A Reforma

A caminhada é longa, essa é a primeira vez que faço uma caminhada em São Paulo na madrugada. O frio passa pelos meus braços e é como se cortasse a minha pele, fazendo os pelos eriçarem e ás vezes os dentes rangerem como uma sinfonia desordenada. Não tenho pressa, pois já se foram 27 anos em corridas contra o tempo para o trabalho e um casamento difícil. A história deste Josué que vos fala agora é tão grande quantos os prédios desta cidade e minhas lembranças são fortes e inesquecíveis.

Era uma manhã enérgica e minha casa recebe a sombra da árvore que fica no meu quintal. Acordei com dor de cabeça, já que na noite anterior tive uma briga com Rafaela, minha esposa, sobre uma quantia em dinheiro da nossa empresa, essa discussão resultou na saída dela de nossa casa. Isso foi apenas o resultado de outras brigas banais e mais intensas.

A causa inicial remete a um passado mais fundo, em que Júlio o irmão da Rafaela, desviou essa quantia significativa da nossa empresa. Não foi nem pouco fácil para eu fazer o que mais parecia certo, porém não ousei em demorar muito e fiz uma denuncia a polícia com provas e tudo o que era necessário. Fechei os meus sentidos e deixei o resultado acontecer, a prisão de Júlio foi rápida e prática.

Logo, as brigas em casa aumentaram rapidamente. Não queria descobrir nem me importava o objetivo do dinheiro roubado, eu apenas fiz o bloqueio de tudo ao meu redor com pensamentos pretos e imóveis. Minha sede por justiça foi maior que a própria justiça. Não estava interessado no quanto iria gastar para manter aquele condenado atrás das grades, pois ser roubado não é nada divertido.

Com aquela dor de cabeça e as memórias da noite anterior levantei da cama para preparar um chá e tomar um remédio para afastar toda a sombra que me perseguia. Cada vez que a dor aumentava, eu cerrava os punhos e os olhos. Quando, enfim, abri o armário uma xícara caiu e quebrou-se em pedaços, um palavrão saiu facilmente da minha boca. Não me importei com os cacos de vidro e fui pegar outra xícara, mas quando a peguei, ela também foi ao chão. Dessa vez o meu palavrão foi interrompido pelo barulho da minha janela da sala, o barulho foi de algo que se chocou e ficou parado.

Fui com passos lentos para o lado de fora da casa e algo estava deitado no chão, imóvel e respirando lentamente. De longe percebia que era uma ave, mas quando cheguei próximo percebi do que se tratava e assim, meu coração disparou. O que estava diante de mim era um falcão, quieto e com respiração agitada. A imobilidade dele me assustava, eu sabia que deveria chamar algum tipo de ambientalista ou Órgão do tipo, contudo algo se passava na minha mente fazendo meu corpo parar.

Depois de um tempo tentei segurar a ave, e ela tentou bicar minha mão, foram várias investidas sem sucesso. Por fim, a ave estava mais cansada e desistiu entregando-se a batalha. Rapidamente levei o falcão para o quarto e utilizei a caixa de primeiros socorros que sempre estava presente no banheiro. Uma das asas do animal estava ferida e quebrada, então ela recebeu todo o auxílio imediato e o devido tratamento. Em cada toque meu, ele soltava sons de dor e desespero.

Durante a noite alimentei a ave e deixei-a no quarto de hóspedes, porém os olhares assustados do falcão remetiam misteriosamente as lembranças de Júlio preso e as brigas com Rafaela. Dias se passaram e eu faltava ao trabalho para continuar cuidando e pesquisando, acabei descobrindo que se tratava de um falcão peregrino, com isso eu acabei colocando um nome para deixá-lo menos aflito. Entre uma bicada e outra o Nick aprendeu a sobreviver ao meu lado, exceto que de tempos em tempos, somente durante as noites, eu ouvia o seu piar agudo e longo.

O tempo passou e eu acabei deixando ele ficar na sala para mudar de ambiente, resultando numa bagunça na casa toda, mas eu nem mais me importava com isso. O Nick virou meu companheiro de refeições. Um dia derrubei um pedaço de pão, e para minha surpresa, Nick bicou aquela fatia e olhou para mim como se quisesse entregá-la. Foi algo no mínimo intrigante já que uma ave de rapina não faz nada disso, e essa coisa de sentimentos em animais é muito caricatural.

Mais dias se passaram e eu continuava a faltar ao trabalho para ficar com meu novo amigo, e nossa presença tornou-se menos estranha. A casa parecia ficar mais bagunçada por causa das primeiras tentativas de alçar voo do falcão. Um mês já havia se passado e meus sorrisos eram mais presentes no meu dia e ficaram constantes, meu bom humor mais estável.

O dia da liberdade para o Nick havia chegado afinal, eu sabia que aquele não era um animal doméstico e o levei para o mesmo quintal em que ele chegou à minha vida. Fazia sol e eu o coloquei em meu braço. Depois de uma hora eu me conformei com a ideia de ficar sozinho em casa, então, balancei o meu braço, mas a única coisa que eu via eram as folhas da minha árvore balançando, já o falcão continuava parado. Dobrei o braço e o levantei. Nada aconteceu, exceto ficarmos estáticos, com os olhos nos olhos transportando-me ao dia da armadilha, dia em que fiz a denuncia à polícia e planejei tudo para que a minha finalidade desejada fosse alcançada. O Júlio foi preso numa noite no meu quarto de hospedes. Uma armadilha. Vidas em jogo. A minha cegueira. Os gritos desesperados de um homem declarando-se inocente. Apenas uma peça restante para completar o quebra-cabeça. A explicação.

Depois de um tempo parado olhando para os olhos amigáveis do Nick tudo se transcendeu e sentimentos dentro da minha alma ficaram expostos. Algo continuava a conectar nossos olhos e nossas vidas abertas. Consegui enxergar um algo a mais no momento da ligação. Os piares ficaram calmos. O mundo naquele momento parou e deixava nossos olhos conectados e vagarosamente o Nick inclinou a cabeça para baixo. Subitamente tudo se ligou e as histórias fizeram sentido, assim como as lágrimas nos meus olhos. Foi naquele momento em que decidi fazer o que realmente era certo.

Dirigi em direção à delegacia e solicitei uma visita ao Júlio, fui levado até uma sala e só assim percebi que o mundo é muito maior e mais assombroso do que aquela redoma de diamante que em vivia. Observei toda a condição do meu ex cunhado e assim que ele entrou na sala a face abatida e surpresa estava estampada nele.

-Bom dia Júlio, seria uma ofensa de minha parte perguntar como você está, então vou direto ao assunto. Sem nenhum julgamento meu, por favor, seja claro no que realmente aconteceu.

Uma pausa ficou de leve no ambiente, mas ele começou a falar: - Um dia fui para a rua fazer uma reportagem importante do meu trabalho sobre garotos de rua. No fim da reportagem um garoto de oito anos me pediu ajuda para pagar um café-da-manhã para ele, pois estava há dias sem alimentação. Eu não só paguei a refeição dele como o levei para minha casa e tratei-o como se fosse meu filho, cuidando de toda higienização dele eu perguntei onde estavam seus pais. Esse menino me respondeu que a família morava em uma favela, porém o irmão mais velho dele contraiu uma pequena dívida por causa de drogas. O traficante expulsou toda a família do garoto de casa. A mãe e o pai vivem nos semáforos pedindo ajuda, e o irmão dele se curou do vício, mas eles não tinham mais moradia. Eu fiquei comovido com tudo e como a empresa de publicidade que você e a Rafaela tem faturamento alto, acabei pedindo para ela fazer transferência de dinheiro à minha conta.

Eu simplesmente estava estarrecido com tudo e perguntei: - Mas por que não falou comigo?

-Iria adiantar de algo? O faturamento e aquela empresa são tudo para sua vida. Pedi total sigilo a Rafaela e ela me entendeu. Desculpe-me, eu entendi o seu sentimento. Eu fiz o que era necessário e a família já está na sua moradia nova.

-Coisas me aconteceram nesses poucos meses. Ainda bem que minha vida mudou, pois sempre é tempo de mudanças e devemos acreditar nelas. Apenas te peço perdão por te jogar aqui. – Júlio não disse mais nada apenas se levantou da cadeira e me deu um longo abraço. Neste momento Rafaela chegou inesperadamente para fazer uma visita ao irmão e no fundo dos olhos dela eu já sabia o que ela estava pensando. Fiz apenas o preciso.

-Perdoe-me Rafaela, eu estava cego por sentimentos errôneos.

-É claro que eu te perdoo. Isso está no sangue da família. – disse ela com total razão

Tudo isso me trouxe até esse passeio com o Nick nesta madrugada fria. Retirei a queixa contra o Júlio e ele foi libertado a tempo de ir ao casamento da irmã com o atual esposo dela e foi uma linda festa onde conheci a família que o Júlio salvou.

O meu falcão está no meu ombro direito e posso sentir a leve respiração dele. Chegamos até uma praça com vários outros animais e uma pequena lagoa. Coloquei-o no braço ficando novamente olho a olho e disse: - Então amigão, é hora de você ir, agora você está recuperado e livre. Agora eu entendo que é preciso recuar para avançar. Muito obrigado, você simplesmente passou o seu amor para mim e eu serei eternamente grato por isso. Eu também te amo.

Dessa vez eu inclinei a minha cabeça e deixei ele me bicar como um ritual. Tudo passou em minha mente e finalmente levantei meu braço para ele seguir o seu caminho, pois sua missão já estava completa. Nick levantou voo sobre o céu daquela noite, suas asas não só estavam melhores, voando em forma de ascensão, como também a minha visão sobre o mundo.

Matheus Andrade de Moraes
Enviado por Matheus Andrade de Moraes em 19/06/2014
Reeditado em 01/02/2015
Código do texto: T4851229
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.