TOTEM - sexto fragmento

capítulo vinte e cinco

D. Dayse e D. Zulmira caminhavam pelo lobby do hotel, pois sentiam medo de caminhar pelas ruas, preferiam a segurança tranquila das paredes e corredores do hotel, um teto ao invés do céu.

- Parque Balneário, bom dia (novamente o dia em meio a noite espessa). - Peri escuta um sussurro, a mesma voz que matizava a madrugada com uma cor de fogo.

- Alo...

- Alo.

- Você está de botas?

- Estou.

- Quantas botas você tem?

- Cinco.

- Eu não acredito. Você deve estar mentindo para mim.

- É verdade. Eu só uso coturnos.

- Mesmo de dia?

- Eu fico descalço.

- Eu preciso lhe conhecer.

- Será que você não me conhece?

- Olha. Eu estou sentada na banheira, nua. Você consegue escutar o barulho da água? Estou brincando com ela.

- Só com ela?

- Não. Eu queria brincar com você.

- De quê?

- Eu começo.

- Não. Escuta. Você deixou a porta semi aberta e eu entrei. Você está de costas e eu lhe seguro levemente os ombros. Minhas mãos descem pelo seu dorso e acariciam seus mamilos. Você volta sua cabeça para trás e eu lhe beijo a boca.

- Eu sento na beirada da banheira e você fica ajoelhado na minha frente.

- Eu lhe beijo o corpo, mãos, seios, pescoço, nuca, colo, pernas, sexo e alma. Minha boca espuma e meu corpo lateja, seus olhos reviram-se e você geme, sussurrando. Então, eu lentamente penetro na sua vontade de ser possuída. Você me abraça e sente nossos suores misturando-se, contração de lugares e países abertos. Eu lhe deito no chão e me confundo com seus sonhos, viro e reviro seu corpo, por dentro, por fora. Mordo suas costas e seguro seus pulsos, deixo-lhe de ponta cabeça e mergulho em pé. A madrugada é densa e nos banha com seus desejos absurdos, quereres oblíquos.

- De quatro, me come de quatro.

- Eu seguro sua cintura e puxo seu corpo de encontro com o meu, bato em suas ancas e beijo-lhe nuca e orelhas. Peço para que você fique em cima.

- Eu levanto e me roço nas suas botas até chegar nas suas coxas. Então eu seguro no seu peito e me encaixo em você.

- Eu vou ter que desligar. - Peri olhava, quase sem acreditar, uma hóspede pedindo a chave e olhando sua cara pasma e excitada.

Lembranças. Desejos diários de encontrar você, que não conheço e imagino diferente do que é.

capítulo vinte e seis

Peri saiu pelas ruas procurando algo para entretê-lo do tédio manso das sextas-feiras. No dia anterior, duas mulheres foram a sua casa. Uma, com dezenove anos, outra com dezessete. Ao beijá-las, sentiu no seu corpo uma vontade férrea de consumir a plenos pulmões o fogo que ardia nos seus lábios, labaredas sobre a língua. Ele as abraçava e ria com uma alegria simples e natural, palavras que brotavam de sua pulsação alterada. Ficou parado na frente da mais velha e abriu seu zíper, a outra estava sentada numa cadeira ao lado da cama e olhava atentamente cada lance da língua de sua amiga sobre o corpo de Peri. Estavam fumando e a mais velha pediu para que ele passasse o cigarro a mais nova. Ao virar-se e entregar-lhe o cigarro, a mais nova ofereceu os lábios para que ele a beijasse, um beijo afoito e permeado das mãos da mais velha que deslizava-as pela extensão das costas e pernas de Peri, algum céu distante eclodia.

- Da próxima vez, você vai deitar na cama e ele vai lhe ensinar uma coisa deliciosa. - disse a mais velha à mais nova.

Esta fazia parte da primeira experiência do gênero que tivera, o momento onde pôde escutar a doce canção dos gemidos simultâneos de duas mulheres enlouquecidas pelo desejo mútuo. À margem da lembrança, Peri via o surrealismo que explodira desse encontro, cenas indescritíveis de corpos unidos e de bocas molhadas e semi abertas, cansaços, prazeres e ímpetos de força; penetração de almas, ela pedia para que ele lhe puxasse os cabelos e lhe batesse na cara, enquanto a outra, apenas de sobretudo e um capacete branco na cabeça, dançava embalada pelo cheiro do sexo e da fumaça dos cigarros, a música alta e as cortinas vermelhas, as costas unhadas, a nudez do desejo. Peri amava ambas que se amavam amando Peri. Agora, a mais velha estava na sua frente e trouxera-lhe uma outra mulher, pois brigara com a primeira e então não andavam mais juntas, coisas de mulher. Peri trocou-se e despediu-se, porque tinha que trabalhar e a vida marcava de ironia alguns encontros e tantos outros desencontros. Questão de tempo. No dia seguinte se encontrariam. Foi trabalhar.

No hotel a entrada de uma banda baiana o esperava; músicos, bailarinas, técnicos de som, iluminadores, produtores e uma série infinita de circunstâncias adjacentes. A parafernália moderna, a mídia que transforma as pessoas comuns em seres de outro planeta, a embriaguez do sucesso, a popularidade da música. Entraram e mais tarde foram-se embora para o show. Minutos depois duas tietes atrasadas chegaram perguntando pela banda, pois haviam marcado para irem juntas. Infelizmente, como era tarde e não havia mais nenhum hóspede que fosse para o show, elas preferiram ficar no lobby do hotel, pacientemente esperando pela sua volta. Falavam muita bobagem e sentavam-se provocantemente nas poltronas, davam-se largas risadas e comentavam suas vidas de tietes, mostravam as fotos que haviam tirado com as grandes personalidades e discorriam sobre suas intimidades e amores suspeitos. Eram tia e sobrinha com uma diferença de apenas um ano de idade. Quando a banda chegou, tiraram inúmeras fotos e subiram para os quartos dos músicos. Desceram duas horas depois e despediram-se ternamente de Peri. A ansiedade crescia. Saiu do hotel e foi para casa dormir, pois queria se poupar para o encontro da noite.

capítulo vinte e sete

Em cima das pedras Peri sentia as nuanças do equilíbrio transportando-o para as várias regiões do universo. O vento do mar e um sol forte na manhã de outono; à direita da praia, as gaivotas sentadas na areia brindavam as ondas com um gosto de renovação. Peri sentia o equilíbrio viajando pelo seu corpo, enquanto saltava pelas pedras e respirava-as em suas distâncias. Saltos, o movimento preciso dos olhos, os braços e pernas suspensos no espaço, o impulso e a chegada ao ponto destino. Peri corria e andava. Enquanto as gaivotas ficavam em sua meditação pacífica, os átomos das pedras vibravam e banhavam o invisível de movimento, os mesmos átomos que compunham seu corpo e faziam parte de muitas outras coisas, micro universos, mundos inumanos, deuses e concepções próprias. Peri sentia o vento no olhar e tudo não passava de um instante infinito, a brisa do mar, o cheiro das rochas, os sambaquis formados pela maré e, em contraste, o verde vivo do morro. O sonho. O momento seguinte, futuro porque não outro que pudesse vir a ser. Emblemas de antigas navegações. Troncos de árvores.

capítulo vinte e oito

Situações insanas. Um estado previsível de atitudes desordenadas, risadas. Que tolices não comete o homem?

Enfim elas vieram, as duas juntas. Depois de uma semana de ansiedade, Peri as encontrara por acaso, atravessando uma rua movimentada do Centro da cidade, pararam e ao mesmo tempo beijaram-no. Mais tarde se encontrariam, pois tinham ainda que fazer algumas coisas e era preciso tempo para agir. Duas horas decorreram e elas então chegaram; Peri controlava-se, sua vontade era de agarrá-las no exato momento de abrir a porta, mas ao invés disso, fez uma careta para disfarçar os músculos contraídos pelo desejo e, docilmente, abriu a porta. Entraram tímidas e aos poucos, ou talvez muito rapidamente, foram se mostrando mais à vontade. A mais velha usava uma mini saia preta, uma pequena camiseta azul grudada ao corpo, uma espécie de tecido acetinado em contraste com o vinil da mini saia. Ao se levantar mostrava generosamente o contorno de suas pernas. A mais nova jogava cartas na virtualidade do computador, uma posição mista de alheamento e comunhão. A berrante sutileza das mulheres. Quando Peri sentiu no ar aquele campo magnético impregnando o quarto com uma eletricidade dúbia, já era tarde demais. Talvez sua ansiedade e fome as tivesse assustado, ou uma esperteza peculiar que ele não soube perceber e que no momento foi decisiva. Talvez apenas quisessem se divertir às suas custas. Ou seriam vítimas de uma rede intrincada de ciúmes e vontades difíceis de dissimular? Ao se dar conta que seus intuitos caíam por água abaixo, a noite adentrava pelas frestas da janela e um céu que não se via em outros tempos singrava seus raios pela madrugada sem nuvens. Ou seja, elas o provocaram e se foram embora, simplesmente. Mas era preciso fazer algo. Peri levantou-se. Correu em disparada e, pacientemente, achou-se num turbilhão de caminhos sem rumos. Voltou para casa e, à meia noite e meia, dormiu.

capítulo vinte e nove

Uma mulher estava grávida. A criança, quando Peri a viu dentro do útero da mulher, tinha três grandes sulcos transversais no rosto e outros três no abdômen. Quando nasceu, dos sulcos cresceram patas de aranha e ela transformou-se num imenso inseto desconhecido. A mãe fugiu e tentou entrar num ônibus em movimento, não conseguiu e caiu. Peri estava no ônibus e viu quando ela se uniu a filha transformando-se no inseto que sempre fora e estivera escondido, geração à geração, dentro delas. Quando olhou para baixo, notou que o ônibus estava parado no topo de uma duna, ao lado de uma arca bíblica e de pombos nos umbrais de edifícios cariocas. Um coreto no meio da praça exalava desertos e era um lugar natural e solitário, visitado e habitado por seres distantes da compreensão humana. Âncora de navios em meio as dunas e canais de escoamento. Garrafas de refrigerantes de cola, rinocerontes banhando-se em oásis de miragem, helicópteros e pragmáticos beija-flores sorvendo o néctar das areias do tempo. Dentro do ônibus, agora vazio, Peri acelerava-o para alcançar uma estrada inacessível, espécie de caleidoscópio mundial, todavia, o céu de um azul apoteótico, delimitava a vastidão do pensamento, e as visões perimetrais sobre o deserto suspenso e transformado em ilha vulcânica, eram os cavalos islandeses e os babuínos espanhóis em embarcações egípcias sobre o Nilo. Palácios portugueses e vistas aéreas de Sintra. A maior floresta do mundo, ou uma vitória-régia boiando dentro dela.

capítulo trinta

Peri abriu bem os olhos e viu o mundo tal como ele era. Mas como seria o mundo para uma montanha? ou para um gato? Uma estrela? Para uma alga marinha. Meu Deus, como seria o mundo para uma alga marinha?

Quando criança, na entrada da escola, Peri sentava nas escadarias, com sua lancheira no ombro e roupa de uniforme, observava as pessoas passando e, por uma fração de segundos, existia em outras vidas, uma por uma, escolhida aleatoriamente.

capítulo trinta e um

Então cravou os dentes nas costas de alguma montanha inacessível. Alguma solidão capaz de subverter o sentido básico de vida, transmutá-lo para outros padrões de realidade. Abrangências. Peri levantou-se e energizou entre as mãos uma esfera de luz, dissipando as trevas com seu movimento de luta e equilíbrio; observou o nada, espécie de não significação contemplada no escuro do espaço. Ou seria mera impaciência? Peri remoeu sua impaciência, agravada, dia a dia, por insignificâncias que para um espírito maduro, não acarretariam mais que um torcer de nariz. Porém, ao invés de superá-la, Peri a aumentou. Passou o dia anterior e a noite inteira praguejando: cortaram sua folga, suas mulheres o haviam abandonado e a possibilidade de voltar a trabalhar de dia distanciava-se em meses à frente, seu humor tornara-se arredio e sua conduta algo mais rebelde. Diríamos desagradável, inoportuno, insensato, seco, áspero. Passara assim a madrugada, com os hóspedes nos seus devidos lugares e o lobby do hotel na semi escuridão. Pensava que poderia estar na rua onde era feriado e todas as pessoas se divertiam. Mas não. Ali estava ele, independente de todas as filosofias de vida, esmurrando portas, cuspindo pelo chão e esquecendo que existia algo mais do que suas frustrações e ansiedades. Assim que saiu do hotel, um guarda pediu para que ele parasse. Isto feito, pediu-lhe os documentos. Peri não possuía habilitação, sua moto foi guinchada e ele encaminhado para o Sétimo Distrito de Santos. Antes praguejara alto e o guarda voltara-se para ele com as seguintes palavras:

- Eu estou cumprindo o meu trabalho. No seu serviço, creio que você faz o mesmo. Então abaixa a bola, porque não adianta nada.

Peri fitou-o dentro de seus olhos e calou-se. Olhou sua farda, seu bloco de multas, sua arma e sua arrogância. Era um homem de trinta e dois anos, nascido em São Paulo, com a fisionomia também típica da polícia, bigode e cabelo curto. Na verdade, o homem que se chamava Antônio, sofria de uma calvície precoce, causada principalmente pelos dissabores da vida. Havia se separado a um ano, mudara-se de São Paulo e procurava esquecer os aborrecimentos que tivera. Mas antes de ser Antônio, ele escondia-se como um policial. Para ser mais exato, ele representava, aos olhos de Peri, a instituição policial, fosse ela militar ou civil. O homem vigiando, punindo, coagindo, extorquindo, torturando e matando o próprio homem, às vezes culpado, às vezes não, mas sempre vítima, seja da falta de educação, arrogância ou brutalidade típicas da polícia. Homens que trabalham contra os homens que estão à margem do que é correto, do que é aceito e do que é imposto como tal, confundindo os lados e ora, se igualando aos que combatem, ora superando-os. No distrito, enquanto esperava para ser autuado, um investigador com cara e jeito de ladrão, comentava ao delegado:

- Faz tempo que eu não trabalho ao sábado nessa porra! Hoje vou trabalhar pra mim. Você acha que eu vou dar dinheiro pro estado?!

Era um sujeito todo malandro, mas talvez esta fosse uma brilhante tática de disfarce ensinada aos policiais, homens de inteligência elevada e profundo sentido de sutileza. Lia o jornal do delegado e vez por outra soltava um comentário:

- Isto aqui é jornal de bicha. Eu gosto de jornal que tenha sangue: filho mata a mãe com alfinetes no pescoço. Não essa merda de jornal. Olha aqui! Não tem que matar esses filhos da puta? E esse moleque, acabou de entrar e vai ser delegado. Manda à merda o interino. Eu quero que ele se foda! Delegado?! Grande bosta. Mês passado, eu fui dezesseis vezes ao fórum. Por isso, se eu ver o ladrão passo pelo outro lado. Só pra não ter que ir ao fórum. Delegado! o senhor tem um real para me dar? Quero ler outro jornal.

O delegado, solícito:

- Está querendo me extorquir?

- O que é isso, seu delegado? - para depois comentar aos que estavam perto. - Se ele não tem, imagine eu?

Em suma, um sujeito agradável. Daqueles que ficam soltando piadinhas em voz baixa, enquanto outras pessoas passam e ele faz cara de idiota. Tudo isso para ser engraçado. O que consegue surpreendentemente bem. Peri observava tudo silenciosamente, apenas arrotando para que o conjunto das frases não lhe embrulhassem o estômago. Mas esses eram homens que viviam em outro mundo, um mundo diferente, com códigos ditados pela violência, acostumados com o lado bizarro da vida. Algumas vezes exercitando seu serviço com indiferença, outras com medo e outras ainda com uma espécie sórdida de prazer. Mas, antes de tudo, por incrível que pareça, são seres humanos que padecem dos mesmos males que qualquer outro ser humano, com seus vícios, virtudes e contradições. Pessoas que sofrem, que têm família, que se alegram e assistem televisão quando podem. Para Peri era melhor enxergar um pouco mais além de sua medíocre pessoa, superando seus desajustes de humor e aproveitando as sortes e reveses de seu caminho.

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 10/06/2007
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