534-A EMPREGADA ARDILOSA-

Foi bom enquanto durou a presteza e a atenção de Eleuzina para dona Cândida, no emprego como doméstica. Por apenas três meses Zina (assim gostava de ser chamada) esteve empregada na casa de Cândida e Bernardino, tempo suficiente para que ela revelasse toda a malícia e astúcia no trato com os patrões.

Mesmo aos setenta e três anos, Dona Cândida era uma mulher ativa e disposta. Tomava conta da casa com facilidade, pois ela e o marido eram os únicos moradores. Os filhos criados visitavam-na todas as semanas e ela fazia questão de preparar o almoço: uma feijoada, macarronada ou bacalhoada, não havia prato que a desafiasse. Há mais de trinta anos não tinha ajuda de empregada doméstica e era a dona absoluta da casa.

A rotina de tranqüilidade foi interrompida bruscamente. Uma forte cólica abdominal em Dona Cândida, um internamento hospitalar e a cirurgia conseqüente exigiram a admissão de uma empregada para ajudar Bernardino a cuidar da esposa convalescente e da casa.

Zina se apresentou, indicada por uma conhecida, e foi logo contratada. Bernardino, ao examinar a carteira profissional da mulher estranhou a seqüência exagerada de empregos pelos quais passara a mulher, com quarenta anos, bem apessoada e extrovertida.

Por três meses, ela foi assídua e pontual, se ignoradas as poucas vezes em que se atrasara ao chegar ao serviço, devido a problemas com os dois ônibus que tomava diariamente.

Nesse tempo, a patroa foi se re-estabelecendo e aos poucos, assumindo o comando da casa. Por mais atento que fosse Bernardino era complacente com a empregada e não exigia a perfeição nos serviços que a esposa passou a demandar, quando saiu da cama e começou a andar pela casa e examinar os cantos empoeirados, a comida feita com excesso de gordura, o desperdício de material de limpeza — coisas que acontecem normalmente quando a casa fica por conta da empregada.

Dona Cândida era paciente, mostrava à Zina como queria que as coisas fossem feitas, como os temperos e a gordura deviam ser moderados e as quantidades bem medidas, para evitar desperdício.

Não houve atrito entre as duas, mas Zina foi perdendo a vivacidade, e começou a reclamar de uma canseira sem fim. Até que um dia, foi ao médico, fazer uma consulta.

O médico não deu o diagnóstico, mas concedeu-lhe uma licença de quinze dias, para se recuperar da fraqueza. Antes de terminar a licença, Zina voltou ao serviço médico, pois se sentia cada vez pior. Um exame mais rigoroso não evidenciou nada de grave, mas ela foi internada no “Atendimento de Urgência” para tomar soro e fazer alguns exames.

A chapa de Raios-X mostrou uma sombra diagnosticada como pneumonia. Zina foi transferida porá um Hospital, a fim de receber tratamento.

Isto aconteceu antes de completar noventa dias de trabalho. O internamento para tratamento durou outros trinta dias. Após alta, o médico teria lhe recomendado mais um mês de descanso, após o que nova perícia lhe daria permissão (ou não) para retornar ao trabalho.

Zina foi “enrolada” (o termo é dela) pelo INSS, que protelou a perícia por mais de sessenta dias. Então, ela procurou os patrões para reassumir o emprego.

Bernardino e dona Cândida, de boa fé e sem experiência no trato com esta situação, deixaram que Zina voltasse a trabalhar como empregada doméstica.

Isto foi numa sexta feira. No sábado, ela chegou chorosa, de olhos fundos, dizendo que, infelizmente, não poderia continuar, pois tinha de tomar conta dos dois netinhos, já que a filha arranjara um emprego a fim de sustentar a casa, etc. e tal. Pediu um “acerto de contas”, falando em parte de férias, de 13º. Salário e “tudo de direito”.

Bernardino visitou seu amigo Alberto, contador e pediu-lhe orientação.

— Bem, com a volta da empregada, quebrou-se algo que estava configurado: abandono de emprego. Se ela não tem nenhum documento que comprove a necessidade de ficar fora do serviço após o internamento no hospital, a sua condição era de faltosa ao serviço, e por mais de 30 dias — isto é abandono de emprego. É um golpe muito praticado pelas empregadas domésticas.

— Quero solucionar tudo nos conformes da lei. — Bernardino já havia percebido a esparrela em que havia caído.

Passando a mão na esferográfica, Alberto, o contador, foi calculando tudo o que a ex-empregada tinha direito. Redundou numa expressiva quantia, maior do que ela havia recebido nos três meses de trabalho efetivo.

— Descobri! — Comentou com a esposa, ao assinar a vigésima terceira baixa de emprego, na carteira profissional de Eleuzina — Agora compreendo por que esta mulher não para em emprego nenhum. Aplica um golpe atrás do outro.

— Coitada! — Disse dona Cândida. — Talvez o mal dela seja outro: alergia aos serviços de doméstica.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2009.

Conto # 536 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/11/2014
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