Um Breve Desejo do Não-Ser - Parte I

Os homens pequenos morrem pela espada ou pela fome. Os grandes perecem quando suas idéias não possuem mais sentido, ou quando seu desejo de ser decai perante as mágoas que o mundo lhe gera.

Aquele homem parado no meio da praça sabia disso. Ele observava o sol da manhã com um sorriso cativante no rosto. Seus olhos azuis pareciam reflexos daquele céu que observava e aquele brilho nas íris eram uma estrela que iluminava novas idéias nos rostos de quem passava.

Parecia feliz quando andou até uma pequena mesa na praça e se sentou. Algumas mães cuidavam das crianças em volta. Sorriu para algumas delas e nenhum deixou de ruborizar quando aquele senhor bonito e charmoso observou sua presença. Pareciam meninas quando o observavam. Era como um homem novo na família que de repente amavam com um sentimento proibido.

Olhou para a mesinha a seguir. Lá estava o bom e velho tabuleiro de xadrez. Gostava de se sentar ali todo sábado. Era dia de descanso. Houve tempos em que se sentava aos domingos e jogava todos os dias até sexta-feira. Agora só jogava aos sábados... quando jogava.

Faltava o parceiro certo. Já havia jogado com várias pessoas, mas o homem com quem jogava continuamente parecia muito distraído ou com vontade de deixá-lo nervoso. Não aparecia nos encontros. Vivia com uma ausência tola que ninguém entendia e quem entendia geralmente estava mentindo cegamente quanto ao entendimento.

Já o sujeito ali sentado, vestido com uma blusa branca impecável e calças sociais beges tentava não dar tanta importância ao assunto. Era melhor se ater ao próprio trabalho. Tinha um rebanho inteiro para cuidar.

Ficou surpreso quando o outro jogador apareceu. Sorriu para ele, mas só recebeu um resmungo de volta. Olhava atento para a felicidade que o cercava, com a mães ainda olhando de soslaio para aquele que parecia o predileto. Tinha um jeito paterno de observar que fazia essas mulheres que acabavam de voltar a adolescência parecerem crianças repreendidas.

- Pensei que não viesse – comentou o homem de branco.

Esse que acabara de chegar e agora se sentava vestia um paletó azul e tinha uma barba curta e bem aparada.

- Não falto a compromissos.

- Ouvi falar que você sempre aparece, mas raramente alguém nota – comentou o outro, fazendo sinal para o recém-chegado se sentar.

O barbudo se ajeitou na cadeira de cimento. Olhou para ela incomodado, como se fosse a transformar em uma poltrona almofadada com um simples olhar. Resmungou algo e olhou para a mesa de xadrez.

- Você mexeu nas peças – comentou.

- Eu sempre mexo. Você sabe. Mexo e mudo as peças, mas deixo o jogo na mesma.

O barbudo sorriu e o jogador simpático retribuiu o sorriso. Deram as mãos e olharam ao redor.

- É um dia bom para se jogar? – perguntou o primeiro, que só era primeiro por ter chegado primeiro na praça, mas a questão de ordem e primazia era confusa entre os dois.

- Hum. Não sei.

- Odeio quando você fala não sei. É retórico?

- Faz parte do não ser.

- Se os outros entendessem o seu não ser, entenderiam o meu ser. Você confunde um pouco a nossa vida.

O barbudo sorriu e aquele sorriso cativante ficou escondido no meio da barba, mesmo que ela não fosse grande. Ele retirou um par de óculos, limpou com um lenço azul, soprou, limpou de novo e olhou para a praça sem colocá-los.

- Muita gente aqui hoje.

- Tem muito tempo que tem muita gente aqui. A idéia da multiplicação funcionou bem.

- Não pensei que fosse ser levada tão a sério.

- Não? – perguntou o primeiro jogador.

- Não – respondeu secamente o barbudo.

- Tem que se tomar cuidado com o que se fala com eles, principalmente quando se deixa escrito. Fica difícil mudar depois.

Ele soprou mais uma vez os óculos e os limpou de novo.

- Uma questão de bom senso.

- Com certeza.

Colocou os óculos. Verificou como sua visão se adequava a eles.

- Lentes novas?

- Não. Não tem nada de novo para ver. Continuo com as velhas.

O primeiro jogador mexeu em algumas peças. Estava com as brancas. Escolhera primeiro para começar a jogar primeiro. As peças foram mexidas, mas no fim continuaram as mesmas. Por mais que mudassem de posição e desaparecessem, no fim o jogo continuava igual. Ele mexia mais por diversão do que para trapacear.

- Vamos começar – comentou o barbudo.

- Mas nós já começamos.

- Mesmo?

- Há alguns séculos?

- Só? Pensei que fosse muito mais.

- Falo do jogo metafórico. O xadrez existe a menos tempo do que nós.

- Verdade.

- Verdade.

- Muita verdade.

- É verdade mesmo.

Eles riram da piada que só os dois entendiam. O barbudo até se inclinou para trás e gargalhou. As pessoas olharam. O primeiro jogador pediu desculpa pelo estardalhaço.

- É a vez de quem? – perguntou o barbudo como se estivesse distraído. Nunca estava. Só fingia isso quando estava perdendo. Então olhava de soslaio, prestava atenção na praça e depois refazia a pergunta.

- É a sua vez. Sempre paramos na sua vez.