MISTICA

MISTICA

Tivera um amor como tantos: amores que vêm e se vão, cedendo lugar a outros, na sequência inevitável dos amores, deixando boas lembranças ou vagas amarguras, das quais se vai esquecendo no suceder do tempo.

Mas por ela ser tão solitária e absurdamente unilateral, apegou-se a esse amor de uma forma total e desesperada, tornando-o absoluto em seu coração. Perdendo-o passou a viver dos farrapos de suas lembranças, juntando-as como tiras de um longo bordado, cosendo-as ponto a ponto, fantasiando-as com as cores dourados do seu sonho. Alimentava esse amor com a paciência dos mártires, esperando sua volta improvável, já que o vendaval da vida o carregara para distâncias definitivas.

Nessa espera infrutífera partiu para o misticismo e em seus mistérios procurava alento. Essa busca acabou por leva-la a um cafundó onde um cego nigromante ensinou-lhe a magia de umas rezas, (ditas infalíveis) a obrigação de perpetuar aceso o lume de nove velas, o que lhe trariam de volta o amor perdido na inapelável distância. Ela cumpria fielmente tais promessas. E como lhe fora proposto também a cada nove dias, banhava o rosto numa fonte límpida, colhia nove flores nascidas na madrugada e as jogava em nove encruzilhadas. Passou a viver da expectativa do milagre que, embora não se realizasse, sustentava sua esperança em cada hora e em cada dia de sua inextinguível solidão.

Vivendo da obsessão de tal retorno, tecia sonhos infatigáveis. Tão desvelada no cumprimento das promessas que perdeu o contato com a realidade que aos poucos lhe fugia.

Foi então que surgiu a dor. Atingiu-a quando voltava da fonte onde lavara sua angústia, e a fez deter-se, atônita, ante a revelação da existência de seus músculos e ossos. A dor fulgurante trespassou-a, em todos os lados, nos flancos, nos pés, nas unhas, nos cabelos; queimou-a na carne, paralisou-a, fazendo-a ajoelhar-se ante sua força indescritível. No paroxismo do sofrimento faltou-lhe todo o alento e uma náusea mortal sacudiu-lhe as entranhas. Mas assim como veio, assim a dor se foi, inexplicável e instantaneamente, deixando um gosto amargo nos seus lábios crispados e um saldo de lágrimas nos olhos espantados.

E a dor repetiu-se sem aviso, sem reservas. Como uma chibata descia sobre ela, cáustica, indecorosa, sem escolher hora ou lugar. Ela consultou médico após médico; juntas de especialistas declararam-se incapazes de diagnosticar a origem da dor, receitando-lhe apenas remédios para aliviá-la, como conforto.

Apoiada na irrestrita fé nas panaceias, ela sorvia as tisanas. Afeita ao estoicismo da esperança, acreditou que as providências do tempo afastariam dela tal tormento.

Inabalável, nos curtos intervalos de alívio, cumpria a obrigação das velas, das orações, das visitas à fonte, do colher das flores, indiferente ao fatalismo, fiel à expectativa do milagre.

A dor alucinante ao feri-la, tirava-lhe as forças, quebrantando-a, sem reduzir-lhe a coragem ou tirar-lhe a esperança.

Num certo dia despertou sem dores De animo forte empreendeu a rotina: acendeu as velas, foi à fonte, colheu as flores madrugais e se foi pela manhã, buscando encruzilhadas...

O espeto da dor fulminou-a, de forma implacável, corrompendo-a com espasmos de febre, cruel como nunca. Deitou-se na rede que era onde a podia suportar. Sentiu-a crescendo, envolvente, vasta como uma gigantesca onda que a levasse em sua voragem para atirá-la aos escolhos da morte.

A rigor da dor recrescente que fluia de seu corpo como gotas ácidas, o tempo passou.

Trêmula, viu pela janela, no horizonte tinto das cores do ocaso, erguer-se a imensa lua que inundou o quarto com sua luz leitosa, misturando-se à claridade das velas da promessa. De espasmo em espasmo assistiu ao nascer do dia rosa e azul; o sol a tudo invadiu com sua luz vibrante, definitiva, como a dor transbordante que a perseguia. De tempo em tempo estendia a mão e, junto à rede, pegava o remédio que não lhe trazia alívio, mas que ela ainda o tomava sem pensar quando engolira a dose anterior.

Os sois do seu desespero e as luas de sua desgraça sucederam-se no horizonte. Seus olhos aflitos viram extinguirem-se as velas, embora seus lábios gretados repetissem as orações segredadas pelo seu coração.

Tentou contar o tempo inutilmente. Dias e noites se revezavam como sentinelas de sua dor incurável. As velas se apagando uma a uma, lembrou-lhe a necessidade de acender outras, mas faltaram-lhe forças para se mover. Lágrimas desciam-lhe dos olhos, já vazios de qualquer ilusão, marcando suas faces com riscos de sal.

As cores róseas, amarelas, azuis, verdes se perderem na bruma de um cinza de tormenta. Veio o vento trazendo a chuva maciça e um ribombar de trovões distantes. Ela sentiu os respingos no rosto manchado de lágrimas e nos lábios ressequidos que murmuravam a reza do milagre, mesclada a palavras de cem outras orações que a confundiam. A violência da chuva cedeu lugar á garoa que invadiu o quarto com sua névoa fria. A dor envolvia-a no seu vapor satânico. Seus olhos deixaram de distinguir o retângulo da janela ou o contorno das coisas perdidas na penumbra.

Deixou de sentir o toque áspero da rede, como ela se houvesse tornado plumas que a tocassem levemente, e a transportassem nas asas de um sonho.

Assim descobriu que a dor cessara e que seu corpo fluido viajava na bruma, vagando nas águas translúcidas de um oceano de alívio, cujas ondas a levaram por uma rota iluminada de círios eternos, guiando-a docemente ao porto iniludível do seu repouso.

MISTICA

Tivera um amor como tantos: amores que vêm e se vão, cedendo lugar a outros, na sequência inevitável dos amores, deixando boas lembranças ou vagas amarguras, das quais se vai esquecendo no suceder do tempo.

Mas por ela ser tão solitária e absurdamente unilateral, apegou-se a esse amor de uma forma total e desesperada, tornando-o absoluto em seu coração. Perdendo-o passou a viver dos farrapos de suas lembranças, juntando-as como tiras de um longo bordado, cosendo-as ponto a ponto, fantasiando-as com as cores dourados do seu sonho. Alimentava esse amor com a paciência dos mártires, esperando sua volta improvável, já que o vendaval da vida o carregara para distâncias definitivas.

Nessa espera infrutífera partiu para o misticismo e em seus mistérios procurava alento. Essa busca acabou por leva-la a um cafundó onde um cego nigromante ensinou-lhe a magia de umas rezas, (ditas infalíveis) a obrigação de perpetuar aceso o lume de nove velas, o que lhe trariam de volta o amor perdido na inapelável distância. Ela cumpria fielmente tais promessas. E como lhe fora proposto também a cada nove dias, banhava o rosto numa fonte límpida, colhia nove flores nascidas na madrugada e as jogava em nove encruzilhadas. Passou a viver da expectativa do milagre que, embora não se realizasse, sustentava sua esperança em cada hora e em cada dia de sua inextinguível solidão.

Vivendo da obsessão de tal retorno, tecia sonhos infatigáveis. Tão desvelada no cumprimento das promessas que perdeu o contato com a realidade que aos poucos lhe fugia.

Foi então que surgiu a dor. Atingiu-a quando voltava da fonte onde lavara sua angústia, e a fez deter-se, atônita, ante a revelação da existência de seus músculos e ossos. A dor fulgurante trespassou-a, em todos os lados, nos flancos, nos pés, nas unhas, nos cabelos; queimou-a na carne, paralisou-a, fazendo-a ajoelhar-se ante sua força indescritível. No paroxismo do sofrimento faltou-lhe todo o alento e uma náusea mortal sacudiu-lhe as entranhas. Mas assim como veio, assim a dor se foi, inexplicável e instantaneamente, deixando um gosto amargo nos seus lábios crispados e um saldo de lágrimas nos olhos espantados.

E a dor repetiu-se sem aviso, sem reservas. Como uma chibata descia sobre ela, cáustica, indecorosa, sem escolher hora ou lugar. Ela consultou médico após médico; juntas de especialistas declararam-se incapazes de diagnosticar a origem da dor, receitando-lhe apenas remédios para aliviá-la, como conforto.

Apoiada na irrestrita fé nas panaceias, ela sorvia as tisanas. Afeita ao estoicismo da esperança, acreditou que as providências do tempo afastariam dela tal tormento.

Inabalável, nos curtos intervalos de alívio, cumpria a obrigação das velas, das orações, das visitas à fonte, do colher das flores, indiferente ao fatalismo, fiel à expectativa do milagre.

A dor alucinante ao feri-la, tirava-lhe as forças, quebrantando-a, sem reduzir-lhe a coragem ou tirar-lhe a esperança.

Num certo dia despertou sem dores De animo forte empreendeu a rotina: acendeu as velas, foi à fonte, colheu as flores madrugais e se foi pela manhã, buscando encruzilhadas...

O espeto da dor fulminou-a, de forma implacável, corrompendo-a com espasmos de febre, cruel como nunca. Deitou-se na rede que era onde a podia suportar. Sentiu-a crescendo, envolvente, vasta como uma gigantesca onda que a levasse em sua voragem para atirá-la aos escolhos da morte.

A rigor da dor recrescente que fluia de seu corpo como gotas ácidas, o tempo passou.

Trêmula, viu pela janela, no horizonte tinto das cores do ocaso, erguer-se a imensa lua que inundou o quarto com sua luz leitosa, misturando-se à claridade das velas da promessa. De espasmo em espasmo assistiu ao nascer do dia rosa e azul; o sol a tudo invadiu com sua luz vibrante, definitiva, como a dor transbordante que a perseguia. De tempo em tempo estendia a mão e, junto à rede, pegava o remédio que não lhe trazia alívio, mas que ela ainda o tomava sem pensar quando engolira a dose anterior.

Os sois do seu desespero e as luas de sua desgraça sucederam-se no horizonte. Seus olhos aflitos viram extinguirem-se as velas, embora seus lábios gretados repetissem as orações segredadas pelo seu coração.

Tentou contar o tempo inutilmente. Dias e noites se revezavam como sentinelas de sua dor incurável. As velas se apagando uma a uma, lembrou-lhe a necessidade de acender outras, mas faltaram-lhe forças para se mover. Lágrimas desciam-lhe dos olhos, já vazios de qualquer ilusão, marcando-lhe as faces com riscos de sal.

Viu as cores róseas, amarelas, azuis, verdes se perderem na bruma de um cinza de tormenta. Veio o vento trazendo a chuva maciça e um ribombar de trovões distantes. Ela sentiu os respingos no rosto manchado de lágrimas e nos lábios ressequidos que murmuravam a reza do milagre, mesclada a palavras de cem outras orações que a confundiam. A violência da chuva cedeu lugar á garoa que invadiu o quarto com sua névoa fria. A dor envolvia-a no seu vapor satânico. Seus olhos deixaram de distinguir o retângulo da janela ou o contorno das coisas perdidas na penumbra.

Deixou de sentir o toque áspero da rede, como ela se houvesse tornado plumas que a tocassem levemente, e a transportassem nas asas de um sonho.

Assim descobriu que a dor cessara e que seu corpo fluido viajava na bruma, vagando nas águas translúcidas de um oceano de alívio, cujas ondas a levaram por uma rota iluminada de círios eternos, guiando-a docemente ao porto iniludível do seu repouso.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 30/10/2013
Reeditado em 23/11/2013
Código do texto: T4548574
Classificação de conteúdo: seguro
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