TOTEM - quarto fragmento

capítulo quatorze

Peri fumava seu cigarro enquanto via a Serra do Mar entre as duas colunas da Ponte Pênsil, observando a parte cujo pico estava envolto em densas nuvens de chuva, notou que eram as mesmas que passaram por São Vicente. Foi para Santos trabalhar. O hotel fora vendido. A antiga dona saíra triste e arrasada, pois o hotel representava uma parte de sua história construída com o primeiro marido, ou ainda outro laço secreto que nunca mais poderíamos descobrir. Os novos donos eram pai e filho, a família Mendes, donos de vários outros hotéis, inclusive o antigo concorrente. O filho era um enorme ciclope, o que Peri não havia notado no primeiro encontro, talvez devido a sua simpatia. Mas, caso o observador fosse mais atento, perceberia que o ciclope tinha um pequeno olho no canto do olho maior, esse olho era seu irmão mais novo. O pai era um ser humano, velho e bem tratado e, apesar de serem tão diferentes nas suas raças, eles se pareciam. Podia-se mesmo dizer que um estranho, na rua, se os visse diria que eram pai e filho. Pelo que se sabia, a família sempre estivera envolta numa redoma de mistérios. Talvez existissem há tanto tempo que as outras pessoas pensassem que a família nunca tivesse nascido. Ao chegarem no hotel, a dúvida foi peremptoriamente instalada, pois ninguém sabia o que iria acontecer, ou se as mudanças estavam inegavelmente aparecendo. O que aconteceria com os funcionários? O nome do hotel permaneceria? Como ficariam os salários? Seriam os novos donos déspotas desalmados? O que se sabia era que as luzes do lobby ficariam ininterruptamente acesas. Fora isto, nada mais se sabia. Mas ainda era cedo e Peri esperava as mudanças de fundo. Cedo ou tarde saberia de coisas que antes não imaginava.

Com as luzes acesas, parecia que o serviço aumentara, sequer um minuto Peri parava, hóspedes e bandos de curiosos aglomeravam-se no lobby; uma caça às visualizações e autógrafos. Peri observava e o mundo parecia um encontro de nuvens, porque, às vezes, os dias eram tristes e Peri esperava pela mulher azul enquanto as horas se aproximavam e o destino e a fatalidade se encarregavam de brincar com a compreensão humana. Quem seria essa mulher que traria a alegria de seus olhos e o carinho de seus abraços? Peri observava e esperava, enquanto a vida seguia seu curso inexplicável.

capítulo quinze

Algo como o vento escorregadio dos sonhos.

Uma menina? Seria possível que Peri pudesse considerar tantas coisas que, por ventura, esquecesse do elo sutil que o ligava a menina? A verdade era que ela o tirava do solo, ou do sério, enquanto suas mãos procuravam o desejo de seus olhos profundos e sentidos de curiosidade. Ou ainda, Peri sentia uma enorme vontade de segurá-la, forte, nos braços e beijar seus lábios carnudos, dizendo:

- Por que, sua grandissíssima filha da puta, você não deixa que eu lhe beba para matar minha sede de desertos que você nem ao menos imagina que possam existir? Será possível que você não enxerga o quanto podemos sentir um com o outro? Ou será que você se engana me enganando?

Seria medo, insegurança, ou uma vontade tão grande que a devorava ao ponto de não permitir que Peri se aproximasse de sua verdade. Talvez a incapacidade de amar, um receio profundo por tudo que pudesse desmanchar seus sonhos.

Borboletas de vinil, o desejo.

capítulo dezesseis

Peri erguia os olhos e sentia a pulsação de seu corpo modificando intrinsecamente o sentido da realidade. Suas órbitas, ciclos de mênstruos e vontades à volta faziam com que despertasse num mundo de cores surreais, onde as mulheres caminhavam no mundo da lua e os carros atravessavam sinais de cio. Estava numa rua de barro muito próxima à encosta marítima, uma pequena parte da Serra, o céu alto e azul conformando-se com ela, era baixa e alongada na porção que se divisava. No alto a vegetação era rasteira e de um verde fraco. Porém, no meio dela a mata era densa e cobria a rua como um túnel. Peri parou numa casa e do chão pegou um pedaço de lâmpada, notou que havia pouco tempo e comentou à criança que o atendeu que precisava ir embora, mais tarde viria e conversaria com sua irmã para saber de amigos que há tempos não via. Entrou no carro e partiu em disparada, sentindo que seu corpo começava a pegar fogo. A pele desprendia-se do corpo e os cabelos queimavam. Ele se contorcia no volante enquanto olhava para todos os lados procurando o céu dos olhos de alguma mulher bela e meiga o suficiente para voar com ele. Parou o carro, desceu na rua, seu corpo estava tomado pelas chamas e ele começava a acalmar-se. Andou de um lado ao outro e ficou esperando. Mas como esperar se o desejo era pungente e urgia com a necessidade de mil noites?

capítulo dezessete

Peri lembrava:

- “... tentei compreender o que estava lhe acontecendo. Ainda não sei se posso, é tudo muito confuso. Sei que nos amamos, é só. Sei que não consigo saber ao certo. Fica difícil, você mesma não consegue; mas se pudéssemos nos dizer absolutamente tudo! Tenho vontades de me levantar e sair andando na chuva. Para encontrar você e conversar, conversar e conversar. Tudo isso é inútil, somos tão imaturos que não sabemos falar, que ficamos mudos, olhando nossos olhos feridos. Gostaria de ser inteiro para você. Onde estamos?! Simplesmente nos perdendo!? Aos poucos, vamos destruindo e tornando resto o nosso amor. São pensamentos que se perdem, palavras que nos rasgam a carne, são gestos que nos silenciam , agridem, são gritos e lamentações, injúrias, aberrações e covardias. Porque jogamos na nossa cara, suja e pasma, todas as verdades mais dilacerantes e sentimos na boca um gosto de mentira. Desencontramo-nos e não temos coragem para suportar a falta daquilo que já foi tão essencial: nós. O brilho dos seus olhos me agride, serpenteia-me por dentro e, então, imagino poder tornar-lhe azul. Mas você não é azul. E eu não sei que cor tenho ou se algum dia eu a tive para você. Os lugares são longínquos e o mar tem uma revolta densa. Porque não tenho espaço e gostaria de ter a clareza suficiente para lhe dizer o que isso significa. Para dizer que meu corpo dói, meu espírito se contorce e meus olhos tornam-se baços. Mas você não está aqui! E eu não sei onde é aqui! Mas tudo não passa de uma ilusão que, cedo ou tarde, desmancha-se nos lábios. Um dia, não nos restará nada mais do que lembranças; eu que nem gosto de lembranças, que sou um desmemoriado. Talvez eu lhe esqueça e perceba que nunca lhe amei, que você sempre esteve certa e eu errei em tudo que tentei com você. Fui sempre um covarde a esconder-me no momento do soco, a esgueirar-me por palavras dúbias e jogar a culpa inteira em cima dos seus ombros. Talvez você possa estar certa, e eu errado, e eu moleque. Mas em algo eu devo ter acertado, mesmo que de raspão... Você é má e as pessoas más são fracas dentro de suas fortalezas; sua verdade me envenena, me afoga. Porque seu lado mal não precisa ser mostrado, basta que ele esteja ali, sob a luz enganosa de seus imensos olhos verdes. O amor é extremamente mau, vicioso. Mas tudo isso não passa de besteira, pois nunca saberemos ao certo quem somos ou o que é o amor. A verdade é crua e nos assusta, mas temos que viver com o medo, respeitá-lo e utilizá-lo quando necessário. Melodia desencontrada. Meu corpo pede o seu e minha alma perde a sua olhando estrelas. Mas algo em você é meu, algo tão profundo que você quase não consegue perceber, mas é meu e sempre será: Eu amo você.”

capítulo dezoito

As negras africanas teciam seus panos sobre os atabaques de beber o silêncio da mata íngreme, confundiam-se com seus teares de madrugadas verdes e a vida transcorria num rio de pedras transparentes, porque, antes da noite chegar, os lobos bebiam a água do rio e matavam a sede das estrelas; a sede ingênua das estrelas carregando seus milhares de milhões de anos e luzes. Nas tabas, deitados em redes ou camas de pregos, os índios tiravam da dor o corpo e do corpo o sofrimento. Os galos brigavam com suas esporas de aço e os mamelucos jogavam dados em cima das bananeiras, das longas filas de pau-brasil e caras vermelhas de sol. Peri dançava no centro do mundo movendo seu corpo, cantava. Os girassóis bailavam ao vento extenso dos campos dourados pelo trigo da terra, as grandes colunas e pirâmides pré-colombianas, os labirintos da civilização do tempo. Londres ou Amsterdã, Istambul de tendas e torres próprias. Ou Peri comprava uma bicicleta e se casava enfim. Ponto final. Sem dramas.

capítulo dezenove

O que teria dado na cabeça dessa infeliz?

- Você é alguma espécie rara de idiota? É natural ou você treina em casa? Que jogo enfadonho o seu, baixo e egoísta. Eu tenho sinceras vontades de lhe espancar. Incrível, não? Como é possível que eu sinta esse tipo de coisa tão hedionda?... Por que você insiste tanto? Amor? Não acredito. Como é cansativo o relacionamento com você; mesmo que tão esporádico. Mas sua malícia e maldade são tão profundas que eu chego a pensar que você é extremamente fraca.

Vejamos Peri agora.

Ele procura um sentido vago de razão e corre por um sem número de portas. Ele está sentado e pensando absortamente no que lhe acontece. Talvez encontre soluções brilhantes, talvez as tenha descoberto há muito tempo, faltando, apenas, o momento oportuno, aquele instante onde as circunstâncias propícias se encontram e produzem o acaso. Então pensa.

- O que você está fazendo aqui?

- Recebi um convite para passar o final de semana no iate de uns amigos.

- É? Eu mudei, estou morando perto do antigo apartamento. Vou lhe dar o endereço. Aqui está. O que você irá fazer amanhã?

- Vou andar de jet sky.

- Hum? Jet sky? Bom, muito bom. Diga-me uma coisa... (Você é alguma espécie rara de idiota?...). Que legal, formidável! - Você não liga mais para mim.

- É? Eu tentei ligar um dia desses, mas não deu. - Peri dissimulava, mas nem a quinta parte da dissimulação da mulher.

- Eu acho que não deveria ter passado aqui.

- Por quê? Você não sentiu vontade? Não vejo problema algum.

- Eu preciso ir embora, têm umas pessoas me esperando lá fora. A Cristina está aí. Sabe, aquela amiga em quem eu sempre falo?

- Sei.

- Então, a própria. Bom, deixa eu ir. Tchau.

- Eu lhe acompanho até a porta.

Ao abrir a porta, Peri percebe que a avenida em frente ao hotel transformara-se num rio da Juréia. Está em pé numa canoa e rema observando o céu e a encosta da Serra. Seus pensamentos o remetem aos tempos remotos, onde o espaço era sempre dia e a luz do sol, elétrica. Diminui a cadência de suas remadas, calmamente virando a canoa para a curva do rio. A sensação de um ato contínuo o invade através dos desenhos da correnteza e na resplandecência de suas águas ao sol. Um vento principia-se fraco e, num repente, transforma-se num redemoinho de força que ergue a canoa ao céu, enquanto Peri tenta segurar-se como pode. Num momento a canoa pára e está frente à frente com a entrada de uma caverna, no topo da Serra. Ele entra cautelosamente e, extasiado, vê o fogo de uma estrela brilhar no centro da abóbada. Um olho fala numa língua incompreensível, sobre os dias da vida de um homem comparados aos séculos de vida das rochas. Então, pergunta a Peri se gostaria de viver tanto tempo quanto uma rocha, milhares de anos, mas como uma rocha.

Vejamos os fatos; um turbilhão de pessoas que passam e se amontoam pelas areias e dunas de planetas distantes. Na Islândia os géiseres jorram suas respirações de baleia e o homem caminha no último lugar a ser habitado, uma cadeia submarina de vulcões, com sua superpovoação de crateras misteriosas que ligam a literatura ao centro da Terra. Gravitações.

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 10/06/2007
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