O mestre das ferramentas

O Mestre das ferramentas

Eu caminhava por um lugar desolado; sem cor e sem cheiro. O único cheiro era o cheiro de nada. O cheiro do vazio e da solidão; do fracasso e medo. O cheiro da desesperança. Era uma vastidão sem fim, á norte, sul, leste ou oeste. Eu sabia que estava perdido, mas andava mesmo assim. Sabia que em algum momento, algo ou alguém apareceria e me tiraria daquele mundo isolado. E de tanto saber, comecei a duvidar.

Caminhava sobre folhas secas, que se quebravam e faziam um som em conjunto. Era um crepitar triste de folhas mortas. Comecei a achar que estava assistindo um espetáculo dramático, em que o personagem principal, o regente, era eu. E as folhas mortas eram o meu instrumento e orquestra. Eu estava perdido. Melhor dizendo, estava abandonado.

A minha cabeça estava vazia. Eu sabia que havia perdido alguma coisa. Alguma coisa importante. Um amor, talvez. Quem poderia saber? Eu estava sozinho, no meio do deserto de folhas secas. Torci para que aparecesse alguém e me desse a alegre noticia de que portava uma caixinha de fósforos ou um isqueiro. Então era só terminar o serviço.

Mas por que eu estava tão triste?

Tudo era um borrão. Tudo negro; uma treva maçante e dolorida.

Queria lembrar-me e ao mesmo tempo não. Queria andar mais rápido e encontrar um destino. Queria perder a cabeça e sair correndo, cantando ou chorando, tanto faz.

E eu não saberia dizer em que momento a avistei. De longe, parecia um simples casebre. Seria esse o meu destino? Resolvi que lá era o meu lugar. Mas para onde aquilo me levaria? E então comecei a caminhar na direção do judiado casebre. E se fosse uma armadilha? O destino adora me pregar peças. Eu estava me aproximando... Cada vez mais e mais... E mais. Estava a poucos metros, mas não precisaria chegar mais perto para entender o que eu via. Em torno do casebre, somente em torno, variedades de rosas dançavam com o vento suave. Seu cheiro era transcendental e fortificante. Seria ali o paraíso? Mas como uma casinha velha de madeira poderia ser o paraíso?

O meu coração palpitava quando resolvi entrar. A portinha de madeira podre deu um rangido musical quando a abri. E meus olhos encheram-se de pó. Senti cheiro de óleo, solda, madeira... Cheiros que não esperava sentir...

E lá dentro, em meio á sutil escuridão, alguém martelava. O som do martelo era reconfortante. Eu conseguia ouvir o prego penetrando na madeira. Eu conseguir sentir tudo. Será realmente o paraíso?

‘’Aqui não é o paraíso’’, disse uma voz ao fundo. Eu conhecia aquela voz? Perguntei quem era, e sem falar nada, uma pessoa veio até mim. Seu rosto era embaçado, não consegui ver sua feição. Ele acendeu a luz e então eu vi. Eu não estava mais no casebre, não podia. O lugar era gigantesco, cheio de quinquilharias, estantes e mais estantes abarrotadas de ferramentas. Martelos, furadeiras, pregos, chaves... Que mágica era aquela? O lugar tinha uma força incrível. Fui surpreendido pela voz da pessoa embaçada:

‘’O que você vê são ferramentas. De todos os tipos, para todos os fins e funções. O que você vê é a máquina da vida. Os cheiros que você sente fazem parte da máquina. O que você sente é medo. Está desesperado, e ao mesmo tempo maravilhado. Você quer respostas, e encontrá-las é tão fácil quanto fazer um prego penetrar na madeira. Sentir o peso do martelo é sentir a responsabilidade de algo... Algo grandioso. Diga-me, por que está aqui?’’

Eu não saberia dizer. Estava mais confuso do que já estive alguma vez.

‘’Eu sou o mestre das ferramentas. Eu tenho as ferramentas necessárias para que você encontre suas repostas. Eu tenho as ferramentas da vida. Eu controlo a máquina. Agora me diga o que você mais deseja nessa vida?’’

Eu tinha uma resposta?

‘’Eu só gostaria de saber... Saber tudo. E amar’’.

Eu sei que falei baixo demais, mas ele pareceu ter ouvido. Deu um sorriso contagiante. Parecia saber o que fazer desde o momento em que entrei ali naquele casebre mágico.

Ele se encaminhou até uma prateleira e voltou de lá com um livro gigantesco de capa negra e uma rosa. Meu Deus, onde estou?

‘’Aqui estão. A ferramenta da sabedoria e a ferramenta do amor. Você realmente precisa delas? Acho que não. Não precisa de mim também. Sabe o que fazer? Pegue o livro e saberá tudo sobre a vida e o que nos cerca. Esse é o livro da vida, sim, esse é. Pegue a rosa e entregue para a pessoa amada e terá amor, sim, terá amor. Mas isso não lhe parece estranho? Uma pessoa que você não vê lhe dando ferramentas? Ferramentas que você mesmo poderia conseguir sozinho. Você não deve pedir. Faça com que os outros peçam a você, e diga o mesmo que estou te dizendo. Agora pense, você precisa mesmo de mim? Um mestre de ferramentas?’’

Não, acho que não. Eu não precisava de ajuda de um desconhecido para conseguir as ferramentas necessárias. Eu precisava de mim. Somente eu poderia conseguir, ele estava certo.

Então tudo passou a fazer sentido. O meu desespero, o medo de ficar sozinho, o medo de andar milhas e milhas num lugar devastado. Eu precisava de ferramentas. Das minhas próprias ferramentas...

Eu não disse nada, mas ele pareceu ouvir meus pensamentos.

‘’Isso mesmo’’, ele disse com um sorriso.

E então começou a tomar forma. Ficou nítido aos meus olhos. E me assustei. Não precisava de tanta luz para reconhecê-lo.

O mestre das ferramentas era eu.

Matheus de Carvalho

Esse conto foi selecionado para a coletânea Sonhos e pesadelos da editora Aped

Fernandes Carvalho
Enviado por Fernandes Carvalho em 08/08/2013
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