Uma barata

Num domingo desértico e tedioso uma barata apareceu em meu quarto. Negra, monstruosa e negra, olhos grandes e antenas tenazes, pernas longas e peludas, enfim, uma monstruosidade...

Me surpreendi com aquela criatura asquerosa adentrando ao meu quarto e vindo em minha direção, de súbito peguei minha chinela e tentei acertá-la, de primeiro insucessivelmente falhadas, mas eis que a acertei e suas vísceras foram vazadas para fora, asquerosamente enegrecidas, de contrário a minha crença de que eram brancas as vísceras de baratas - talvez essa minha crença se deva a G.H, talvez. De súbito quando a olhava, se retorcendo agonizante ao chão, com suas entranhas para fora, me lembrava de G.H e seu corajoso ato de comer a desprezível criatura, por um átimo me passou pela cabeça comê-la também, quem sabe esse ato me fosse revelador naquele tedioso domingo qualquer, quem sabe me fosse desvelado os segredos do mundo, quem sabe uma epifania me acontecesse, mas não, a barata não estava morta e eu não tive impeto suficientemente grande para devorá-la.

A barata estava tão vulneravelmente exposta, nua a minha frente. Agitava suas pernas e antenas freneticamente, se arrastou alguns centímetros, ficando parte de suas vísceras no pequeno trajeto, e acabou por virar-se de pernas para cima, era patética sua posição, agitando suas pernas ao ar, fremente, as antenas balançavam irrequietas, lutava contra a impotência.

Fosse G.H. em meu lugar haveria comido a tal barata? Mesmo viva e agonizante? Ou quem sabe a esmagaria por completo para poupá-la do sofrimento e a varreria para a vala do esquecimento? Eu a olhava do alto de minha torpeza indiferente e ela insignificantemente irrequieta mirava-me no ínfimo de sua pequenez suplicando. Será que sentia dor? Impossível! como sou idiota ao ponto de me afligir por um inseto.

De tempos em tempo ela parava de se agitar e eu finalmente me reconciliava comigo mesmo acreditando que finalmente havia morrido, mas logo voltava a se agitar frenética e meu assombro continuava. Pensei em acabar com seu sofrimento, pegar a chinela e dar um fim a agonia do pobre inseto, mas eu simplesmente me comprazia em vê-la fremente e agonizante, com as perninhas ao ar balançando, afinal era um inseto, que mal havia em tomá-la como divertimento no final daquele domingo enfadonho. Ela era todinha minha e vulnerável ao que me aprouvesse fazer com ela.

Ela era minha e me empoderava saber que era dono de algo, eu a amei daquele momento em diante, era minha, e só minha, pertencia a mim como nunca pudera pertencer a si própria, eu tinha total controle sobre ela e sobre seu corpinho, eu a podia dilacerar em mil pedacinhos, mas eu a ignorava em sua dor, eu como detentor do poder sobre sua vida, tinha a chave que a libertaria do sofrimento, a morte, pois quando não se tem as rédeas de si próprio até a morte é benevolência do opressor.

Adailton Almeida Barros
Enviado por Adailton Almeida Barros em 23/03/2014
Código do texto: T4740422
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