TOTEM - primeiro fragmento

PARTE UM

Prosperidade. Peri se deparava com a mata; panos de prato, roupas de banho e filhotes felinos brincando com a curiosidade e o deslumbramento. Vias de fato, modos e maneiras diferentes de conseguir o que se deseja. Pensamentos silenciosos como a bruma da noite, misturados com as baforadas do cigarro e o cheiro do incenso. Cidades que passam e pulsam em ritmos diversos. Suores e velocidades tão enigmáticos quanto os olhares que se cruzam e consubstanciam-se no espaço. Carícias. Peri olhava o céu e sentia o cheiro da chuva que se aproximava trazendo o cio à cidade. Mensagens telefônicas e intuições telepáticas, paralelepípedos e ruas de madrugadas afoitas. Deus passando apressado com suas compras, pragas e preces. O silêncio abrupto. Inesperado como as tempestades que sacodem os dias repletos de sol e ventos. Pêlos pudicos cortados. Sem os pudores o silêncio enche-se de som. Menções luminosas e cartas marítimas. O sonho dos que velam a noite das distâncias e profundidades, das estratosferas, círculos de luz, luas e sensações de delírio. Sofreguidão, os olhares se tocam no infinito dos corpos que se completam em sorrisos, dúvidas e dádivas. Caminhos que abrimos com a alma. Caminhos sutis, definidamente persuasivos. Seria o bastante para que todo o mundo calasse sua civilidade do artificial; um único momento e Peri teria abalado em disparada através do corredor. O importante era seguir em frente, enquanto os elefantes esguichavam-se em chuva, mesmo porque o sentido que ele obtinha guiava-o na noite. Um processo de encaminhamento numa direção rumo ao infinito do agora. O sol se punha e Peri não sabia o que pensar. Era importante observar o que queriam e tinham em mente. Os cantos propagavam-se há horas e o silêncio do quarto era um planeta visto por dentro, um feto milenar crescendo e comendo o próprio ventre para depois se transformar nele, um outro. O que teria feito até então? Olhos nos olhos veria tanto quanto podiam ver seus sonhos.

capítulo um

Teriam passado eternidades; o piano tocava suas músicas e as janelas cumprimentavam-nas com a beleza de uma mulher maliciosamente despercebida na janela. As noites eram pensamentos envolvidos em éter, um corpo etéreo desfilando no estilo antigo do velho hotel em frente, como se o todo fosse um indecifrável contorno de vida, um brinde em frente ao mar, porque a mulher era apenas um convite velado em meios aos traços das pequenas janelas e tetos altos. Mas por qual razão Peri se deparava com uma sensação hipnótica? De onde estava, divisava um conjunto geométrico, cada linha com o impacto de gerações, a mulher vinha à janela e seu corpo de desejo projetava-se no espaço, contorcia-se pelas formas arquitetônicas do hotel e oferecia discretamente os lábios. O piano ressonava com a visão de um mar próximo, inundando a distância de perplexidade. Ou seja, uma hóspede efêmera no Hotel Atlântico enquanto a vida passava encontrando motivos.

capítulo dois

Peri andava nas ruas e seu corpo carregava o peso do mundo. Um mundo de épocas remotas. Sua memória divagava com os sons dos carros e suas acelerações, seus pulsos e arranha-céus. Porque uma noite vazia era uma estrada que escorria de suas veias! Uma noite vazia era uma ínfima parte de uma noite maior. Peri pensava e seus pensamentos entrecruzavam-se e criavam o absurdo. Abortavam, por vezes, a própria realidade caótica dos dias; o claro era uma cor de silêncio em haicais levados pelo ópio dos budas esquecidos de si. Peri planava pelos prédios conhecendo as alturas do desejo humano.

capítulo três

- Parque Balneário Hotel, Boa Noite... Alo! Alo?

Como não era cabível a possibilidade do dia, em virtude da escuridão espessa, nada mais natural do que saudar a noite, mesmo às duas horas da manhã e sem que ninguém respondesse do outro lado da linha. Uma mulher desconhecida, que se fez passar por uma de nome Paula, ligou para o hotel com uma voz que mais parecia um espasmo de gozo, porém suave e profunda. Havia dois dias que ela não tornara a ligar; da última vez, foi interpelada com palavras nada agradáveis, talvez vítima de um ciúme indecifrável. Agora, Peri, recomposto da dúvida que o invadira, intuía que era a mesma mulher:

- Pode falar; sem medo - Peri esperava uma resposta que confirmasse suas intuições.

- Eu te amo.

- Como assim? Quem é você?

- Uma admiradora.

- Você mora onde?

- Ponta da Praia.

- A televisão está ligada. Quem está assistindo a um jogo?

- É meu pai; ele está quase dormindo.

- Eu queria lhe pedir desculpa pelo que eu lhe falei; eu estava chateado e pensei que você fosse outra pessoa.

- Quem?

- Uma pessoa apenas. Qual seu nome?

- Alessandra.

- A outra vez você disse que era Paula.

- Mas é a primeira vez que eu ligo.

- Acredito...

capítulo quatro

Um momento qualquer que se propagava e inundava as ruas com as águas da chuva. Alagado geral; Peri concentrava-se num mundo difuso, criaturas virtuais que rondavam o enigma dos números. Tudo era uma questão de suscetibilidade ao vôo, ou para ser mais preciso, ao infinito. Lembrava-se da sensação elétrica que percorrera seu corpo enquanto dormia. Ela subia dos pés à cabeça produzindo um som de estrela, os átomos vibravam e o mundo real era uma sombra de outros mundos. Energia. Outra vez, o lobby do hotel fora invadido pelos turistas, junto deles, várias companhias de teatro com seus elencos importantes e famosos. Aos poucos entraram na recepção e tomaram a sala da gerência, Peri observava a cena enquanto alguém lhe passava duas pontas de maconha. Ao acendê-las, o supervisor da noite perseguiu seus passos para incriminá-lo, porém, quando menos se apercebera, todos haviam sumido. O silêncio foi cortado pela presença de uma mulher alta e magra, de cabelos longos e negros, a pele clara e os olhos muito curiosos. Estava ao lado esquerdo de Peri e chamava-se Clara. Ele a fitou de perto e sentiu que a moça tencionava muito mais do que mostravam as suas coxas. Tomou-a nos braços e afagou-lhe o corpo justamente quando um hóspede lhe pediu a chave de seu apartamento. Como não queria parar, uma nova confusão se iniciou e os turistas e demais hóspedes foram reaparecendo. Desta vez, ele fugiu com a primeira mulher que encontrara, porque a outra se perdera no turbilhão. Peri não queria parar e seduziu a mulher contra a parede de um corredor em forma de círculo; quando acordou olhou para a rua e viu que as mulheres seguiam uma alegre procissão de cortesãs. Voltou ao hotel quando as coisas já estavam calmas. Ficou sabendo que tudo não passara de um tumulto que se propagou pelos quatro cantos do mundo, onde turistas, troupes de atores e belíssimas mulheres apaixonadas provocaram deliberadamente o caos.

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 09/06/2007
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