A PROCISSÃO DE SÃO BENEDITO

Era dia de festa na paróquia. A festa de São Benedito chegava ao seu final: após a série de novenas noturnas e da animada quermesse, chegou o dia do padroeiro dos congadeiros e das pessoas de cor. A programação, constante dos grandes cartazes impressos espalhados pelos quatro cantos da cidade e pelas principais fazendas e distritos do município, era seguida à risca. Pois se os devotos, os patronos e os voluntários que atendiam nas barraquinhas eram competentes nos seus compromissos e serviços, era forçoso que também a parte sacra fosse realizada de maneira eficaz e dentro dos horários estabelecidos.

Padre Ranzine não tinha grande entusiasmo pelo santo negro. Desde a construção da pequena igreja de São Benedito havia uma certa pendência entre o pároco e os devotos que freqüentavam a capela do alto da cidade. Mas, enfim, a renda que a quermesse proporcionava à paróquia era boa e ajudava bastante nas obras sociais. Por isso e para manter os congadeiros longe da Igreja Matriz, o pároco aquiescia em celebrar todas as cerimônias religiosas da festa do padroeiro dos negros.

— Vamos, Carmelo, apresse a colocação da imagem no andor. Está quase na hora da procissão.

O sacristão se desdobrava para ajudar o padre. Sozinho, tinha de preparar o altar, dispor os paramentos sobre a mesa, encher de vinho e água as galhetas, avisar, com sinais, ao sineiro os momentos de iniciar a badalação, num corre-corre sem descanso.

O andor tinha sido enfeitado pelas “madrinhas” da procissão: as mulheres mais devotas se encarregavam de colocar flores de papel maché entremeadas com fitas de seda e tiras de papel crepon estendidas pelas quatro laterais. Limpavam as extremidades do andor com flanela e preparados para destacar o brilho dourado dos metais. A parte central ficava pronta para nela ser colocada a imagem.

A imagem de São Benedito ficava no altar central da capela. Somente para a procissão do seu dia de glória era retirada, e apenas pelas mãos do sacristão. Ele, Carmelo, e mais ninguém, era autorizado a mexer nas imagens, o que fazia com carinho e devoção. Assim, lá foi Carmelo retirar a imagem do seu nicho para colocá-la no pedestal do andor. Imagem bem feita, em cerâmica, pintada por exímio artista, media metro e meio, aproximadamente, e era vestida com roupas de tecidos finos, feitas pelas já mencionadas madrinhas.

Enquanto padre Ranzine se vestia com os paramentos, em gestos largos e ritualísticos, lá vem Carmelo abraçando a imagem. Ao passar por trás do padre, eis que ambos se esbarram, e a imagem escorrega das mãos de Carmelo.

— Cuidado, Carmelo, vê por onde passa! — A reprimenda do padre veio mesmo antes de ouvir o ploc! da imagem quebrando-se ao cair.

— Ai, meu Deus! Que foi que fiz? — O desespero do sacristão revelava a grande tragédia.

Padre Ranzine, ao ver os pedaços espalhados sobre as lajes da sacristia, imaginou logo a repercussão do desastre. Os fiéis veriam logo um prenúncio de desgraça, um mau agouro, o que seria causa certa de prejuízos financeiros. Pensou rápido. Consertar a imagem, nem pensar, está esfacelada. Tem que ser substuída, mas como?

— Feche a porta da sacristia, Carmelo, não deixa ninguém ver a imagem quebrada. Varra os cacos, limpe tudo muito bem. Vou achar uma solução.

Saindo da sacristia para o altar, a fim de anunciar ao povo uma pequena demora no início da procissão, eis que esbarra de novo. Desta vez no coroinha Luquinha, que se postara perto da porta. O pretinho bem que tentara sair do caminho, mas o Padre Ranzine estava com pressa, quase o derrubou no encontro.

Enquanto falava ao povo, plin! Padre Ranzine teve a idéia. Dirigindo-se à sacristia, passa pelo acólito, pega-o pela mão.

— Vem cá, menino, preciso de você!

Carmelo já tinha limpado a sacristia. Os cacos da imagem estavam numa caixa, debaixo do armário de paramentos, e as roupas do santo dependuradas num cabide detrás da porta.

— Luquinha, presta atenção no que vou lhe falar. — O padre se impunha e não admitia “mas” nem “meio mas”. — Você vai ser o São Benedito na procissão, vai ficar no andor. Tem que ficar quietinho, não pode nem piscar, tá entendido?

O garoto, entre surpreso e atemorizado, obedece, sem saber mesmo o que está acontecendo.

— Carmelo, veste as roupas do São Benedito no Luquinha.

— Padre, isto é um sacri... — Começou Carmelo.

— Pare, pare. Não precisa ensinar o padre-nosso pro vigário aqui. Depressa! Faça o que estou mandando.

Mais rápido do que se era de esperar, eis Luquinha vestido de São Benedito e em cima do andor. As roupas da imagem ficaram um pouco apertadas, mas como só aparecia o rosto do garoto no meio de tantos enfeites, flores, fitas e papéis coloridos, ficou aceitável.

— De baixo, ninguém vai ver a diferença.

A procissão, enfim, teve começo. O sineiro Carimbau batia os sinos com vigor inusitado e os portadores das tochas que lideravam o cortejo de devotos partiram na frente, iniciando a lenta caminhada pelas ruas do bairro. Os carregadores do andor, com muito jeito, ergueram-no sobre os ombros.

— Muito cuidado com o andor, que o santo é de barro! — Recomendou o Padre Ranzine aos fortes homens, devidamente vestidos com as opas verdes e azuis.

Luquinha, do alto do pedestal, estava imóvel: de medo de cair, do terror de estar ali, sem poder se mexer. E se um carregador escorregar, tou frito. Pensava sempre no pior. Se acontecer qualquer coisa, saio correndo que nem um corisco! Nem piscava. Solene.

Quando a multidão se aproximou do andor, a maioria deslumbrou-se com a solenidade dos carregadores, com os enfeites do andor e com a imagem! Tão real, tão bonita. Até parecia viva! E foi nessa observação que se demorou Guelzinho. De mãos dadas com a mãe, foi observando durante boa parte do percurso o andor, os enfeites,o santo. Alguma coisa estava chamando sua atenção, não sabia bem o que era. De repente, reconhece o amigo travestido em imagem.

— Mãe, eu cunheço esse santo!

— Cala boca, minino. Presta atenção, reza com a gente!

Mais um quarteirão e o Guelinho puxa a saia da mãe:

— Manhêe! Eu sei quem é o santo!

— Quieto, Guelzinho!

— Mãe, é o Luquinha. O santo é o Luquinha!.

Sem dar importância ao que o filho lhe dizia, dona Margarida olha de viés para o andor. E reconhece, estremunhada, que o santo tem, realmente, a aparência do Luquinha, amiguinho de seu filho. Que coisa estranha !

— Eu sei que é ele, mãe. Quer ver?

E sem dar tempo a mais nada, grita para o andor:

— Ei, Tiziu ! Olha pra cá!

Luquinha, ao ouvir o apelido que detestava a não mais poder, perde a compostura, e, do alto do andor, vira-se para onde vem o chamado que lhe soa como um ultraje, gritando para que todos ouvissem:

—Tiziu é a puta que pariu!

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE (MG) 10 DE JULHO DE 2001

CONTO # 102 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/03/2014
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