Entre tintas e miados

- Eu já te falei, senhor Ricardo... Nós pagamos bem pelo seu imóvel. Pegue este dinheiro e vá aproveitar!

Disse o corretor ao homem já no alto de seus 50 anos. Ricardo com a cabeça um pouco baixa, devido ao sol abrasador, balançava de um lado para outro negando a oferta.

- Já lhe disse! Não tenho interesse em vender esta casa. Faça a oferta que quiser, contudo esta casa só será sua quando eu partir. Até porque de minha família só resta a mim. Tenha um bom dia!

Fechou o pequeno portão e adentrou o seu imóvel. Com a porta pelas costas deu um leve suspiro.

- Quantas vezes eles vão insistir?! Já falei que não e pronto!

Caminhava para perto de sua velha escrivaninha mirando os olhos no porta-retratos. Pegou para olhar mais de perto, mesmo tendo feito isto várias vezes, e sabendo de cor os detalhes da foto.

- Faz 10 anos já... Tempos bons eram estes, não Letícia? Escolhemos não ter filhos, mas não nos arrependemos desta decisão. Aproveitamos e fomos muito felizes.

Colocou o porta-retratos, com todo o cuidado, de volta em seu lugar e se dirigiu para o quarto de iluminação reduzida ao fundo da peça. Ricardo possuía um ateliê de pintura, de lá saiam quadros há mais de 30 anos. Mestre Ricardo, como era conhecido, participou de várias exposições na capital, sempre sendo ovacionado por seu estilo e também por seu esforço. Ricardo é autodidata.

- Sabe... Eu sinto falta de uma alma viva nesta velha casa.

Sentou em seu banco pincelando um mosaico encomendado pela a igreja da cidade vizinha. O silêncio era a tônica daquela residência. Os únicos barulhos eram, mesmo que em tons baixos, o tic-tac do relógio na sala e a torneira com defeito que insistia pingar vagarosamente na cozinha. Depois de um quarto de hora, o Mestre já fatigado parou.

- Amanhã continuo este quadro... Ah! A idade é um castigo de Deus para o homem. Não tenho a mesma tenacidade de outrora.

Ricardo deitou na cama que ficava ao lado de sua área de trabalho. Com o pé escorando o outro tirou os sapatos pesados, guarnecido pelo conforto de seu colchão elevou o olhar cansado para o teto e falou baixinho.

- Apenas 2 horas! Depois vou ao centro comprar mais tintas. Vou “puxar uma palha” antes.

Adormeceu com o dia de sol a pino, e quando voltou a abrir os olhos, estava cinza, frio e chuvoso. Nem precisou levantar para confirmar. A pesada chuva contra a vidraça da sala irrompia o silêncio da casa e vencia o “pingar” insistente da torneira.

- Pelos céus! Que mudança... Parece que vem uma tromba d´água, mas vou ter que ir lá mesmo assim. Preciso terminar a tela até semana que vem.

De súbito levantou e calçou os sapatos virados à beira da cama. Aproximou-se do mancebo ao lado da porta do ateliê colocando o chapéu, deu uma última olhada no espelho ajeitando o terno, e com o guarda-chuva em mãos pôs a fazer parte daquelas pessoas apressadas usando outros guarda-chuvas, só que coloridos, talvez uma tentativa de quebrar o cinza do tempo e prédios no entorno de sua solitária moradia.

- Por favor... Quero duas bisnagas de vermelho, uma de magenta e outra de verde fosco, sim?

O atendente, de pronto, foi buscar o pedido do velho pintor.

- Mestre... Como está indo a pintura da matriz de São José? Ouvir dizer que a da Igreja da Consolação ficou linda.

- Ah sim! Da Consolação demorei dois meses, mas valeu a pena a espera. Quanto à outra, a de São José, creio que na próxima semana estará pronta.

O senhor juntou as bisnagas contra os braços e agradeceu com o levantar de mão o “amigo das tintas”. Com os pés na rua andou apressado para à sua casa. A chuva não dava trégua. Todas as pessoas, carros e demais seres viventes daquela cidade queriam todos, ao mesmo tempo, fazer o que Ricardo fazia.

- Uma caixa?

O pintor aproximou-se da caixa de papelão deixada em uma rua sem saída. Deu mais alguns passos e escutou miados fracos e copiosos. Ao parar de frente pode observar que vários gatinhos foram abandonados, entretanto apenas um havia sobrevivido.

- Quem pode fazer algo assim? Por quê? Vou levar você comigo, amiguinho.

Abaixou-se e pegou a pequenina criatura colocando dentro do terno. O calor deve ter amenizado o frio e o miado deu lugar ao silêncio da suave respiração.

Em casa, Ricardo desfez-se dos sapatos e calça molhados. Retirou o pequeno gato do bolso interno, e com máxima preocupação, limpou com a toalha.

- Tudo bem? Seus irmãos morreram, mas você teve sorte, amiguinho. Deve estar com fome, não?

Abriu a gaveta e de dentro tirou uma seringa descartável, ele usava para diluir suas tintas, com uma nova, e com o gato no colo, passeou até o fogão onde havia uma leiteira com o resto do leite do café da manhã.

- Bom... Vamos ver se sei cuidar de gatos... Já vi um monte de gente fazer isto, até na TV, mas nunca fiz.

O leite na seringa, e com cuidado, começou a alimentar a pequena vida. O gato sugava usando todas suas fracas forças. Sempre com os mesmos cuidados e carinhos, os dias se passaram. O pequeno já estava de olhos bem abertos, caminhando e miando por toda casa.

- Bom. Acho que preciso arrumar um lugar para você ficar... Que tal aqui?!

O senhor desocupou uma caixa de tinta e forrou o seu interior com estopa. Em uma mão o gato, na outra a caixa, juntou os dois e fixou debaixo do pêndulo do pesado relógio de madeira, presente da esposa.

Todas as manhãs, antes mesmo dos ponteiros do relógio-presente fixarem em sete horas da manhã, Nanquim acordava o dono para mais um longo dia.

- Mas você hein...

Divertia Mestre Ricardo ao ver Nanquim, alimentava-o, alimentava-se, logo em seguida caminhava de volta ao ambiente de trabalho para terminar mais encomendas. Pelas paredes fotos com personalidades, autoridades e prêmios conquistados. Nanquim observava todo o desenvolvimento da arte de cima da cama. Ricardo jurava que ele assistia todo o processo da pintura como se fosse gente.

O ambiente ficou mais alegre. Ricardo recuperou em parte seu ânimo. Com toda a certeza, a entrada daquele gato deixou a casa mais viva, pois agora além do tic-tac do relógio, o pingar da torneira da cozinha, os miados alegres ao receber o dono pedindo carinho também eram ouvidos.

Todavia, os corretores amolavam a outra parte de seu ânimo, insistiam para vender sua casa, e com enormes quantias em espécie. Ricardo sempre negava, e cada vez mais sem palavras.

Em uma noite, pela rua vazia, uma sombra mirou a residência do pintor. A sombra tomou distância e atirou pela janela uma garrafa embebida com álcool. Rapidamente, com a mobília de alta combustão, parte da sala já estava em chamas. Nanquim, dentro de sua velha caixa de estopa se levantou, como fazia todas as manhãs tentou acordar o dono com pisadas no peito.

- Hum!? Nanquim... Depois te dou comida. Ainda está de noite... Vou dormir um pouco mais.

Virou-se, mas o gato insistiu e Ricardo levantou com o fogo já abrasando a porta do ateliê. As únicas coisas que conseguiu pegar antes de sair foi o relógio-presente da esposa e Nanquim.

Na rua todos da vizinhança assistiam a casa arder em chamas, os bombeiros já com os carros estacionados próximos à residência usavam os esforços de todos os companheiros para arrefecer o fogo.

Todos os quadros de Mestre Ricardo foram consumidos no fogo. Nem por isto ele se deixou abater. Tinha no colo aquele que salvou sua vida, e isto valia mais do que qualquer pintura.

A mídia local e toda cidade se solidarizaram com o Mestre, juntos ajudaram reerguer sua velha casa, nos mesmos moldes de antes.

- Veja Nanquim! Estamos de volta... Parece que nem saímos daqui. Tá tudo igual!

Ricardo sorriu e voltou a levar a mesma vida de antes do acidente.

Os anos passaram e a saúde de Ricardo pirou. Os médicos diziam que era pela toxicidade do prolongado uso de suas tintas. Nanquim envelheceu junto ao dono, também para ele as doenças começaram a vir.

Na noite de sábado para domingo, muito debilitado e passando mal, Mestre Ricardo adormeceu. Ao lado, na caixinha de estopa, Nanquim fazia a vigília do dono, mas para a morte não há solução. Em uma bela manhã de domingo, TVs e jornais noticiavam a morte da personalidade mais ilustre daquela cidade. O Mestre foi velado em uma igreja repleta de suas mais belas obras. Os sinos de todas as outras adornadas com suas pinturas dobraram.

Na velha residência, a administração municipal e corretores retiraram os pertences do pintor. Na caixinha de estopa, sempre no mesmo cantinho, Nanquim estava em silêncio. Os miados nunca mais foram ouvidos.

Hoje, a casa de Mestre Ricardo é um belo conjunto de escritórios. O mais triste era que ali não existiam mais o tic-tac, o pingar de uma torneira que vivia com defeito e muito menos miados de carinho. Apenas o silêncio da burocracia do progresso da vida humana, este só interrompido por um sonoro apito de “amanhã tem mais”.

Chronus
Enviado por Chronus em 07/07/2013
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