DANDARA PÃO DE AÇÚCAR

Carnaval no Rio de Janeiro. Dandara Pão de Açúcar, atriz pornô de fama internacional, será homenageada na avenida Marquês de Sapucaí pela escola de samba Unidos do Bondinho, do grupo de acesso. Desfilará no último carro alegórico sozinha, como destaque absoluto. Pelo espelho do camarim exclusivo, momentos antes do desfile, observa suas feições já cansadas. Brilho e colorido intensos proporcionados pela maquiagem escondem marcas de descontentamentos acumulados no decorrer da vida. À sua frente, sobre a bancada de madeira, um copo de Campari cheio até a borda pela segunda vez, que ela bebe a caprichados goles. Como se haurida por sua própria imagem, pelas lembranças nela dançantes, pelas várias doses da bebida, subitamente, perde a consciência.

Do lado de fora, o carnavalesco Zenóbio da Lapa e seu assistente Silas Jardim esmurram a porta trancada:

– Não adianta, Silas, não vai abrir. Deve ter bebido todas.

– Por que você deixou aquela garrafa de Campari com ela?

– Mas ela me disse que havia aprendido a se controlar na bebida! Me pediu!

– Não vai ter jeito, deve estar apagadona. Vamos arrombar esta porta e acordá-la a qualquer custo!

E assim fazem. Felizmente, já está pronta, graças à fantasia de mínimas proporções, mas...

– Que situação, Zenóbio! O que a gente faz agora?

– Tive uma ideia.

Na avenida, a Unidos do Bondinho inicia o desfile. Apresenta, na comissão de frente, dançarinos fantasiados de nacos de queijo, goiabada, ou cabacinhas de tomar cachaça, remetendo à infância da homenageada, vivida no interior de Minas, quando ainda era simplesmente Maria Aparecida, a Cidinha, e dava os primeiros sinais de rebeldia ao fugir dos afazeres domésticos para brincar de esconde-esconde e nadar pelada no rio, com os meninos; só meninos. A sova do bravo pai era certa. Ela apanhava bastante e no dia seguinte, repetia tudo.

Um carro alegórico em forma de locomotiva a retrata com treze anos, na estrada de ferro, em fuga para o Rio, acompanhada por Virgílio Soares, um empresário cinquentão, seu amante. Viajar de trem era o sonho da menina e de tão apaixonado, o homem sujeitou-se a tal capricho; tiveram que seguir até Vitória, no Espírito Santo e só depois seguir para o destino final. Com Virgílio, ela viveu, entre brilhantes, festas e surras, um árdego romance de quatro anos e cinco abortos, que lhe arrancaram definitivamente a possibilidade de ser mãe.

Alegorias, passistas e fantasias vibrantes contam sua rotina de noitadas, namoros e viagens, quando aboliu definitivamente a Cidinha e passou a ser a arrebatadora Dandara Pão de Açúcar. As saias das baianas representam em colchas rendadas as tantas camas que acolheram seus ardentes amores, exibidos diante das telas; algumas alas trazem bailarinos e atores interpretando, com menor realismo, claro, suas cenas de sexo mais famosas, que seduzem os que a desejam e revoltam as que a invejam, pelo absurdo despudor que aparenta ter ao escancarar-se frente a falos enormes que, ela jura, não são “fabricados pela magia do cinema”. Brinquedinhos sexuais giram e sambam na Marquês de Sapucaí, por meio de esculturas, fantasias e adereços, incitando as imaginações libertinas dos que assistem ao desfile. Reproduzem, ainda que por insinuações discretas, até mesmo o polêmico filme no qual atuou com três cães pitbull, o que lhe custou grave ferida na parte superior do seio direito, devido ao ataque acidental de um dos bichos. Ainda não se livrou da cicatriz deixada pelos longos e pontiagudos caninos cravados na carne, a despeito das várias cirurgias plásticas que já fez. Diz não gostar de trabalhos que exijam maior intensidade emocional e por isso (diz), recusa tantos convites. Em compensação, encarna com maestria personagens eróticas. Interpreta-as com tamanha verdade, a ponto de atingir orgasmos múltiplos em pleno set de filmagem. Pelo menos é o que ela sempre faz questão de afirmar nas entrevistas.

Uma história de ousadias, batalhas, triunfos e frustrações pasma olhares atentos de cariocas e turistas do mundo inteiro, na passarela do samba...

E finalmente, o grande momento! O ponto máximo do desfile! Sobre o imenso e resplandecente carro alegórico que encerra a apresentação, surge, frente a câmeras e holofotes, o tema da escola, a exuberante Dandara Pão de Açúcar! Ela vem exibindo seu conhecido anjinho vermelho de cauda sob as asas e chifres entre os loiros cachinhos, tatuado na coxa esquerda. Está presa num grosso tronco envernizado, por largas faixas de seda dourada enroladas nos joelhos, pescoço e abaixo dos peitos, com braços para trás e mãos amarradas, simulando uma escrava em tortura. Cobrindo o rosto, um véu escarlate, que mostra apenas os grandes e arregalados olhos verdes, perdidos na maquiagem. Belíssima! O público aplaude fervorosamente! Virgílio Soares, do camarote, aprecia a mais deliciosa amante que já teve, recordando-se dos tempos felizes em que a possuía. Agora, velho e doente, não tem outra alternativa, senão vê-la assim, à distância. Murmura: “está gostosa demais”. Sente-se retribuído, conclui terem valido a pena as intrigas e chantagens feitas aos dirigentes da escola, que lhe custaram alguns milhares de dólares, para ter sua musa enaltecida dessa forma. E não foi fácil. Os covardes estavam moles de medo, certos de que mídia e jurados se escandalizariam com o tema escolhido. Mas foi veemente: “Pois que se borrem! Pois que se fodam! Dandara VAI ser o enredo da escola de samba Unidos do Bondinho neste ano!”. Ah, como ele está orgulhoso agora!

O carro cumpre o percurso sob gritos entusiasmados de “é campeã”. Mas tão logo fecha-se o portão do final do Sambódromo, algo de errado acontece; um imprevisto, um acidente! Faíscas de fogo e muita fumaça negra se anunciam em torno do imenso veículo! Tudo é muito rápido! Os bombeiros acionam imediatamente o guindaste para socorrer Dandara. Um deles a liberta do tronco cenográfico, desatando os fortes nós que foram dados para fixá-la no lugar. Porém, uma vez solta, ela não tem firmeza o suficiente em pernas e braços para manter-se de pé e agarrar-se nos ombros do homem. E cai! Cinco metros abaixo! Esfacela-se em meio ao lago de sangue! A comoção é generalizada!

Zenóbio da Lapa e Silas Jardim, trocando olhares cúmplices, afastam-se da confusão:

– Silas, o incêndio no carro foi providencial! Intervenção divina!

– Você jura que não é responsável por isso, Zenóbio?

– Claro que não! Foi um acidente. Não vão nem desconfiar que ela já estava morta. Afirmaríamos que morreu durante o desfile, o que poderia representar um certo risco, mas agora está tudo mais fácil.

– Coitada. Um ataque cardíaco fulminante. Mal acreditei quando você teve a ideia de improvisar a fantasia, amarrando firme a defunta naquele tronco, com as faixas de seda.

– Quando lembrei da grana exorbitante que foi investida, do tanto de gente poderosa no meio querendo seus lucros, dos prejuízos que todos teriam, decidi que ela entraria de qualquer jeito no sambódromo, até mesmo cadáver. Acho que ninguém percebeu que seus lindos olhos verdes já não tinham vida. Silas, o que está me envaidecendo é que contei a história de Dandara, da infância à morte, passando com seu corpo pela avenida, para que todos a velassem. Ela desfilou morta, como realmente se sentia nos últimos tempos, uma morta em vida, mera imagem, matéria de cobiça e consumo. Enredo perfeito! E todos a velaram.

– Mas sem saber...

– Isso que me frustra. Tem nada não, a vitória já é nossa. No próximo ano, estaremos no grupo especial.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 28/06/2013
Reeditado em 22/11/2018
Código do texto: T4362282
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