AULAS DE RELIGIÃO

Acontecia invariavelmente em todas as aulas de religião. Irmão Alamando era o professor da matéria, e ensinava estritamente o que constava do “Primeiro Livro de Ensinamentos de Religião”, de autor não mencionado e com o Nihil Obstat, a chancela oficial de autorização para publicação de livros que tratavam de matéria religiosa. As perguntas já tinham as respostas devidas, e toda a matéria consistia apenas em decorar as respostas das respectivas perguntas.

Os trinta e dois alunos (com uma única exceção) se conformavam com o esquema. Aliás, a matéria não era objeto de nota classificatória, mais “AI!” de quem não tivesse as respostas na ponta da língua. Apenas um aluno não se submetia. Era o Zé Pordeus. Vindo de colégio de outra cidade, perturbva todas as aulas do Irmão Alamando com perguntas e mais perguntas.

José Pordeus Amado Souza foi admitido na segunda série do Ginásio Municipal, embora fosse, na ocasião, bem mais crescido que os colegas. Correu a notícia segundo a qual ele estava vindo de um seminário, que já estudara bastante mas que não conseguira uma transferência para a terceira ou quarta série. Com o decorrer do tempo, os colegas viriam a saber que Zé Pordeus tinha dezessete anos e seus conhecimentos estavam muito além dos seus colegas. Tinha boas notas, sabia latim a ponto de ensinar, em aulas particulares, aos colegas, e se destacava no futebol. Fazia parte do time dos veteranos, pomposamente batizado de “Equipe Lancaster”.

Era, portanto, um bom aluno, estudioso, dedicado. Mas nas aulas de religião era um arraso. Ninguém sabia a razão pela qual tinha saído do seminário. Entretanto, suas perguntas feitas ao Irmão Alamando deixavam entrever que ele não estava destinado a ser padre. As perguntas de Zé Pordeus e as respostas do Irmão Alamando transformavam as aulas de religião numa discussão teológica muitas vezes incompreensível aos colegas.

Leandro Góes, que colaborava na edição de “A Voz Do Estudante”, anotava diligentemente os diálogos, na pretensão de vê-los publicados no jornalzinho. Inutilmente, pois o sub-editor do jornal, Irmão Acácio, jamais o permitiu. Dos cadernos de Leandro restaram algumas anotações, transcritas a seguir.

ZP – Irmão, antes da formação do Universo, existia o quê?

IA – Apenas Deus, na sua magnitude plena e autonomia total.

ZP – Tudo foi criado por Ele?

IA – Sim. Todas as coisas do Universo, desde as maiores galáxias ao mais ínfimo ser, tudo é criação de Deus.

ZP – Então, Jesus , seu Filho, e o Espírito Santo, são também criação de Deus?

IA – De uma certa forma, sim. Foram gerados por Deus e têm a mesma natureza de Deus.

ZP – E para que Deus criou Jesus?

IA – Para redimir a humanidade de seus pecados.

ZP –Então Deus sabia que, num determinado tempo de sua criação, os homens iriam pecar, se perder na vida, e precisavam ser redimidos, salvos?

IA – Evidentemente.

ZP – Se Deus sabia, de antemão, que o homem iria cair em pecado e causar tanta confusão na criação, a ponto de ser necessário um socorro do próprio Criador, esse Deus então é muito idiota.

IA – Cale-se, Pordeus!

ZP – Irmão, Jesus é o Filho de Deus?

IA – Sim.

ZP – Logo, foi criado pelo seu pai?

IA – Sim. Mas não se esqueça de que é da mesma natureza de Deus.

ZP – Mas veio depois de Deus,apesar de estar na eternidade?

IA – Eis aí o mistério grandioso: o Filho sempre fez parte de Deus.

ZP – Mas foi criado, isto é, surgiu depois de Deus? E o Espírito Santo?

IA – Que é que tem o Espírito Santo?

ZP – Se o Espírito Santo é o resultado do amor de Deus pelo seu Filho, quer dizer que vem em terceiro lugar na seqüência da Criação?

IA – Da mesma forma que o Filho, o Espírito Santo é da mesma natureza de Deus.

ZP – Mas aparece depois de Deus. Se Deus tem um filho, é óbvio que o Filho vem do Pai, e o amor do Pai pelo Filho – o Espírito Santo — vem em seguida. Logo, Se o Filho e o Espírito Santo aparecem depois, logo, não são eternos como o Pai.

IA – Cale-se, Pordeus!

ZP – Irmão, que língua falava Jesus?

IA – Jesus falava o aramaico,a língua dos judeus em geral, no seu tempo.

ZP – Então, Jesus falava com os discípulos em aramaico?

IA – Evidentemente.

ZP – Então, aquela conversa com o discípulo Pedro foi também em aramaico?

IA – Que conversa com Pedro?

ZP – Quando ele disse: “Tu és pedra e sobre esta pedra erguerei minha igreja”.

IA – Sim, certamente essa ordem a São Pedro foi dada em aramaico.

ZP – Ora, como é que Jesus ia usar uma expressão latina – “Tu es petrus” —para dar uma suposta ordem ao discípulo, que nada entendia de latim? Logo, toda essa história de mandar Pedro erguer uma igreja é pura falsidade.

IA – Cale-se, Pordeus!

ZP – Irmão, quem é Lúcifer?

IA – É um anjo que, cheio de orgulho, não quis se submeter aos desígnios de Deus. Confrontando-se com o Criador, foi lançado ao Inferno, de onde exerce seu poder.

ZP – Lúcifer foi criado por Deus?

IA – Sim, como todas as entidades, seres, e coisas do Universo.

ZP – Deus é onisciente, sabe de tudo. Sabia que Lúcifer iria desafiá-lo?

IA – Sim, Deus sabe de tudo, passado, presente e futuro. Que, aliás, para Deus, não existe. Para Ele, tudo é, ao mesmo tempo.

ZP – Então, por que criou uma criatura que sabia de antemão iria se rebelar contra o Criador?

IA – Faz parte do Plano Divino da Criação.

ZP – Um plano que cria seu próprio inimigo? E que deixa o inimigo sair do seu mundo, que é o Inferno, para perturbar sua outra criação, o Homem? Isto não é coisa planejada, é apenas um jogo, um jogo diabólico!

IA – Cale-se, Pordeus!

ZP – Irmão, que eram as Cruzadas?

IA – As Cruzadas foram expedições para libertar a Terra Santa do poder dos palestinos.

ZP – Quem organizava essas expedições?

IA – A maioria foi organizada por imperadores de países da Europa, com as bênçãos dos Papas.

ZP – A que povo pertencia a Terra Santa?

IA – Depois da morte de Jesus Cristo, os judeus, que eram os habitantes da Palestina, ou Terra Santa, foram dispersos pelo mundo. Foi ocupada pelos vizinhos, os árabes, que se tornaram os palestinos.

ZP – Então, as Cruzadas foram organizadas para expulsar os palestinos da Palestina e devolver o país aos judeus?

IA – Não, os judeus não participavam das cruzadas nem tinham o menor interesse nessas expedições. A reconquista da Terra Santa era para tirá-la do poder dos Infiéis.

ZP – Quer dizer: os Cruzados expulsaram os palestinos de sua terra para estabelecer os poderes dos reis europeus?

IA – A Terra Santa era local de veneração cristã, foi por onde passou Jesus, tinha de ficar sob o domínio dos cristãos.

ZP – Jesus estabeleceu algum governo ou domínio em seu nome, sobre a Terra Santa?

IA – Não, Jesus passou sua doutrina através dos Apóstolos.

ZP – Em nome de quem, então, os reis “cristãos” da Europa tentaram expulsar os palestinos de sua própria terra?

IA – Cale-se, Pordeus!

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Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte (MG), 28 de janeiro de 2002.

CONTO # 140 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/04/2014
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