Guto

Guto era uma criança feliz, sendo acometido por uma triste fatalidade. Em um dia, um susto fez com que não mais parasse de soluçar, ao contrário de muitos que soluçam e se curam a partir do susto. Começou a soluçar, como quem fala, quase sem pausa. Toda forma de procedimento popular foi realizado com o menino. Simpatias, benzedeiras, plantas para mastigar, chás para beber. Após a frustração do tratamento popular, a família conseguiu apoio de conhecidos para levá-lo a um hospital, público, já que eram pobres. Exames feitos, conseguiram uma internação em um luxuoso centro hospitalar que atendia distúrbios parecidos com esse. Quando surge um caso, raro, a possível promoção de um médico que desenvolve um estudo inédito, pode facilitar a um pobre adentrar um recinto que só quem tem muito dinheiro tem o hábito de frequentar. Até no exterior a criatura foi parar. Frustrado, procurou seguir sua vida. ficou famoso, pois o caso foi bem explorado pela imprensa local e depois se alastrou pelo país. Pessoas iam conhecer o “solucinho”.

O menino cresceu e foi perdendo a graça. Outros casos mais pitorescos ganharam notoriedade. Passou a trabalhar em funções que não exigiam esforço de fala. Nas festas com os amigos, era difícil se alimentar e principalmente beber. Uma vez bêbado, soluçava de forma ainda mais engraçada, o que fez com que tivesse vários porres seguidos a esse inaugural. Sabiam quando se aproximava na rua, devido ao forte soluço que ecoava pelo caminho. O primeiro beijo foi uma dificuldade, em um dos soluções mordeu a língua da moça, saiu até sangue. Perdeu o primeiro amor. Estudados comentavam que isso era coisa da cabeça dele. Mas já havia conversado com psicólogos, psicanalistas, terapeutas, xamãs, enfim, tudo que é tipo de gente. Religiosos até tentaram exorcizá-lo. Uma vez, um freudiano tentou buscar no trauma da infância o motivo daquilo, chegando ao momento do susto e mesmo após todas as descobertas, não conseguiu solucionar o problema. Um dia engasgou com um soluço, estava tentando comer peixe, o próximo soluço fez a espinha saltar da garganta.

Estudava e era motivo de gozação, tendo que se matricular em escola para “pessoas especiais”. Havia tomado sustos bem piores e nada fazia com que parasse de soluçar. Conheceu uma mulher que se apaixonou pelo soluço dele. Se beijavam com diversas pausas. Na hora do sexo o soluço abafava o gemido da companheira. Uma vez, quando faziam sexo oral, ele deu um soluço que fez o membro ir na garganta da respeitosa senhora, por causa de um estremecimento forte do corpo, a mulher quase regurgitou o almoço. De qualquer forma dizem que não é bom fazer certas coisas de barriga cheia. Guto tinha tanto soluço que até seu cachorro gania travado, parecido com ele, diferente do latido normal desse tipo de animal. O bicho parecia acompanhar o lamento rítmico do dono. Certa vez, ao volante, quase colidiu. Sua sorte foi conseguir manter o controle no exame prático para conseguir a habilitação de trânsito. Seus soluços eram fortes, a ponto de deixá-lo com dores abdominais. Em algumas ocasiões se engasgava ao soluçar comendo ou bebendo de forma descuidada. Churrascos e momentos com petiscos eram propícias para esses espetáculos vexaminosos.

Um dia, cansado desse sofrimento, conseguiu uma arma de fogo. Mirou o revólver e se preparou para o disparo. Os soluços fizeram os tiros zunirem pela casa mas sem conseguir acertá-lo. A mulher, assustada, procurou consolar o sujeito. Escrevia com dificuldade, pois a letra era tremida pelos soluções e as teclas do computador permitiam uma escrita sem essas deformações, embora demorasse para digitar por conta do mesmo problema. Seus relatos ganharam o mundo, sendo convidado a participar de eventos. Procura se manter discreto. Mas chamava a atenção. Mesmo sem desejar. Quando ia no banheiro, espalhava urina, fazendo com que se sentasse para mijar e aproveitava para cagar junto, quando sentia vontade. Muitas vezes o soluço fazia soltar gases junto quando defecava, com forte estrondo de peidos. Decidindo fazer uma viagem para espairecer. No percurso, jogou o carro ribanceira abaixo. Ficou desacordado por horas. O resgate o levou para o hospital. Quando acordou, a primeira coisa a fazer foi soluçar. Chegou a expelir algumas placas de sangue. Foi submetido a um procedimento cirúrgico brutal em seu diafragma, como tentativa de liquidar com a questão. A esposa, acabou se separando dele, devido ao estresse atual por conta desse problema.

Em uma madrugada, conseguiu deixar a arma presa em uma engenhoca que inventara e a cabeça posicionada na outra extremidade, fazendo com, apesar dos soluções, não desviasse da trajetória do projétil. Deu certo. A bala estilhaçou seu crânio e para garantir, fez um mecanismo que produziu repetições no gatilho, recebendo todo um pente de munição contra o crânio. Os lamentos, o necrotério, a investigação policial. Enterro de pouca gente, caixão fechado. Acordou em outra vida, descobrindo que existia vida após morte. Agora com o espírito, conseguia acompanhar o que ocorria na vida terrena. Só que, como espírito, soluçava. Flutuava pelo etéreo soluçando. Agora nem mesmo conseguia falar, já que as repetições dos soluços não cessavam. Sua fala era soluçar. Eis a solução de sua tragédia terrena. Ficava com saudade dos engasgos e da sua voz. Sentia junto uma rouquidão, com a excessiva exaustão de suas cordas vocais espirituais. Agora, não podendo dispor de uma cirurgia, flutuando sobre sua lápide do cemitério, um pensamento veio em sua mente: “o inferno são os roucos”. Logo esqueceu aquilo e seguiu pela eternidade. So... luçando.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 21/01/2014
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