Travessia

Conheço meus limites no que se refere a viagens. Sempre fui como dizem, o bom turista, com bagagem na medida certa, dia marcado para sair e para voltar. Ao contrário do viajante autêntico, tento levar o conforto doméstico para onde vou e com isso diminuo as possibilidades e surpresas nas jornadas, precavendo-me de ocorrências desagradáveis.

Portanto, minha última viagem foi programada com cuidado. Chegada ao aeroporto de uma capital do norte do país, carro alugado à espera, hotel reservado. Tudo correu como previsto e, já instalado, saí para conhecer a cidade, cortada por um extenso rio, bordado com pequenas ilhas e reentrâncias. Segui o fluxo de água distraidamente, percebi as casas rareando aos poucos e o trajeto se tornando mais rústico. A quietude do lugar ia se intensificando à medida que avançava, sem rumo certo.

Abordou-me, então, um canoeiro velho e desdentado que olhando primeiramente meus pés, subiu a mirada até meus olhos. Sustentei seu olhar e ele, em voz rouca, oferece seus serviços e sua pequena canoa para um passeio pelo rio. Apesar de minha tendência natural ao comodismo e conforto, aceitei a proposta.

A canoa era a típica canoa de um pau só e o velho a manobrava com facilidade, usando o único remo. Silencioso, com movimentos lentos e macios penetra o rio e percorre pequenos canais, contorna ilhas minúsculas, túneis feitos de árvores. Hipnotizado pelo correr das águas e o murmúrio suave do escoar líquido pelas pedras e areias do leito do rio, perdi a noção de tempo. De repente, já não vejo margens, mas noto que do céu se aproxima uma enorme esfera vermelha e brilhante, que sei conhecer, mas não identifico de onde. Ela desce em velocidade constante, até mergulhar, suavemente, por detrás do mundo. Um grande vácuo se formou dentro de mim, descubro fazer parte de um todo inexplicável e que a noção de eternidade está ali; resume-se naquele instante, quando não preciso de nada nem ninguém.

Que é esse pulsar lento e compassado dentro de meu peito? Esse ar rarefeito que preenche meus pulmões em plenitude? Paz, silêncio, imobilidade...

Quando desperto desse transe, percebo uma vertente d’água descer pelo meu rosto. Volto-me para o lado do canoeiro, mas seu lugar está vazio. Só agora me dou conta de estar só, no meio de um rio que me parece familiar sem nunca tê-lo visto. Fixo meus olhos em uma ilhota próxima e remo para lá, mas ao alcançá-la constato que se desfez.

Sem qualquer referência ponho-me a remar, com calma e ritmo. O ruído do remo, batendo n’água vira compasso de timoneiro. Não sei quanto tempo remei, mas num determinado momento a canoa parou, surpreendentemente, no exato lugar de onde havia partido. Desci curioso à procura do homem, vasculhei a região por algum tempo, mas não o encontrei.

A sensação de ter visitado um espaço mágico modificou minha vida. Aquele turista cético e previsível, ainda aparece em meu semblante, mas o meu olhar das descobertas foi acionado naquela travessia para o nada, para o tudo.

Nunca mais fui o mesmo.

Célia Regina Marinangelo

Agosto/2006