DONA BOA
                                            
  
Depois de um dia cansativo na empresa, tinha planejado um banho com sais, um Chopin à meia luz, com o corpo estirado na cama, até Leonardo chegar. A partir de então, seria outra história.

Mal coloquei a chave na fechadura e ouvi Rita gritar:

- Mãe!

Abri, e ela foi falando atabalhoadamente:

- Mãe, corre, o Eduardo está mal, ele não para de chorar, voltou mais cedo do trabalho, não quer falar com ninguém, está trancado no quarto.

Puxava-me pela mão. Fiquei atordoada, mas consegui freá-la.

- Calma, filha! Deixa-me respirar. O que houve?

Voltou a segurar-me a mão, em lágrimas:

- Ele está doente, alguma coisa aconteceu, está desesperado. Mãe, rápido.

Acompanhei-a. Por mais que batêssemos na porta, não atendia. Mil coisas ruins foram me passando pela cabeça, num turbilhão: tinha entrado na droga, tivera um surto psicótico, igual ao avô, ingerira álcool e outras.

Meu filho era equilibrado, aluno exemplar, cumpridor de obrigações de forma admirável. Lembrei-me da chave. Ao abrir a porta do quarto, começou a gritar, cobrindo a cabeça com lençol:

- Sai daqui. Sai. Eu te odeio. Nunca mais quero te ver. Esquece que sou teu filho. Sai.

Rita chorava e se agarrava em mim. Precisei controlar o choro, para não piorar a situação. Aproximei-me e tentei tirar o lençol. Desta vez, além dos gritos, deu-me um empurrão que me remeteu de encontro à parede.

Rita investiu contra o irmão e pôs-se a soqueá-lo:

- Para com isto. Para, mano. Olha pra mim. Como teve coragem de bater na mãe? Como?

Tirei-a de perto do irmão, sequei as lágrimas, apertei-a com um abraço e procurei acalmá-la.

- Querida, vamos pensar em alguma coisa. Vou chamar o médico. Liga para o pai, precisamos dele.

De pernas e voz trêmulas, fechei a porta e fui tomar providências.  Leonardo chegou quase junto com o Dr. Ezequiel. Fiz um relato do que acontecia para os dois.

Enquanto abriam a porta, atirei-me no sofá e solucei. Há poucos dias passara por um susto. Outro agora me desorganizava. Nem sabia o que pensar.

Sexta-feira Santa, aproveitava o feriado e a ausência de Leonardo, que viajara, para dormir até mais tarde. Costumeiramente, ele me despertava para o chimarrão, antes de ir trabalhar. Às sete horas, dormia voltada para o canto, quando ouvi um barulho de algo caindo, no quarto. Virei-me, lentamente, para ver qual dos filhos estava ali. Vi um homem abaixado, aos pés da cama. De imediato, saiu.

Levantei-me, ainda atordoada, e fui até a porta. Ninguém no corredor. Olhei para o lado e dei falta da bolsa e da câmara digital. Corri ao quarto de Rita. Dormia. Fiz o mesmo em relação a Eduardo. Também dormia. Chamei-o:

- Filho, tinha um homem no meu quarto.

Alertamos Rita e nos pusemos a procurar pela casa. Meu coração disparado, a boca seca, um tremor a percorrendo-me o corpo.

Não achamos ninguém. A porta dos fundos arrombada e uma mochila com alguns objetos sobre o telhado, mostravam por onde do homem entrara.

Fiquei assustada com o que poderia ter acontecido e com a audácia do ladrão.

Providenciamos grades e procurei deixar o medo de lado. Mas a situação com meu filho era pesada demais para mim, que nem havia me recuperado totalmente.

Ouvi o médico falando com meu marido. Precisava me recompor. Sequei as lágrimas, ajeitei o desalinho das roupas e fui ao seu encontro, a tempo de ouvir o que dizia para Leonardo:

- Ao que parece, teve uma crise nervosa por algum fato que não quis me revelar. Agora está dormindo, com o sedativo. Será preciso fazer alguns exames. Levem-no ao hospital, amanhã. Tenho um horário livre às dez. É bom que não vá à faculdade.

Passei uma noite de desassossego, indo de hora em hora ver se o rapaz acordara. Esgotada, entrei em sono profundo e somente acordei quando ouvi vozes na cozinha. Levantei-me e fui abraçar meu filho, que conversava com o pai. Meu coração se alegrou, ao ver que tudo voltara ao normal. Porém, quando ele me viu de braços abertos em sua direção, recuou como se visse fantasma, arregalou os olhos, e os gritos começaram:

- Não te aproxima. Não me toca. Vagabunda, puta. Pai, tira esta mulher daqui, manda ela embora.

Fiquei paralisada, com os braços no ar, sem saber o que fazer. Leonardo agarrou-o tentando acalmá-lo. Rita entrou, já chorando. Falavam ao mesmo tempo. Baixei os braços e saí para a rua. Sentei no cordão da calçada, aos soluços, sem reparar na surpresa dos passantes. Não conseguia ordenar as ideias. Parecia ter entrado num redemoinho, sem encontrar saída.

Revi as cenas. Meu filho, então com cinco anos, a me dizer:

- Mãe, tu é bonita.

- Obrigada, amor.

- Mãe, tu é bonita.  

- Obrigada, amor.

- Mãe, tu é bonita.

Então, fingia não ouvir, retirava meu olhar de seus olhos brilhantes. Ele sacudia meu braço:

- Mãe, não vai dizer bigadu?

Mais tarde, as declarações de amor:

- Mãezinha, você é a melhor mãe do mundo. Quando eu morrer, quero voltar de novo teu filho.

Depois, os beijos estalados pelas manhãs, antes de sair para a escola, para a faculdade, com um:

- Eu te amo.

O que se passava com meu garoto, para agredir-me assim? Lembrei-me de meu pai, nos surtos psicóticos, das vezes que teve de ser internado, dos gritos, dos impropérios, das tentativas de agressão aos filhos e à mulher. Sofremos muito, até sua morte. Não. Meu filho, não. Seria insuportável.

Não percebi que um jovem sentara a meu lado. Tocou-me o ombro e falou:

- Desculpe, tia. Posso ajudar? Aconteceu alguma coisa com Eduardo?

Olhei-o sem compreender, dando-me conta de que estava de pijama, sentada na pedra, os cabelos em desalinho, o rosto inchado de tanto chorar. Quis fugir do rapaz, mas ele insistiu:

- Por favor, tia, ele está bem?

Segurei-lhe a mão, puxando-o para o pátio. Pelo menos ali, ninguém nos via. Já não chorava. Perguntei:

- Por que pensa que Eduardo não está bem?

Desviou o olhar, virou o rosto para o lado, enquanto falava:

- Eu ouvi tudo, ontem. Ele ficou transtornado. Eu quis vir com ele, mas ele não deixou. Acho que ficou com vergonha. Mas não vou contar pra ninguém, tia, nunca. A senhora pode ter certeza. Eduardo é meu amigo. E também gosto da senhora, mesmo assim.

Opa! Mesmo assim? O que seria mesmo assim? O que sabe de mim que eu não sei? A maneira como falava, parecendo encabulado e desviando os olhos, fizeram soar um alarme. O que teria acontecido? Precisava esclarecer, e agora.

- Venha, Maurício. Conte-me tudo. Mas na frente dos três. Não tenho segredo.

Recuou:

- Não sei se devo, a senhora sabe...

- Não, não sei de nada. Por isto é preciso que você fale.

Entramos. Na cozinha, a família. O amigo de meu filho foi contando. Faziam um lanche na vizinhança, quando entraram quatro elementos. Um deles vangloriava-se de ter entrado numa casa, na sexta de manhã, com o sol brilhando, para ganhar a aposta. A dona dormia, quando entrou, imobilizou-a. Com o revólver apontado, exigiu que não gritasse. Mataria os dois filhos. E foi uma festa. A dona gostou tanto que pedia mais, jurando que o marido era brocha. E foi um fuzuê danado de bom. A dona tinha prática de puta das boas. Nunca tinha visto mulher com tanta fome. E ainda levara a bolsa da dona e a câmara digital.

Maurício contava e pedia desculpas. Até Eduardo ficou em silêncio, olhos arregalados, lágrimas. 

Então, como se uma descarga elétrica tivesse me atingido, gargalhei até não poder mais, até voltar ao choro convulsivo. Teria outro problema a resolver, mas meu filho não era psicótico. Isto eu tinha certeza. 



 


 
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 02/08/2013
Código do texto: T4416683
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.