TOTEM - terceiro fragmento

capítulo dez

Na cobertura do hotel divisava-se a orla da praia e os seus inúmeros prédios. Uma vez, Peri observara os telhados da cidade que ainda conservavam algo de antigo. Um contraste de telhas de barro e heliportos. O amor, enfim. A mulher que sente ser observada e cora com a imaginação romântica de seus olhinhos azuis. Uma cidade que abre suas janelas para o céu estrelado e as ruas congestionadas. Moradores de prédios tortos que, pouco a pouco, declinam-se mais e mais e tombam como torres européias; a força das marés e a sucção contínua da areia. Um lance de dados no dominó da cidade, no xadrez empírico das realidades escondidas atrás de cortinas, olhares esquivos e situações adversas. Peri olhava o céu, as nuvens modificavam-se com o vento e delas surgiam desenhos e quadros de figuras humanas transformando-se em animais, furacões de desejo e carnavalização de suores noturnos. A cidade respirava a sua noite particular e os vários mundos coexistiam entre si numa harmonia caótica e repleta de multiplicidade. As pessoas andavam pelas calçadas e sonhavam com dias melhores. Os carros piscavam suas luzes e Peri escutava o fôlego suspenso de todos que dormiam e acordavam para olharem suas caras mal dormidas refletindo-se no barulho das motos. Copos tilintavam enquanto o vinho transbordava em bocas entreabertas e vontades incontidas. Discos voadores e pesados astecas sobre os ombros do tempo. Índios tupi-guaranis boquiabertos com a leveza das espaçonaves e possibilidades de vôo, de conhecimento de mundos distantes e de outras formas de vida. De luz.

Peri acendeu um cigarro enquanto via a noite evadir-se por sobre os telhados. Escutara que o hotel havia sido vendido para o concorrente, o único que poderia comprá-lo. Porém o último para quem a dona do hotel o venderia. Os funcionários ainda não estavam convencidos das mudanças advindas da greve, muitos chegavam até a duvidar que ela houvesse acontecido, assim lançavam a história da venda para secretamente se vingarem. Um jogo de palavras que, sutilmente, modificava a feição dos fatos. A dona, talvez não demonstrasse seu descontentamento, porém, ligava para o hotel querendo saber sobre números e horários e procedimentos. Isto às duas horas da manhã; ligava de sua casa e Peri pensava o que poderia estar acontecendo com aquela mulher. Ou o que aconteceria se o seio do ciclone transbordasse seus ventos sobre os cabelos soltos de suas preocupações. Mulher vaidosa, era possuidora de uma estatura elevada por onde carregava seus ares, cabelos loiros e artificialidades; saber o que lhe acontecia, era algo duvidoso, pois era daquelas que satisfaziam-se com a ilusão, ou ainda, perdiam-se nela e não sabiam como voltar. Não permitia que mulheres bonitas trabalhassem no hotel, pois ninguém poderia ser mais bela. Ela se infiltrava pelos poros e espaços e neles deixava seus rastros de perfume e rumores de insanidade. Às vezes, explodia aos berros com seus gerentes e com sua secretária que chorava de raiva e abaixava a cabeça. Casara-se com o homem que construíra o hotel, depois da morte deste, tomou como esposo um velho curvado por dores na coluna. Tivera apenas filhos homens, os quais lhe consumiam grande parte das preocupações. Em suma, uma mulher frágil e desesperada construindo muros e cascas para se proteger.

Quando o cigarro acabou, Peri voava pelas cabines telefônicas e sentia a Península Ibérica projetando-se num mar distante, por praias e naus que não existiam mais. Peri olhou o mar próximo e viu que estava andando de elevador com duas mulheres que procuravam um hóspede. Um playboy bêbado que aparecera na madrugada anterior, causando muitos problemas ao tentar agarrar duas adolescentes que lhe acompanhavam. Uma delas fugiu levando seu carro, a outra, escondia-se pelo corredor e vinha ao lobby conversar com Peri que lia despreocupadamente um livro. No outro dia, não se soube o que aconteceu com as adolescentes. Peri estava curioso e as outras duas mulheres que apareceram eram a possibilidade de saber o que aconteceu. No elevador, elas estavam ansiosas. Ao chegarem no andar do hóspede, Peri abriu a porta e as duas correram em direção ao quarto, enquanto ele esperava dentro do elevador. Voltaram abruptamente, assustadas e sem conseguir falar. Peri saiu do elevador e viu o hóspede em pé, no canto do corredor, totalmente imóvel. Os olhos fechados e as mãos segurando algo inexistente. Peri sentiu medo e pensou que o homem morrera correndo atrás das adolescentes do dia anterior. O que havia acontecido com elas, só as paredes, mudas e reservadas, poderiam saber. Quando se deu conta, sentiu que o seu pé gelava e era necessário fazer algo imediatamente. O homem, nesse curto tempo, envelhecera visivelmente, sua barba crescera e seu rosto estava pintado com as cores do cansaço. As duas mulheres fugiram e o homem acordou tão de repente que Peri duvidou que em algum momento ele houvesse morrido. Desejou-lhe uma boa noite e voltou a dormir. Peri encaminhou-se para os sofás do lobby e ao deitar, pois não havia mais nenhum hóspede fora dos quartos, teve a impressão de ter sonhado. Mas ao acordar, verificou que o nome do hóspede ainda constava na lista dos apartamentos e o seu carro importado voltara para a garagem.

capítulo onze

Assim, abriu bem os olhos e esqueceu que a floresta era um alheamento português. A sombra de uma mulher inatingível observava-o de algum lugar entre o absurdo e o provável. Peri a sentia de uma forma tranqüila, como se seus poros absorvessem o éter que os separava. Levantou-se e deixou que os pensamentos fossem embora. Todo ele era uma projeção da vontade que se infiltrava pelos seus sonhos. Caminhou por cada um dos labirintos que cresciam a sua volta, brotando do piso invulgar que recobria a terra. Cores metálicas e explosões de sons, melodias doces e violentas como a vida. Se acaso lhe aparecessem sílfedes, os contornos seriam outros e a floresta deixaria de ser um labirinto. Então, quando as borboletas e tiês-sangues e beija-flores e falcões altivos voaram ao seu derredor, Peri sentiu asas nascendo de suas costas, erguendo-o do solo. As nuvens eram um misto de universos ainda por nascer. Avistou uma montanha muito próxima de si, com suas rochas e seu peso de mil milênios. Sentou-se na torre mais alta de um castelo, no mais alto pico da montanha. O frio o envolvia e uma mulher intangível cantava uma canção dentro de seu peito faminto. Peri abriu a porta da torre e seguiu pelos corredores. Exatamente embaixo da abóbada de vidro, um faixo de lua provocava um halo sobre a silhueta da mulher. Peri aproximou-se e abraçou-lhe a alma. Olhou nos seus olhos e desejou que o momento nunca se acabasse.

Ela veio. Antes, havia mandado um telegrama que Peri não tomara conhecimento. Ligou de madrugada e avisou que iria ao Porto de Santos para buscar umas compras que fizera num cruzeiro a Ilhéus. Desde aquela tarde, na Avenida Paulista, seus encontros ficaram restritos. Mas o que teria sido provável, efetivamente ocorrera. Um turbilhão, um redemoinho de sensações confusas passando exatamente entre o caótico e o belo; um limiar de poesia e loucura olhando com passos rápidos e respiração ofegante. Ficaram em alguma espécie de silêncio e abraçaram-se, sentiram o calor mútuo de seus corpos transformando-os. E como as orquídeas e os girassóis não parassem de nascer, resolveram deitar sobre o campo extenso de seus instintos e procurando a paz inútil de qualquer razão, beijaram-se, longa, profunda e avidamente, sem se darem conta de que os grandes navios partiam e chegavam ininterruptamente por mares muito mais antigos que o sêmen. Olharam no espelho das águas e viram seus olhos fundindo-se com mundos distantes e sensações presentes. Então, ela foi embora sem lhe dizer uma única palavra, pois o amava e não conseguia perdoar, porque seu amor era vingativo e ela tentava esquecê-lo sem conseguir.

Peri sentia a chuva e andava por ruas de velhas árvores. Peculiaridades. O que teria acontecido se tudo não tivesse se passado, ou se o futuro fosse, ou se o próprio presente apenas pudesse? Um lance de possibilidades infinitas.

capítulo doze

Transubstanciação, garrafas de refrigerante, esqueletos fósseis, somas e multiplicações, tumultos vespertinos e anônimos amores. O hotel novamente fora invadido. Ainda era madrugada quando Peri se deu conta de que os hóspedes, ainda meio sonolentos, chegavam no lobby e jogavam nas poltronas o peso de suas viagens. Entre eles, a seleção nacional de futebol. Suas bagagens misturavam-se ao silêncio das horas enquanto Peri olhava a fundo, ora o significado de alguns objetos soltos pelo chão, ora o semblante ou vulto dos hóspedes. Um jogador com a mão no queixo esperava sentado por alguma coisa desconhecida, e, para ele, mesmo que esse jogador estivesse esperando pelo mais óbvio, ainda assim a sua espera permaneceria desconhecida. Peri olhou mais em volta e divisou no meio da multidão dispersa que se formara, um atributo distintamente feminino, era ainda uma sombra e seus passos exalavam vontade. Os cabelos curtos e os olhos verdes, chegou perto de Peri e sorriu sem motivo, ficou olhando e perguntou se ele não poderia lhe acompanhar até o banheiro, pois tinha medo e se sentia muito só. Uma mulher, bela e frágil, com um olhar inocente e repleto de indecência. Peri levantou-se rapidamente e acompanhou-a. Pensava em levá-la para algum lugar distante, seu braço tocava no corpo da mulher e o desejo de possuí-la aumentava com a calma de seus passos. Ela dissera-lhe que cantava à noite, quando sentia que sua voz desprendia-se e alcançava outros reinos, lugares mágicos. Peri escutava atentamente, sem conseguir atinar como faria para se livrar dos hóspedes que estavam no lobby. Ao chegarem a porta do banheiro, a mulher puxou Peri para dentro e o fez observar o movimento rápido de sua nudez; sentou-se no vaso, olhou-o nos olhos e segurou-o pela cintura, trazendo o abdômen junto de sua boca. Beijou-o e passou a mão pelo seu corpo. Pela nuca, Peri segurou os cabelos da mulher e a levantou, abraçou seu quadril e com a perna tocou suas coxas, beijou-lhe os seios e fez com que ela subisse no seu corpo. Peri a segurava no ar e respirava sua alma. Mas escutaram vozes no corredor e perceberam que algumas mulheres entravam no banheiro. A mulher o beijou na boca, vestiu-se e foi-se embora. Peri aguardou que as outras mulheres saíssem e, sem atinar como as coisas aconteciam, voltou para a recepção. Já era dia.

capítulo treze

O sol alto; cosmos entrevistos, silhuetas de verdades absurdas. O mundo por baixo da pele. O mundo com suas voltas, entonando cânticos esquecidos, entornando aos goles a voracidade da vida. Perspectivas. Peri sabia que era preciso aprender o significado de seu caminho. Uma viagem ao mundo do desconhecido, onde suas lutas encontravam-se com a necessidade crua do cotidiano. Peri caminhava pelas pedras e sentia o limiar do equilíbrio; um ato de confluência e significação. Peri conhecera o olho do furacão, as tempestades que varreram as costas marítimas e arrasaram com os satélites de comunicação e invadiram os dias em que o sol ainda estava a pino. Agora, o vento sorria com suas presas, entrelaçando seus dedos sobre a leveza humana até sentir o desespero evadir-se. Como explicar a imaginação humana, a alma que provoca o movimento e distingue a cor das estrelas? Aquele instante que eqüivale a eternidade, o lugar onde as negras africanas seguram seus filhos enquanto agacham-se para colher raízes e olhar desapercebidas o vislumbre único da imensidão da vida. Talvez o céu sob o sol da Nigéria. Peri caminhava, ao seu redor os pinheiros e os longos corredores de eucaliptos, a estrada de barro que singrava num ziguezague no topo da serra do mar. Chegara de trem. A visão da baixada através da janela do trem era uma outra viagem no meio de uma viagem ainda maior, rumo a pensamentos e sensações de vôo. A velocidade lenta de seu barulho metálico nas ondulações do trilho, os túneis e paredes de pedras, pequenas casas no meio do nada, quedas d’água e histórias antigas. Porque o canto dos pássaros era o silêncio da estrada, Peri andava cabisbaixo e lembrava-se de que seu pai morrera num domingo de sol repleto de banhistas; uma tarde em que ele se levantou da cama, desceu as escadas e, com um passo decidido e forte, foi à praia, na enseada de São Vicente, tirou os chinelos e entrou no mar, boiando enquanto a correnteza o levava e a água invadia seus pulmões. No final de um curto percurso, seu pai estava morto, aos cinqüenta e três anos de idade. Peri enxergara a morte e sentira seu cheiro. Sabia que o agora era uma borboleta azul rodeando a estrada de seus pensamentos, não adiantava culpar-se ou imaginar que tudo poderia ter sido diferente, era necessário aprender a superar-se, a sentir que a vida era um sinal enigmático onde Deus entrelaçava suas histórias e propósitos aparentemente absurdos. Evolução. No meio da estrada o sol estava forte e Peri sabia que para não perder-se era necessário seguir o caminho óbvio que ele próprio intuíra. Pois, em alguns trechos, as árvores cobriam a visão do lugar. Caminhando Peri virou numa pequena estrada e sentou-se no chão. Não sabia ao certo onde estava e o porque aquela mágoa o consumia tão lentamente; não uma mágoa, mas uma tristeza por tudo o que acontecera, uma necessidade infinita de descobrir as palavras que o guiassem e o consolassem naquele momento. Era preciso colocar em prática tudo o que aprendera, porque não bastava-lhe conhecer as palavras, era preciso transformá-las em atos. A questão não era apenas a morte, mas, principalmente, os sentidos da vida. Tudo aquilo que vai nos acontecendo e que temos que suportar e superar. Seu pai suicidara-se. Peri, ao chegar em casa, foi informado de que seu pai saíra só e ainda não voltara. Depois correra à sua procura e nada mais foi como era ou poderia ter sido. Perguntava-se como poderia ajudar, ou aliviar o sofrimento das pessoas que paravam e ficavam olhando fixa e perdidamente o teto; como mostrar às pessoas que a vida é uma constante de mudança e que há coisas que simplesmente não podemos mudar. Aceitar o impreterível e transformar o possível. Mas, apesar de tudo, eram as pessoas que escolhiam seus caminhos. E os medos deviam ser enfrentados. Lembrava-se do velório, das pessoas solidárias, da série de sensações e pensamentos que foi desencadeada. O Instituto Médico legal. Era necessário fazer autópsia, devido a morte ser considerada violenta. O problema é que seu pai não morrera apenas naquele dia, mas num processo lento e cansativo. Mas vivera e se emocionara e sofrera e também se alegrara. Deu a Peri a liberdade para pensar, e o orgulho que sentia quando era ainda menino.

Quando voltou, era noite; ao pé da Serra imensos fogos tingiam o céu, luzes de complexos industriais, automóveis e naves voadoras, o movimento ininterrupto da construção humana, o simbiótico processo de exploração natural dentro do aparente caos de uma vida controlada por regras, horários e padrões absolutos. Figuras geometricamente cibernéticas, imensas telas de realidade virtual boiando no ar, o homem quimificado pela violência estilizada, confundido pelo bombardeamento da informação e a ignorância dos sentidos.

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 09/06/2007
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