MANHÃ DE AGOSTO
                                                                    
— Como ele está?
— Fecha a porta, rápido. Por que demorou tanto?
— Tinha muita gente na venda e não tinha o xarope. Precisei ir na casa da Dona Benta. Esperei que preparasse. Toma. Dá pra ele. Parece pior. A febre aumentou?
— Estou desesperada. Não aceitou a mamadeira, nem abre os olhos. Olha o peito.  Respira cada vez mais fraco, meu pobre filhinho. E a lagoa? Nada? Não subiu nem um pouco?
— Nada. O sol está ardendo. Nunca vi seca assim. Não há nem sinal de chuva. Deste jeito, nosso filho morre à míngua. Terra maldita. Se houvesse outro meio de chegar à cidade. Pobre tem mesmo é que morrer.
— O que é isto, homem? Vamos rezar. Pega o rosário. Ta ali.  Ali, olha, em cima do armário. Se ao menos o padre tivesse vindo, enquanto a lagoa dava passagem.
— De que iria adiantar? Tu ficou comendo hóstias, lavando a roupa do padre, lambendo o chão da igreja e no que deu? No que deu? Que Deus é este? Não vê o pobre do inocente sofrendo, morrendo sem recurso, e não manda chuva?
— Para, Inácio. Não diz besteira. Deus não tem culpa da gente ter nascido pobre e num fim de mundo deste. Mais culpa tenho de ter casado contigo, de ter deixado a cidade, onde tinha trabalho, pra me enterrar aqui.
— Ah, é? Agora a culpa é minha. Trabalho feito um condenado pra botar boia na mesa e comprar roupa e recebo isto em pagamento? Tu é mesmo uma ingrata.
— Desculpa. Fico nervosa. Me dá um desespero de não poder fazer nada. Vamos parar de discutir, o Carlinhos está ouvindo e ficou mais agitado. Coitadinho, nem tem força pra chorar.
— Sabe o que mais? Vou pra cidade sim. Enrola ele.
— Homem de Deus.  É loucura. Como vamos passar? Ta tudo seco.
— Preciso tentar, fazer alguma coisa. Não aguento mais ver meu filho neste estado. Parece coisa do demo.
— Credo em cruz, Inácio. Vê se te benze, faz o sinal-da-cruz, pelo menos. Acho loucura, mas se queres. Pronto. Podemos ir. Segura ele um pouco. Vou pedir pra comadre cuidar dos outros.
— Vou descendo. Não fica com medo, filhinho, teu pai vai te salvar. Meus braços são fortes, vou remar como um condenado.
— As crianças vão ficar bem. Me dá o menino. Ainda é tempo de desistir, a comadre Zefa ficou assustada. É muito risco.
— Vou levar meu filho pro hospital, nem que seja a última coisa que faço na vida. Não posso mais ver isto. Senta. Ajeita ele no fundo. Vai ficar melhor, tampa bem e te segura, a canoa pode encalhar.
— Assobia um pouco, enquanto rema, eu gosto. Escuto e rezo. Pode ser que dê passagem. Neste ponto ainda tem bastante água. A canoa é leve e Deus vai nos ajudar, basta ter fé. Minha mãe sempre disse que rezar é a melhor coisa. Deus nos escuta. Sei que ela tem razão. Lembra quando o Juvenal ficou doente? Fiz promessa e ele ficou bom. Agora, também vou fazer uma promessa. 
— Isto mesmo, mulher. Faz. Faz tudo o que tu sabe. Vou fazer a minha parte. Rezar, não rezo. Não mesmo. Não acredito. Mas vou remar como cuidado, procurando onde botar o remo. Se salvar meu filho, minha vida já ta ganha. Depois, tudo o que vier será lucro. Queria ter a tua fé. Juro que queria. Não tenho vergonha de dizer que minha mãe era mulher da vida. Vivia praguejando.  Não conheci esse Deus que tu fala. Me criei porque a natureza me ajudou. O que tenho é com a força do meu braço que consigo. Ninguém me deu nada. Olha pra lá. Parece que adiante tem mais água. Vamos conseguir.
— É porque estou rezando.
— E eu falando pro vento.
— Estou te escutando, homem. Ouvi tudo. O que houve? Que barulho foi esse?
— Atolamos. O sol me enganou. Desgraçado. Parecia água. Puxa. Não tenho como sair daqui. Veja. É tudo lodo, só lodo preto. O sol me enganou, mulher, me enganou esse miserável. Queima tudo e ainda atrapalha minha visão.
— Bom Deus.
— Já te disse que é coisa do demo, mas não acredita. Que Deus que nada. Miséria. Tenho vontade de dizer todos os nomes feios que sei.
— Como se isto adiantasse. Fica calmo. Há de haver uma saída.
— Não tem, não tem, é o fim. Trouxe vocês pra morrer aqui. Não temos salvação. Sou um miserável, culpado, nem devia ter nascido. Minha vida é uma desgraça.
— Inácio, para de chorar, criatura. Isto não resolve. Vamos pensar em alguma coisa. Me dá água, minha garganta está seca.
— Água? Tu não pegou?
— Não, fiquei enrolando o Carlinhos, juntando as roupa. Tu é que devia pegar a água.
— E agora? Não digo que sou um miserável?  Miserável, miserável.
— Para de bater com o remo. Quer me enlouquecer? Senta um pouco. Será que tenho que ser forte por nós dois? Olha o bebê. Está agitado, não consegue respirar. Segura ele. Assim. Põe ele de pé, precisa de ar. Não sacode. Para com isto. Cuidado.
— Ele está morrendo. Não respira mais.
— Não bate nele. Não resolve. Me dá aqui. Meu pobre filhinho. Vem com a mamãe, vem querido, meu anjinho. O papai ta nervoso, não liga. Pode dormir, a mamãe canta. Fica tranquilo. Nana neném que a cuca vem pegar...
— Chega. Para. Ele está morto. Morto.
— Não. Tu ta mentindo, ele dormiu, não grita. Ele precisa descansar. Me larga. Não joga ele, não faz isto. Não.
— Pronto. Terminou. Agora, ele está morto e enterrado. Enterrado na lama. Pouca diferença faz. Não temos mesmo como sair daqui. Primeiro foi ele, depois nós.
— Tu ta louco. Te odeio, te odeio, monstro. O que fez com nosso filho?
— Me larga, não me bate. Se a canoa virar, morreremos também. Cuida...



 


 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 30/07/2013
Reeditado em 01/08/2013
Código do texto: T4411111
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