o intervalo e duas aulas inteiras esquecido no pórtico do colégio, sob castigo dos inspetores, aguardando que a coordenação me chamasse. Os alunos que passavam nem me olhavam, ou quando eu era visto dirigiam-me risos, gracejos, chacotas e palavras de reprovação. Abaixo da sacada onde me tinham deixado a espumar de ódio, vinha o Renato a todos os momentos me irritar, deleitar-se com minha tristeza, e a cada momento a turma de cruéis carrascos aumentavam, cada grito e rosnado meu era um orgasmo moral que eles sofriam. Meus olhos já se inchavam de choro, a boca enchia-se duma espuma salgada nascida dos espasmos da goela, uma película de suor secava sobre minha pele arroxeada, minha cabeça começava a dor, a respiração ainda entrecortada. Uma mão delicada, de dedos finos, feminina, apareceu na minha frente, estendendo-me um copo descartável cheio de água. Minhas pupilas intumescidas enxergaram a figura embaçada da japonesa, a mesa da farmácia e da biblioteca, tentando me acalmar. Eu não queria ninguém para ter pena de mim, porra, e por isso dei-lhe um tapa no dorso da mão, jogando o copo longe.

Tão perdido de fúria estava, que retribui os seus carinhos com um soco e uma joelhada em sua barriga, ao que ela se afastou de mim, uma lágrima escorrendo do canto de seus olhos. Apliquei mais um murro na parede, os nódulos de meus dedos se encheram de sangue, morto de raiva. Eu queria ver aquela escola pegando fogo, os tetos e as pilastras desabando, o sangue dos infelizes que me perseguiam escorrendo como um rio no pátio, a mangueira perto da quadra transformada num vulcão, a quadra coberta de cabeças decepadas, meteoros vindos do céu destruindo tudo, matando Weber, Weber sendo sodomizado por uma legião de demônios...

- Foi ele que começou- bufou o ariano, esmurrando a mesa de diretora, pondo os olhos em chamas em cima de mim.

Naquele dia, meus pais foram para o Paraguai numa excursão exclusiva para casais e eu e minha prima, ilhados no apartamento, enquanto uma violenta tempestade desabava sobre Araraquara, uns três dias somente com a luz dos relâmpagos e as lâmpadas de casa.

José Marcelo Siviero
Enviado por José Marcelo Siviero em 17/03/2007
Código do texto: T416143