PRAINHA

Modorrenta manhã. Coisas de ressaca ainda em vias de se manifestar. Olhou pela janela e viu o mar calmo, saiu. Caminhando pela orla foi tomado pela solidão, sentiu-se traído pela vida, por Deus e todos os seus auxiliares e predecessores. Ficou-lhe a sensação de que esse negócio de religião foi muito mal inventado. A cada questão insolúvel, a cada labirinto sem volta, a cada questionamento: Deus foi a respósta. Muito mal explicado. Inventam, ficam as lacunas, enfim, a dúvida, essa sim, é etérna e onipresente. Muito pouco, ou quase nada, sabemos de nada. Afinal, se a vastidão do universo que a nós se desenha é realmente o que parece ser, qual a nossa capacidade, como ínfimo átomo, de explicar qualquer coisa que seja. Somos insignificantes criaturas, creio que absolutamente invisíveis diante da vastidão do universo. Se há Deus, existe certamente uma hierarquia de deuses e estafetas e Boys e atendentes e tudo o mais que uma boa organização requer. E não estamos falando destes que se arvoram, cá na terra, e sim dos do lado de lá. Imaginem-se como o último grão de poeira lá do arquivo morto: garantimos, pelo bom senso, que o presidente das organizações sequer sabe da prateleira e do grão de poeira, apesar de, se sabatinado, certamente saber que há um arquivo morto. Pois este deve ser Deus. O resto são todos os outros da organização e creio que o Papa deve ser aquele personagem do Chico Anízio que trabalhava na Globo, se não me engano é o Bozó, que tentava comer todo mundo que não estivesse na Globo ou que por um motivo ou outro queria nela entrar. Metafóricamente, é claro. Se houver um Bozó. Mas não nos percamos do nosso personagem, afinal este havia levantado cedo e estava caminhando na orla vazia, perdido em seus pensamentos (levemente resumidos por nós ainda agora). Pessoalmente ele preferia os deuses da antiguidade, mais práticos e simples, até porquê um para cada coisa. Talvez um deus para a televisão, um para o rádio, outro para a panela de pressão, ainda um para explicar aquela independência absurda, cheia de vontades, que assola o meu "lap-top" vez por outra, e assim por diante. Sem esquecer os mais comuns como o da chuva, do trovão, da colheita, etc. Muito bem, lá ia ele pela praia, distraído, quando deparou com uma pequena garrafa que continha um bilhete. Pensou ser mais um dos seus que resolvera retornar para o remetente, tipo: “return to sender, mister postman” numa versão meio Sula Miranda das coisas. Mas não! Era bilhete de respósta. Vejam só, pela primeira vez na história. Sua amada lhe dizia ser fiel, mas ter a carne fraca. Caralho! Pensou e depois gritou, gritou e gritou até perder a voz, a garrafa e o bilhete. Carne fraca? Só faltava essa. Acordou com o vizinho martelando sei lá o que. Tomou banho, escovou os dentes, fez a barba enquanto fervia a água do café e foi tirar satisfação. Não podia deixar assim: carne fraca! Saiu em desabalada carreira, queria encontrá-la antes dela tomar o trem. Na estação Arthur Alvim viu-a aos beijos com o vendedor de biju e aos gritos correu pela plataforma até que tropeçou e foi parar espetacularmente sob a composição que lentamente se posicionava para receber mais passageiros. Foi um tumulto só, sangue e pedaços de gente para todo lado. A amada recebera um pedaço da orelha, mais precisamente o lóbulo, diretamente na boca. Foi instantâneo, quase um teletransporte. Morreu engasgada ali mesmo, caiu dura derrubando o biju, a cesta e tudo o mais que pudesse estar em volta. Ela adorava mordiscar o lóbulo da orelha, seu tesão mais escondido era morder para valer. Uma noite ela tentou mostrar como queria que lhe mordessem o bico do seio e quase arrancou o lóbulo do incauto, mas isso não vem ao caso. Fato é que morreu bonita, morreu com tesão, tanto que o auxiliar do IML foi preso consumando o ato, na madrugada, gozando, berrando e tresloucado, foi arrancado dalí direto para a delegacia. Primeiro crime de necrofilia, jamais registrado. O delegado achou por bem não lhe dar esta fama, de primeiro. Não podia deixar ele entrar para a história do lugar como primeiro necrófilo e ele, delegado, sequer seria mencionado no “best seller” da promotora de justiça. Foi solto depois do almoço e voltou para a sua praia deserta. Difícil de chegar, dois dias de caminhada mata adentro, morro acima, ladeira a baixo. Rita Lee deu o tom: “quero encontrar pelo caminho um cogumelo de zebú!, e descançar os meus ólhos no pasto, descarregar esse mundo das cóstas..” quando Braguinha disse: “do teu falado feitiço/ eu pouco caso lhe faço/ mandei fazer em São Paulo, mulata/ um capacete de aço”, pulou de alegria e cantou junto: “ e pra ninguém aderir/ ao nosso acordo amoroso/ botei na porta de casa, mulata/ um canhão misterioso”. Gargalhada geral. Palmas e “a platéia ainda aplaude/ ainda pede bis/ a platéia só deseja ser feliz!”