TOTEM - quinto fragmento

capítulo vinte

Peri escuta o latido de um cão na rua e observa o tempo passando, ininterruptamente. Idéias de eterno retorno, ou coisa similar aos gregos. O fato propagando-se no tempo, no espaço. Repetindo-se indefinidas vezes pelo infinito de cada segundo, pelas proporções do imaginário e pelo tamanho assombroso daquilo que deixamos de imaginar, o universo por conhecer. O ser por vir existe e está emaranhado numa teia complexa ou anda com os braços soltos no ar ou... tudo o que podemos ou não intuir sobre o desconhecido. Mas é um mundo que coexiste com mundos passados e presentes, uma espiral de combinações matemáticas e naturais, ad infinitum. Talvez o homem não se engana quando crê num deus absoluto ou pensa na sua presença como fruto de sua fé, ou ainda, quando céptico, conclama Deus. Porque são paralelos, espécie micrômega de Voltaire. Porém, o homem que morrera num hospício, vítima de uma doença degenerativa causada pela sífilis, dissera que o abdômen impedia o homem de considerar-se um deus. Ou seria verdade, ou Nietzsche teria lembrado de suas palavras ao abraçar os cavalos açoitados na chuva, ao sair do teatro. Encontrara a razão que fugia aos homens do seu tempo? Ou teria ele pensado que o mundo fosse apenas uma divisão entre fortes e fracos, onde a bondade, unia-se ao estigma da guerra. O bom, o guerreiro. Porém imaginava a criação da palavra nascida das castas elevadas, como se o homem do povo não tivesse nem ao menos a capacidade de comunicar-se, tendência filosófica à inversão de sistemas e concepções de vida. Falava no além do homem, e esse parecia esquecer o homem. Então, quando olhava em frente, fixamente, e sentia o fluxo do eterno retorno, pensava no céu covarde dos cristãos e esquecia que apenas o trocava pelo pressentimento de seu eterno retorno. A elevação da alma ou do homem. Ambos, em lados diferentes, buscando o mesmo por caminhos adversos. Mas com que pretensão o filósofo pretende descobrir a verdade, ou pior, tê-la nas mãos? Verdade? O que é isso? Alguma espécie de pilhéria ou a idéia que cada um pode ter a respeito de qualquer coisa? Prerrogativas, sistemas árduos, cálculos fantásticos, construções, corolários e notas que não acabam mais. O caminho certo é uma perspectiva pessoal, apenas uma aprendizagem. O que se deve ter em mente é que a realidade, seja ela qual for, é múltipla e impregnada por um sem número de mundos. A cada um, um prisma. Agora quanto a totalidade ou concepções absolutas, pode-se falar, no mínimo, em presunção. É, justamente, quando o filósofo descobre a verdade que se torna um inútil. Que ele caminhe numa busca sem fim. E quiçá, conquiste o gosto pela melhora própria e do próximo. Porque tudo o que se faz, retorna como um bumerangue que atirado por várias mãos, no ar multiplica-se.

capítulo vinte e um

Sacos pretos de lixo plástico. Sacos plásticos de lixo preto. O carnaval, marchinhas saudosas, cocaína, álcool, telefones celulares, encontros e atropelos. No hotel, o carnaval chegara numa tarde de fevereiro, com sua festa de carne nua e montes e montes de bagagens e hóspedes ansiosos para aproveitarem cada minuto e cerveja. Depois de hospedados, sumiam na madrugada de folia, sem deixar vestígios ou números de telefone. Nenhuma serpentina ou columbina perdida pelo lobby... Losângulos, composições cubistas em cima da mesa: uma mulher dança enquanto outra a observa; ela está vestindo um sobretudo negro e tem na cabeça um capacete branco, mais nada, o sobretudo está aberto e sua nudez oscila com o movimento da música. Há um espelho e as mulheres se fitam. Duas mulheres amando juntas o mesmo homem entre pintoras dadaístas jogando xadrez e tecendo tapetes de penélope, o mundo mágico que se esconde de nossas vistas embaçadas pelo distante fog londrino, ou pela garoa de São Paulo, ou pela maresia densa de São Vicente, ou por qualquer outro lugar ou circunferência de tempo. Bares escuros de luz, mulheres com brincos no supercílio e roupas pretas e botas longas. Garotas punks no Viaduto do Chá. Grafites em edifícios altos e histórias em quadrinhos no cinema virtual. Beijos na boca.

capítulo vinte e dois

O deus do sono, ou como as baleias brancas enfrentavam os baleeiros. Milhares de milhas oceânicas e vilas à beira mar, pescadores queimados pelo sol de suas esperas píscias. Ou como o inesperado brinca em volta da realidade fraca dos fatos.

capítulo vinte e três

- Balneário Hotel, bom dia.

- O que acontece nesse hotel?! Eu estou tentando falar com vocês há vinte minutos.

- A mesa telefônica não funciona bem. É muito antiga.

- Uma ova! Escuta aqui, eu quero falar com o auditor.

- Um momento.

Peri sentiu o sangue subir muito rapidamente. Controlara-se. Procurou, pelos ramais, onde ele poderia estar.

- Alo.

- Alo. Carlos?

- Não...

- Eu quero falar com o auditor. Você não me entendeu?! Eu vou contar para o dono desse hotel que todo mundo dorme de madrugada.

Peri aguentara o quanto pudera.

- É o Sebastião que está falando? O auditor do Mendes? Ótimo. - Então chegou perto do fone e, sonoramente, escarrou.

Depois da venda, o hotel assumira um clima gélido, propício a conservação do veneno que escorria aos cântaros através da língua afiada dos funcionários. Os antigos viviam com medo da demissão. Enquanto os novos, vindos do Mendes, abriam em leque sua arrogância. Funcionários acostumados a denegrir, injuriar o outro. Semi escravos. Alguns trabalhavam de manhã à noite e não folgavam. Em suma, robôs. O modo como a nova diretoria controlava seus amplos negócios era rígido, beirando o despotismo. Os filhos do dono eram obrigados pelo pai a seguir o caminho dos antigos portugueses. Novas terras, padarias e hotéis. O Sr. Mendes fora filho de um guerrilheiro que vivera em Angola. Ao morrer deixara um saco cheio de diamantes escondido. O filho o achou e o tomou do restante da família. Com ele e muito trabalho, construíra seu império. Depois da compra do hotel, transformaram-no num zoológico, com os aparelhos de ar condicionado funcionando a toda força. Um mundo gélido e permeado de vaidades. Vários andares foram fechados, deixando o hotel resumido a poucos apartamentos. O último andar seria reformado, aguardando os outros por sua vez. Assim o hotel transformara-se num deserto, com suas amplas terras desabitadas, clima árido como em nenhum outro deserto. O deserto balneário de Atacama. Não tão grande, mas seco e frio à noite e efervescente no subterrâneo do dia. Para Peri a luta recomeçara, ou nunca havia cessado. Ao sair do hotel percebera que o pneu de sua moto estava furado. Uma crise de mau humor o invadiu; deixou-a numa rua paralela e foi para casa de ônibus. Seu humor não mudara. Mas, ora!! Por que prolongar desta forma uma sensação tão desagradável? Os fatos já haviam se sucedido e agora não adiantava consumir-se desnecessariamente. O que tinha de ser feito seria, e pronto.

capítulo vinte e quatro

São Vicente. Terra de índios e pau-brasil. Na praia das Vacas Peri olhava a Enseada e imaginava as terras do descobrimento. A Mata Atlântica exuberando-se. O Porto das Naus. Martim Afonso de Souza perdido num mar imenso, louco com os olhos fitos de deslumbramento nas terras nunca antes avistadas pela cobiça portuguesa. Os jesuítas trazendo a fé cristã e dizimando através de suas doenças; gripes e coisas do gênero. Escritos na areia. E agora? O visitante desprevenido caminharia pelas suas ruas e só notaria que São Vicente foi a primeira cidade, capitania hereditária, caso tivesse um olho experimentado e extremamente analítico. O passado deteriorou-se. São Vicente transformara-se... No que a cidade transformara-se? Transformara-se? Ou será que a cidade, visitada pelos incas e invadida pelos extraterrestres, consumira-se num sonho empreendedor e, por fim, acabara conhecendo o mistério dos gregos, vivendo a realidade debaixo da tênue linha do conhecido, aquilo que separa a particularidade do contexto genérico. A pedra silenciosa e sábia de um milhão de idéias difusas, São Vicente, com a extensão de seus fuso-horários e relógios biológicos ordenando os calungas, seres enigmáticos com seus chapéus e semblante de botos. Na Praia das Vacas, Peri mergulhara em um bando de gaivotas descansando na areia. Prendendo a respiração, uma idéia aflorou lugares e pôde ver que todo o pensamento que tivera, até então, era o fruto único de uma espécie de consubstanciação, um motivo pleno. Em São Vicente, num pequeno barco, do lado oposto às praias, na ilha. Olhou para o céu e viu uma intensa luz circular, um motivo móvel. A madrugada adentrava pelos poros e águas escuras. Numa velocidade absurda, a luz ziguezagueava, sem qualquer previsão de vôo, de um lado para o outro, aleatoriamente. Pasmo, boquiaberto e de respiração suspensa, perdido no espaço. A água do mar clareando-se. Botos do passado pulando em volta. O vento. A chuva fina que caía oblíqua pelos corredores do pensamento, o vento, impelindo a alma a viajar pelo desconhecido, o distante e o inacessível. O objeto voador parou na sua frente e por trinta segundos ninguém se moveu. Todos, em São Vicente, tiveram roubados de suas vidas, exatos trinta segundos. Ao se lembrar, Peri experimentou a sensação que a descoberta confere ao espírito; na Praia das Vacas olhava o mar e o passado chocava-se com as ondas do presente e o futuro era o retorno dessas águas à nova onda. Primatas plenos no seio do mundo sorvendo luz, semeando chamas, saques, albergues, dias, o claro e rápido trepidar dos corpos no espaço, a noite, a festa de uma luz tecendo prismas por entre buracos negros, conversas sobre a intransigência humana. O lixo que era deus jogado na sarjeta de uma rua novaiorquinamente paulista, a esquina de uma estrela. Assombro de tão altas tecnologias, edifícios, sanatórios, igrejas recicláveis e a fé dos turistas, pagãos contrapartindo-se na virgindade oscilante das descobertas. Latas e mais latas nas areias de um tempo praia, nas luas, cruas como se o inverno fosse hoje. Alucinação, realidade virtual de olhares sobre o infinito. Cercas, estacas, muros e arames farpados. O universo corroendo, correndo nu, com o corpo em chamas e o mundo em águas, dádivas. O olhar, insano, cruzando o campo extrasensorial do absurdo, frente à frente com o incógnito, o silêncio e a amplidão.

Peri, em disparada, com os olhos atentos e o espírito preciso. Um longo corredor de metal, altíssimas paredes lisas, frias. Um espaço, o vago abismo, o salto, vistas perpendiculares absolutas, apoteose de formas desconhecidas e claridades duvidosas. Sem saber como ou porque. Havia uma porta e é era preciso passá-la. Um guardião impedia a passagem. Disse-lhe que tinha que continuar, mas ele era impassível e não permitia. Era um ser de contornos lisos, de uma cor prateada, sem cabelos, roupas ou sexo. Sabia-se apenas que era um guardião. Peri tentou convencê-lo de todas as maneiras razoáveis que conhecia, porém findas as possibilidades de diálogo, o guardião tentou agredi-lo. Peri esquivou-se, porém o outro desferiu um golpe direto com o punho, acertando seu queixo. Com o impacto a cabeça de Peri tombou de lado, então, quando abriu os olhos, percebeu que estava numa cúpula. Escutou os gritos de uma multidão invisível. A cúpula era uma abobado de pedra, vazada por uma intrincada armação de metal, do centro avistava-se o céu, denso de nuvens azuis, meteoros e seres voadores. Um pedestal continha armas. Os dois se observavam e andavam em círculo, no momento mais inesperado um dos dois pularia em direção ao outro. O medo fazia com que Peri sentisse cada uma das possibilidades de movimento. Sua respiração rápida e profunda. Quando o outro saltou Peri acompanhou seu movimento e, segurando seu punho, impeliu-o para o chão. Ele se levantou, correu para cima de Peri e, numa seqüência de golpes, alternando pernas e punhos, soltava sua ira incompreensível. Peri seguia seus movimentos e desviava-os, ora com o cotovelo, ora com os joelhos. Quando o guardião abriu sua guarda, Peri sentiu o ritmo do impacto de seus movimentos, acertando com os punhos o maxilar, a cabeça e o queixo. Seu sangue era negro como um óleo de máquina. Peri saltou no alto e olhou o rosto de seu adversário, golpeou-o com toda a violência de sua perna. O guardião caiu ao chão. Do seu corpo inerte brotaram noites de vales sombrios, com suas árvores esquálidas e caminhos subterrâneos, cavernas e estalactites, cristais de rocha pura, tempos e luas desconhecidos. Peri estava no alto de uma colina e a abóbada transformara-se num pequeno galpão de madeira. A porta estava fechada, pelas frestas enxergava uma árvore cinza chocando-se com o alvorecer. Era uma criança e escondia-se na semi escuridão de mundos mágicos. Lá fora, Peri observava, atônito, o pouso de enormes criaturas morcegos. Elas paravam ao lado da árvore e fechavam suas asas como um manto em volta do corpo; olhavam o horizonte, enquanto sussurravam diálogos imprecisos acerca do tempo. Peri sentia a proximidade de uma casa. Saiu pelos fundos do galpão e passou pela lateral. Ao atravessar a casa, era adulto e a via pelo lado de fora, na entrada principal. Um muro de pedra protegia o corredor de uma escada íngreme. Ao lado do portão dois gárgulas guardavam o caminho. A casa era branca e ficava muito alto nas nuvens. Peri sentara-se no terraço, em cima da amureta que o separava da queda. Por um momento distraiu-se e perdeu o equilíbrio, tentou segurar-se na colunas da amureta, porém, lentamente, suas mãos foram escorregando. Não sabia voar, a queda era estonteante, o medo um amigo; equilibrou-se no ar e principiou um vôo, ganhava altura e sensações de deslumbramento, a velocidade do vento no rosto. Voou de volta à casa; no primeiro andar, embaixo do terraço por onde escorregara, uma janela alta de vidro claro e pequenas armações de madeira, era testemunha da beleza de uma mulher nua. Peri olhou a brancura da sua pele, o contorno macio de sua cintura, o calor de seu colo e a volúpia de suas mãos e beijos impossíveis. Ela estava parada, entre ela e a janela, uma mesa convidava a deitar, enquanto sua face lembrava uma tristeza, impassível e bela. Olhou-a em profundidade e fechou os olhos. Ao abri-los, a casa das nuvens transformara-se numa falésia; era como uma recordação antiga, um quadro fugidio de algum amor disperso. As ondas quebravam com fúria a sombra de uma tempestade que se aproximava. Peri sentiu seu cheiro e mergulhou no mar, rochas em movimento, equilíbrio de ventos, seu corpo modificando-se com a velocidade, guelras, barbatanas, o mergulho violento e leve nas águas apartando-se, confluência de mundos difusos. O mundo das águas, milhas oceânicas, regiões abissais e incógnitos lugares de alheamento, o azul do mar. Quando se apercebeu, trinta segundos depois, estava a deriva no pequeno barco, ao lado da Ilha Porchat.

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 10/06/2007
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