Um vento forte balançava os lençóis alvos pendurados no varal, enquanto uma nuvem de poeira vinda dos lados da casa de farinha ameaçava seu árduo trabalho de horas. Seriam cavalos?
Olhou novamente. Nada via ou ouvia. Uma angústia se insinuou em seu ser, enregelando seus ossos.
O vento continuava. O lençol branquinho foi-se com a ventania, caindo no seu roseiral, tão alvo quanto o lençol. Franziu o cenho. Não se lembrava ao certo a cor das rosas Abaixou-se para recolher o lençol. Um espinho traiçoeiro picou-lhe o dedo. Sangue. Arterial. Vivo. Retirou o lençol. As rosas agora eram vermelhas.

Acordou com um grito.
Novamente aquele sonho.
O suor pelo corpo e no lençol amarrotado denunciava uma noite difícil.


Levantou-se. Colocou a mão sobre o ventre distendido. A dor. Aquela dor nunca passava. Provavelmente ela estaria causando seus pesadelos.

Acendeu o lampião. Deveria chamar seu marido?Não, lembrou-se. Ele estava na capital, comprando mercadorias para o bar da fazenda.

A porta rangeu como protestando ser aberta àquela hora. Seriam quatro? Cinco?Não ouvira o galo cantar. Deveria ser quase quatro... Ou quase cinco. De qualquer forma tomaria cuidado para não acordar as crianças.

Pé ante pé dirigiu-se à cozinha.
Sua figura refletida na cristaleira era fantasmagórica. Balançou a cabeça para afastar pensamentos sombrios. A culpa era da dor. Estaria novamente grávida?Não!Possivelmente estava com barriga d’água, era isso. Seu décimo terceiro filho não tinha nem dois meses.
Pelo jeito essa noite ele dormira melhor.
O pobrezinho vinha sofrendo de cólicas noite após noite e mal conseguia molhar a fralda.


Chegou à cozinha. A água da moringa de barro estava fresca. Fechou os olhos e saboreou o raro momento. Infelizmente a dor ficou mais nítida. O galo cantou. O dia seria longo. Precisava arar a terra e plantar mandioca. O inverno não os pegaria desprevenidos. Com seus meninos plantaria feijão de corda e quem sabe um pouco de andu.
Senhor!Precisava se apressar. Mataria o porco e o salgaria. Teriam mesa farta na próxima estação.


Colocou o copo de alumínio na bacia. Mais tarde, antes do sol ficar muito forte, iria até o rio lavar a louça. Talvez pedisse ajuda de uma das filhas. Precisava fazer mais sabão. Por ora, a areia do rio serviria para arear as panelas.

Retornou ao quarto e vestiu seu vestido listrado. Estava um pouco velho, mas ótimo para trabalhar na roça.
Uma leve batida na porta tirou-a do devaneio. Era sua filha do meio, se bem que era difícil classificar como “do meio” a quinta filha dos treze filhos nascidos vivos.

Olhou para a filha. Parecia triste.
Cabisbaixa, pediu-lhe que a acompanhasse.

Seguiu-a até o quarto do bebê. Ele parecia tão quieto... Mexeu nele. Nenhum resmungo. Seu bebê estava morto.
***
Os dias continuaram inclementes.
Nunca entendera a frase a vida continua. Continua para quem?Decerto não para quem morria.
Olhou para as mãos corroídas de soda para fazer sabão.
Pelo o visto a vida não continuava para os vivos também.


Espalhou as barras de sabão no chão sobre uma tábua e limpou as mãos. Precisaria de mais sebo. Seguiu até a pequena dispensa onde o marido guardava a colheita e pegou sua lata de sebo que enchera mês passado. Vazia.

Voltou para o terreiro. O porco havia comido os sabões. Imediatamente soube de onde viria mais sebo. Realmente a vida não continuava para todos.
 
***
Três meses se passaram desde que seu marido fora até Salvador. Três longos meses.

As chuvas chegaram, a colheita feita, nova semeadura provida. E nada de seu marido.

As más línguas davam-no ali perto, em Andaraí, com uma mulher a tira-colo, coberta de rendas e flores.

Olhou para sua sala arrumada. Passou a mão nas almofadas que ela mesma cerzira. Nos quartos, as camas ganharam palhas novas e mosquiteiros para afastar muriçocas. Tudo feito por ela.

Foi para a sala de jantar. A grande mesa de madeira escura fora feita por seu quarto filho. Seus filhos. Seus companheiros.


Sentiu uma umidade na mão. Uma lágrima furtiva. Sequer percebera que estava chorando. Chorando pelo quê?Não sabia.
Enxugou os olhos. Era hora de acender o fogão a lenha. Seus filhos precisavam se alimentar.
***
As dores aumentaram. Talvez por causa dela, os pesadelos estivessem mais frequentes. Sempre o mesmo sonho. O que significaria?

Precisava ir ao médico. Se ao menos seu marido voltasse logo...
Seis meses desde sua partida. Poderia pegar a carroça e ir até Redenção, mas o médico era homem e com certeza seu marido não iria gostar.

Debruçou-se sobre si mesma. Senhor!Que dor forte!
Chamou seu quarto filho. Precisava ir até a cidade.
***
Não havia mais médico na cidade.
O mais próximo estava em Andaraí.

Como iria até lá?Não poderia deixar a fazenda, seus filhos.
Com certeza um remedinho resolveria.

O moço da farmácia arranjara uns comprimidos para a dor. Tomou logo dois. A dor não passou.Seu filho falou com o prefeito de Redenção,seu primo por afinidade.No dia seguinte estaria num ônibus para São Paulo.
***
Mioma. Então era aquilo que estava causando tanta dor.
De acordo com o médico da Santa Casa, era operável. Tudo ficaria bem.

Ficaria em São Paulo para uns exames e, em um mês ou dois no máximo, estaria operada.
Que bom, mas... E seus filhos?Quem cuidaria deles?
Seu quarto filho dera - lhe a resposta: Eles se cuidariam.
                                         *** 

Exatos nove meses seu marido resolvera aparecer.
A pouco menos de duas semanas para a cirurgia. Estava zangado.
Como ela viajara sem sua permissão?
Tentara argumentar que precisava de médico e ele se ausentara por longos nove meses. A culpa agora era dele?Questionara aos berros já arrumando seus pertences para a viagem de volta.

O médico tentou impedir. Sua prima também. Não houve quem o demovesse de seu intento.
A poucos dias da cirurgia estava voltando para a Bahia.
E levava o mioma consigo.
                                        ***                 

Seis anos se passaram. Suas filhas já estavam casadas e viviam em São Paulo. Seu quarto filho continuava presente, sempre a seu lado. Junto com seus outros irmãos, ajudava a tocar a fazenda.

Seu marido, como sempre, estava ausente.
Ao contrário de suas dores, que só aumentavam. Sem trégua. Dia após dia. Noite após noite.


Acabou de recolher os lençóis do varal e seguiu para o quarto. Cantarolava enquanto os dobrava para driblar a dor.

Vislumbrou o filho á porta do quarto. Estava pálido e olhava fixamente para suas pernas. Seguindo-lhe o olhar, viu o lençol que dobrava, antes branquinho, agora estava vermelho vivo. Cheio de sangue.
                                    ***

Estava de volta a São Paulo. Deitada na cama do hospital ouvia frases entrecortadas de ses ditas entre suas filhas chorosas e os médicos. Seu filho, com olhos injetados, olhava para um ponto além dela. A porta do quarto estava aberta e por ela entrou seu marido.

Seu filho deu às costas ao sempre ausente pai, enquanto esse murmurava uma única palavra... Aurora.

Aurora chamou o filho. Tomou-lhe a mão e com carinho a beijou. Olhou para a porta aberta do quarto e sorriu. Finalmente compreendia o significado daquela frase.

A vida continua... Murmurou bem baixinho. Fechou os olhos.
Aurora finalmente descansaria.
Aurora finalmente viveria.