TOTEM - segundo fragmento

capítulo cinco

Um dia de sol em meio à névoa do dia de ontem; para Peri era uma questão de tempo. A libertação dependia disso. A Serra do Mar com seu caminho tão misterioso, quanto antigo era o sentimento de busca, provocava aos olhos o fenômeno da fascinação. Os vales e as nuvens que baixavam de encontro à face teciam verdades esquecidas pelo comum dos homens. Era possível divisar toda a Baixada Santista, o Porto de Santos, as imensas indústrias de Cubatão, a beleza do mar e o próprio contorno verde que se estendia nos vácuos deixados pelo homem. Antes era um único lugar chamado São Vicente, onde os índios e os portugueses com suas naus e espelhos e quinquilharias se encontraram. E se esses mesmos índios tivessem conhecido no decorrer de sua vida um único dromedário, talvez a história fosse outra. Mas como era sábado e chovia tão insistentemente, os índios ficaram no meio da praia observando os pingos da chuva caindo entre seus olhos curiosos e o reflexo do espelho. Mais tarde perceberam que nada mais podiam lhe dar que a ilusão das imagens. Uma troca injusta, pois os índios possuíam a alma limpa daqueles que não conhecem a virtualidade. Peri pensava na Serra. Indo a São Paulo, encontraria uma mulher preste a cair no esquecimento de si mesma. Algo trágico; provocada pela não aceitação, ela passara a vida trocando de alma. Tinha sido muitas coisas e estado em muitos lugares em pouco tempo.

- “Normal; só tem você e eu” - ela lhe dissera num dia guardado na memória da imaginação.

A avenida Paulista resplandecia num sol a pique enquanto a esperava. No MASP uma exposição de fotos que caíam uma sobre as outras, suspensas por um mural negro, traduzia o estigma da mulher. Várias fotos tiradas na zona do mais baixo meretrício do Rio de Janeiro, um poema móvel.

Em plena Paulista de esperas, acordara de um sonho e percebera que os fatos teciam uma intrincada textura de paradoxos e paradigmas. Como o olho humano ajuda a imaginação a observar o inexpugnável, Peri sentia que o cheiro e as cores da luz que baixava obliquamente na avenida das coisas emitiam mensagens, sinais que indicavam determinados caminhos; era possível relacioná-los e pressenti-los. Todavia, era um momento de espera. Uma atriz loira com um longo vestido negro fazia volteios diante à câmera, bandas de música e casais repousavam na mureta enquanto ardiam ao sol de suas esperas. Vendedores de livros e vendedores de arte, vendedores de tudo. Senhores respeitáveis de altíssimos negócios, milhões de pequenas vidas que se entrelaçavam mesmo sem saber. A Avenida Paulista era uma tarde de sol.

Peri ainda sonhava, um mundo de transmutações, uma alegoria absoluta por onde passavam personagens estereotipadas pela insensibilidade.

Atravessou. Voltou e ela estava do outro lado, no mesmo lugar onde estivera na última hora. Esperou que ela viesse ao seu encontro. Seus movimentos eram nervosos, sabia que ela estava tão tensa quanto ele. Os cabelos negros à altura dos ombros, os fios retos que se chocavam contra o branco de sua blusa e o fraco vento dos carros. Toda ela uma sombra de si mesma. Quem teria sido afinal esta mulher? Alguém que se modificara a ponto de estranhar-se? Mas mudara de um modo constante, sempre buscando afirmar-se em outra personalidade que não a sua. Agora se enganava como uma mulher rica, o olhar sempre altivo significando nojo. Uma pilhéria ou um mistério. Olharam-se nos olhos e seus lábios quase se tocaram, o que foi prudentemente evitado. Ambos na Paulista a perguntar como fora possível chegarem àquela situação. O acaso, perene e insensato controlando os fatos, deixando um rastro e se propagando pelo indefinível...

capítulo seis

Peri olhava em volta da mata e procurava a árvore mais alta, cuja copa antiga avistara em algum presságio ou sonho esquecido na tempestade dos dias. O vento corria pelas folhas e criava redemoinhos, um canto de pássaro ecoava com as primeiras chuvas e Peri era cada um de seus passos pela mata. Peri olhava em volta e vislumbrava os dragões do Templo, vermelhos e azuis cuspindo seu fogo nos ares, abismos e imensos montes tibetanos. Sua guerra milenar conseguira derrotar os gárgulas e agora voavam livremente. Em breve ele teria que os enfrentar e estando na árvore os dragões o veriam e ele lançaria ao céu a sua ira. Mera estipulação. Todavia, Peri caminhava em direção ao que procurava. A mata entrava-lhe pelas narinas como imagens que aprendera a discernir no meio do caos; seus cheiros e umidades representavam os fragmentos de Deus, com os quais a memória construía uma longa e ininterrupta cadeia de aprendizados; por ela Peri se guiava e sentia o medo e a certeza de vencê-lo entregando-se à eletricidade química que só ele provoca, o “ir”. Vencer superando-se.

Teria pensado em muitas outras coisas e como poderiam relacionar-se entre si. Um paradigma no meio da incerteza dos chips e idéias elevadas. No meio da mata, um espaço amplo. Um mundo paralelo de eletricidade e inteligência, conhecimento e informação, um lugar capaz de substituir os átomos pelos bits; universo em expansão, um ciclo de explosões e implosões contínuas. A constante do caos. Quando Peri mergulhou no hiperespaço, seu corpo transformou-se em luz e a velocidade do som era um feixe de raios de sol cortando o vácuo. Estrelas e constelações surgindo abruptamente do nada, distâncias por onde o tempo tomava o espaço e deixava-lhe correr pelos dedos. Peri fechou os olhos e viu a copa da árvore no meio do lago repleto de virtualidade. Os dragões comiam seus frutos e o observavam. Ergueu-se do solo e levitou na frente de seus olhos, sentindo o calor de suas chamas. Ao olhá-los, ocorreu a Peri que em um só momento tudo poderia ser mudado. Aproximou-se ainda mais e tocou suas frontes, de onde surgiram muitas outras cabeças de cores diferentes, ao tentar controlá-las eles se perdiam e as inúmeras cabeças se enroscavam uma nas outras e aos poucos perdiam a noção de si e caíam desfalecidas. Ao se chocarem no chão incendiavam-se e explodiam nas nuvens. Peri abriu os olhos e as ruas da cidade ainda mostravam no céu o rastro dos dragões.

capítulo sete

Quando voltou, uma massa de pessoas se acotovelava em frente ao hotel. Faixas, cartazes apitos e microfones; vedetes dançavam em cima de um caminhão-palanque onde um sindicalista discursava, incitando a massa a mover-se e gritar por melhores condições de vida. Muitos conversavam entre si e alguns jogavam cartas. Peri entrou na multidão e apercebeu-se da greve. Ninguém entraria para trabalhar, cruzariam os braços. Os hóspedes estavam nas janelas e pediam para que os trabalhadores voltassem ao trabalho, porque há dias não comiam e não havia quem os servisse na piscina ou providenciasse a arrumação dos seus quartos. A situação era crítica e Peri preferiu jogar uma partida de xadrez com o mensageiro desocupado. Os dias passavam e aos poucos as vedetes pararam de dançar, o sindicalista falava menos e os hóspedes começaram a cuidar de suas necessidades surgidas da greve. Peri resolveu caminhar na praia, sentou-se num banco e começou a fumar um cigarro. Olhando o mar pensou em tudo que lhe ocorrera nos últimos tempos e no que ainda poderia lhe ocorrer. Caminhou em direção à rua e apercebeu-se que duas mulheres o olhavam atentamente. Chegou perto delas e lhes ofereceu um cigarro, acendeu-o e ficou vendo a fumaça subir. Elas sorriam e não entendiam como era possível a fumaça ser tão leve. Andaram os três pela beira da praia e observaram o por do sol. Sentaram-se um ao lado do outro, Peri estava no meio e sentia o calor de ambas. Levantou os braços e as abraçou, elas sorriram novamente e beijaram sua boca. Levou-as para casa.

capítulo oito

Peri recordou-se que Anaximandro contemplava o ilimitado e estarrecia-se com o princípio de todos os cosmos. Uma pura e simples explosão de apeiron, originando a diversidade dos mundos e a complexidade das coisas. O apeiron separava-as e a ele retornavam; a justiça era a separação e o encontro, a dissolução e seu término e sua origem e o motor contínuo da eternidade. Mas que eternidade é esta comparada ao simples vôo fatal de uma borboleta? Peixes subindo a terra e quebrando suas cascas, homens nascidos de peixes e a água transformando-se num fogo transparente envolvendo a Terra. Peri pensava nos gregos de hoje e não entendia o que poderia ter substituído a filosofia pelo ócio. Então pensou no trabalho e viu que ele sustinha nas suas engrenagens a força da repetição responsável pelo equilíbrio. Sem o trabalho as pessoas entregavam-se e morriam, não interessando se o universo cessava e continuava e se eles próprios tinham nascido dos peixes. O certo é que a filosofia servia-lhe de consolo, ativando o espírito para o sutil das coisas. E antes a sutileza que a dissolução, pois Peri sabia que sempre é preciso ser forte, inclusive para chorar na chuva ou ver o mar enfurecido quebrando nas pedras.

capítulo nove

Agora que a greve tinha acabado, pois se passaram muitos dias antes que Peri resolvesse separar-se das duas mulheres que conhecera na praia, o hotel voltava a sua rotina. Atentemos para o fato de rotina ser um pressuposto nada convencional, em se tratando do hotel. Os hóspedes hindus, com suas roupas de algodão cru e leves como o vento, conversavam no lobby sobre alguma inentendível concepção religiosa, ou sobre os ratos e os templos de adoração. Palavras milenares ditas e repetidas pelos séculos afora. Os japoneses com seus notebooks e tecnologias de ponta navegavam com os gregos e, amiúde, encontravam-se pelos corredores do hotel com os mexicanos. Os argentinos chegavam aos grupos e contrastavam com o silêncio dos árabes. Ao telefone as mulheres perguntavam sobre seus supostos homens e números de apartamentos. Cantoras bêbadas ligavam para a recepção e conversavam sobre suas vidas carregadas de tantas coisas que elas já não conseguiam lembrar ao certo quais eram. E os músicos e incansáveis bandas suando loucura chegavam do show e bebiam cervejas e mais cervejas enquanto conversavam com suas tietes e fãs e empresários sedentos e apressados. Tudo ao mesmo tempo, tudo no lobby do hotel acontecendo concomitantemente com a clara manifestação de medo que Peri observava nos olhos de D. Zulmira, mãe de D. Dayse. Duas senhoras que viviam no hotel há muitos anos. Chegaram ainda muito jovens, como turistas que vêm descansar nas praias. Vinham duas vezes por ano. Depois começaram a vir mais e mais vezes. Quando se aperceberam, suas correspondências já tinham o endereço do hotel. Eram duas senhoras muito sós e simpáticas que a todos conversavam com respeito e cordialidade. Porém, algo fazia com que Peri procurasse enxergar um pouco mais longe. Não dormiam a noite e comiam sempre a mesma refeição sem sal no almoço das 15:00 horas; todos os dias a mesma coisa, tomavam remédios para suas doenças e tinham a impressão de continuarem doentes.

Mas no que teria se transformado a medicina moderna? Os doentes voltam do hospital piores do que entram; aos pacientes receitam listas de remédios e mais remédios, cujas doses são aumentadas progressivamente, tornando o corpo cada vez mais fraco e incompetente para a cura. Tornando-os viciados e dependentes, o ciclo torna-se asfixiante e os doentes têm a vida prolongada, numa outra espécie de morte, a morte clínica, a morte da medicina. Por que pensar que o homem saudável não necessita de cuidados médicos? Porque hoje apenas se remedeia, não se vê a doença, o estado enfermo, como um processo de vida, uma seqüência de acontecimentos cotidianos. A indústria tem fome e é preciso alimentá-la, pois o homem aprendeu a obter lucro de qualquer situação, seja ela qual for. Todavia há os progressos. Conseguem milagres que antes eram impensados. Máquinas sofisticadas, transplantes delicados, tomografias complicadíssimas, próteses perfeitas, avanços indizíveis nos processos químicos, manipulações de estados mentais e prolongamento de vida. Mas cada um destes itens significa dinheiro e a maior parte do ser humano é pobre. Para Peri, o homem havia se tornado um processo contínuo de artificialização, quimificando sua vida e seu organismo. O homem esquecera de como respirar.

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 09/06/2007
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