DEZ                                                     
                                                                                    

Nicolau cofiou a barba, depois passou a mão pela cicatriz. Os grandes olhos pareciam maiores, arregalados, ainda sob o efeito da noitada de álcool. Tentou calçar a havaiana, mas uma tira arrebentara. Chutou-a e se levantou do banco, onde passara a noite, sentindo dor nos ossos. Pôs a mão no bolso e acariciou o metal. Uma ideia germinando. Aproximou-se da vitrina.

Julia sorriu. Um ano de emprego na loja do shopping. O namorado motoboy ajudava-a a alimentar o sonho de ser bailarina. Passou um dedo no cabelo loiro, químico, e foi enrolando-o distraidamente, pensamento longe, nas próximas aulas de balé. Olhou para fora e viu o barbudo. Estranho, pensou, parece... mas uma freguesa entrava.

Elenice aproximou-se com um sorriso. O coração também sorria. Mais uma vez, o marido viajara. Era a chance de novo encontro com o cunhado, que estava de aniversário. De presente, já sabia o que comprar. Curtia a raiva de desperdiçar o vigor de seus trinta anos com um homem que não amava. Nem remorso sentia que tivesse afiliado a criança que era de outro. Aperta a filha que traz no colo e a beija com carinho especial. Idiota. Se não estivesse grávida, jamais teria me casado contigo.

Osias sente os olhos claros faiscarem. Do alto dos seus um metro e oitenta, olha a jovem de estatura baixa, obesa, vestida com uma blusa rosa de onde se sobressaem os volumosos seios. Havia deixado o Seminário de Viamão com a certeza de que compraria no shopping uma imagem da mãe de Jesus, para presentear o irmão drogado.

Carla sente a insistência do olhar de Osias e cora, ainda que o negro da pele impeça de outros observarem tal fato. Que lindinho, pensa, forçando a cabeça para cima, a fim olhar o jovem. Arrisca uma frase em francês, seu idioma preferido. O resultado é que o bonitão faça o sinal da cruz, ao mesmo tempo em que acaricia disfarçadamente o sexo.

Saulo foi ao shopping com a intenção de aliviar a cabeça, depois de haver passado horas lidando com cálculos no escritório. Quando chegou, o primeiro pensamento foi para a compra de uma arma. Depois, se lembrou da ex-mulher. Pura coincidência, balbuciou, e sorriu. Desde o desquite, era a primeira vez que fazia tal associação de ideia.

Joseu olhava para os lados, com desconfiança. Sentia que olhos estranhos, saídos de câmeras fiscalizadoras, acompanhavam-lhe os passos. Desde que se aposentara, por ter entrado em surto psicótico no exército, já tivera uma série de namoradas, mas nenhuma o satisfizera a ponto de casar. Deixou o interior, com o desejo fixo de comprar um presente no shopping, para agradar sua mais recente conquista.

Álvaro fizera a longa viagem desde Fortaleza para se encontrar com a namorada. Mas os olhos claros ficaram negros, quando quis lhe fazer uma surpresa e foi surpreendido: ela o trocara por outro. Passou no primeiro boteco e tomou umas pingas. Pescador experiente, deixara escapar o peixão. Olhou a fachada do shopping e decidiu passar os olhos pelas vitrines. Melhor do que misturar lágrimas com pinga, falou. 

A morena Catarina, charmosa nos seus quarenta e dois anos, olhava as lojas distraidamente, sem muito ver, pensando na briga com a mãe, no conflito com as duas filhas, na chatice do trabalho, na porcaria do marido publicitário. Droga de vida. Falou comigo, estranhou Márcio?

Os olhos cor de mel prontos para nova conquista. Ainda que prefira mulheres mais novas, a morena de mal com a vida o atraiu. Facebookeiro, gosta de misturar a química da plataforma, onde trabalha, com horas em frente à tela, contando histórias fantasiosas para as garotas, com as quais reforça sua coleção de calcinhas e latas de cerveja.

Assim, como se unidos por fios invisíveis, essas pessoas, com histórias diferentes, vão se aproximando para um encontro com o inusitado.

Júlia sorri:

— Bom dia. Posso ajudá-la?

— Quero um perfume.

— Temos este, que é lançamento. A aceitação tem sido boa. É para seu marido? Desculpe. Só quero saber se é para homem.

— É, sim. Mas acho forte demais. Pode me mostrar outro?

A moça vai até a vitrine e dá um grito. O homem barbudo saca um revólver e aponta para seu próprio ouvido. Com o grito, assusta-se e dispara em direção a Júlia, no exato momento em que Saulo está colocando bala na arma que pretende comprar. Vira-se e desfere um tiro contra Nicolau, que, ao cair, despenca pela escada rolante, levando de arrasto Álvaro e Joseu.

Catarina e Márcio correm para acudir Júlia, enquanto Elenice grita descontroladamente, assustando o bebê, que também se põe a gritar.  Osias larga a imagem da Virgem, que se quebra, para socorrer Elenice e a filha, pensando que também estariam feridas.

Carla corre em direção à loja, curiosa com o tumulto e para não perder Osias de vista. Um policial agarra-a pelo braço, ao mesmo tempo em que lhe desfere uma cacetada. Antes de desmaiar, pensa que é uma das “Meninas Poderosas” e que vai dar o troco para o policialzinho atrevido.
   


 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 28/07/2013
Reeditado em 01/08/2013
Código do texto: T4408929
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