TOTEM - sétimo fragmento

capítulo trinta e dois

O mundo era as borboletas enfileiradas de uma coleção, um mestre de braços abertos sobre três discípulos de cada lado, com um pavão acima da cabeça e inúmeras serpentes sobre os pés, um imenso dormitório vazio, o lance das chamas ou uma caixa de fósforos aberta na escuridão. Era ainda, três fechaduras sobre o movimento sonoro de um disco, o Egito Antigo, suas esfinges e a dança projetada no gesto da bailarina. Ou então, as pinturas pré históricas nas paredes de uma caverna, o baile dos braços no espaço, a explosão de um navio, o mar agitando-se na Idade Média, o movimento metálico nas mãos do homem, os soldados iludidos nos momentos de paz, o purgatório de Dante, uma lâmpada elétrica, duas esferas e um cone. Mais embaixo, era a conversa despreocupada de alguns amigos num bar, com suas caras de mau e demais esquisitices, facas sobre a mesa e um homem de cartola e bengala, à parte, sentado sozinho e olhando de soslaio um mosaico de mulheres. Era também, o deleite do casal, hipnotizado por observar o lançamento único de um foguete. Por outro lado, era as costas curvadas do sábio sobre os cálculos dos astros e suas influências sobre a saúde do corpo, um super herói de capa preta projetando-se num muro alemão, uma borboleta livre pousada no ramo delgado de um arbusto prestes a ser destruída por um batalhão de guerra, era uma praia com canoas na areia e o andar feliz sobre ela, imagens televisivas em preto e branco, surfistas em trens lotados experimentando a velocidade urbana. O mundo era uma cidade pictórica, com homens de chapéu e esquinas para o mar. Uma pequena tartaruga na palma de sua mão.

Peri estava sentado no escuro. À sua frente, os olhos de uma coruja sorriam malevolamente com uma boca escancaradamente humana. Seu pescoço era o sapato alto e vermelho de uma mulher; o tronco era uma complicada engrenagem de um relógio de bolso sobre a metade crescente de Marte; o abdômen, uma televisão que mostrava as imagens do homem pisando pela primeira vez na Lua, a Terra era o umbigo em cima do corpo de um violino, em cujas cordas navegavam lanchas. Os braços eram ao mesmo tempo o busto nu de uma mulher sem cabeça e as suas pernas cruzadas, uma mão segurando um bumerangue. As pernas, duas, ficavam do lado direito e eram meias escarlates com ternos cinzas e sapatos sociais. Peri deitou seu corpo de lado e fechou os olhos. Aos poucos, sentiu uma forte emanação de energia pulsando dentro de sua cabeça, como uma arma que se carrega e está prestes a disparar. Tentou abrir os olhos e não conseguiu, o mesmo se deu quando tentou mover as mãos. Peri sonhava que era um soldado andando por montanhas. Ele abaixou-se para pegar algo e contou ao outro soldado sobre sua cidade natal. Algum lugar longe e inacessível, talvez um vilarejo de clima agradável e povo hospitaleiro. Abriu os olhos e estava deitado no chão do lobby, embaixo da mesa dos mensageiros. As cinco horas levantou-se e a coruja tinha voado longe. Ao entrar na recepção, escutou uma murmurinho sem que pudesse distinguir sua origem. Foi até o balcão e, ao colocar sua cabeça para fora, viu algumas adolescentes sentadas no carpete com as costas no balcão. Eram fãs que esperavam seus ídolos, com suas máquinas fotográficas e caderninhos de autógrafo. Disseram que estavam ali há dias, mas não haviam perdido as esperanças, pois em breve eles apareceriam e elas enfim poderiam realizar seus sonhos. Peri as olhou mais uma vez e voltou ao seu trabalho. Mais tarde.

capítulo trinta e três

Na praia de Itaquitanduva, a manhã de sol e ironia banhava o mundo dos sonhos acordados, pedras e ondas selvagens. Uma índia de lábios de mel e cabelos negros como as asas da graúna, matava sua sede nas águas de uma bica e agradecia aos seus deuses a dádiva que recebia. Levantou-se e caminhou até a beira do mar, deixando que a espuma das ondas borbulhasse nos seus pés repletos de nudez. Sentou-se na areia e fez castelos de pingos, um sobre o outro, pacientemente. Peri encaminhou-se para seu lado e com uma concha na mão, disse:

- Há quem espere pelo amor toda uma vida, mas há outros que, olhando o horizonte, colocam uma concha no ouvido e escutam o barulho ininterrupto do mar. A verdade, é que o amor está sempre presente, porém, dificilmente nos damos conta que o distante está próximo e então, ficamos assim, construindo castelos na beira da areia e temendo a chegada das ondas.

- Seu nome é Peri?

- Seus olhos sonham? Ou são apenas belos o suficiente para iludir os céus?

- Você sabe quem sou?

- ...

- Eu sou a mulher que você sonhou.

Trrrrimmmm. Está na hora de acordar, deixar o mundo vago dos sonhos e ater-se a profundidade do real, ao mundo palpável e concreto. Ou seria apenas o acaso?

capítulo trinta e quatro

Peri olhava as ondas batendo na encosta da Ilha Porchat, com tamanha força que as águas do mar brilhavam ao projetar-se no espaço. As paredes da construção do mundo, gargantas marítimas, vozes celestes e cores púmbleas sob o sol. O inacabável. Estava no que restara do projeto de um prédio, amplos espaços vazios, rachaduras pelos alicerces e rochas como base, apenas as paredes e as escadas. Um tom sombrio de abandono em meio a claridade efusiva do dia. As paredes formavam um mosaico de desenhos e frases sobre os mais diversos assuntos, nomes, datas e tudo o mais que pudesse ser pichado. Uma sensação de altura o invadia. Olhou para o alto mar e ficou observando os navios que esperavam para atracar no Porto de Santos. Pensou nas naus de Martim Afonso de Souza, nos dias passados, no momento presente e nos dias vindouros; pensou nas ruas de paralelepípedos ainda banhadas pelo orvalho da madrugada e descobriu novos países. Numa das paredes, havia o desenho de um homem, feito a carvão, rudimentar e primário, apenas um contorno boiando no espaço, com os braços ao longo do corpo e as pernas esticadas. Sob seus pés, as rachaduras mostravam a armação de ferro por dentro do concreto, cada detalhe, no seu conjunto, formava o desenho de um vale acabando em um abismo. Olhou adiante e viu o azul do céu brincando com a brancura das nuvens, o verde vivo da mata e o dourado áspero do sol. Levantou-se.

capítulo trinta e cinco

O lobby do hotel fora visitado por uma armação metálica, um conjunto de canos que se encaixavam um ao outro, um ser geométrico; estava envolto por um plástico negro e no todo parecia-se com um platô. O teto havia se modificado e agora surgiam desenhos de gesso, linhas correndo lado a lado na sua extensão de velocidades díspares. Um ser silencioso que prostrava-se inadvertidamente no meio do lobby, tirando os móveis e as pessoas de seus lugares e transformando sutilmente suas características. As paredes, imensos quadros de madeira, tornaram-se marmóreas, uma ilusão criada pelo ser geométrico, uma alusão ao luxo, a ilusão dos olhos. Aos poucos Peri foi se acostumando com sua presença. As tietes, que ainda esperavam pelos seus ídolos, aproveitaram o visitante para esconder-se dentro dele, uma maneira drástica de fugir a perseguição dos seguranças, mesmo que até a gerência houvesse permitido, veladamente, sua permanência, porque, ao bem da verdade, um número tão expressivo de fãs no lobby de um hotel, era algo que fazia monta aos olhos e indicava-o como um bom lugar. Porém, os seguranças não davam ouvidos aos argumentos da gerência e continuavam a persegui-las incansavelmente. No meio dessa mixórdia de formas e seres enigmáticos, em determinada madrugada, um casal, ainda jovem, um tanto afoito, entrou no lobby e dirigiu-se a Peri:

- Boa noite. Por favor, qual o número do apartamento que fica ao lado da Praça da Independência, cuja janela está no oitavo andar e é a primeira da esquerda para direita? - Disse o jovem marido, denotando uma crescente ansiedade.

- Apartamento 801.

- Você poderia ligar para lá?

- Infelizmente não. A mesa telefônica está com um problema sério e nós não estamos conseguindo transferir os ramais. O hóspede está esperando por vocês?

- Está. Nós moramos no prédio ao lado e ele estava na janela fazendo sinais para nós.

- Podem subir, então. - Peri estava achando essa situação muito peculiar, estranha talvez. O que seria que estava acontecendo? Ora, um hóspede gesticulando para um casal no prédio ao lado, talvez estivesse querendo algo que um marido ciumento não permitiria. Mas o jovem parecia confiante, dando a entender que não percebia o desejo...

Momentos depois o casal voltara.

- Você tem certeza que é esse mesmo o apartamento? - perguntou o marido.

- Pelas descrições que você deu, sim.

- Bom, obrigado e boa noite. - Saiu resmungando à sua mulher que realmente só poderia ser aquele apartamento e, por algum motivo, o hóspede não quis abrir.

No outro dia, quando Peri preparava alguns relatórios, foi surpreendido pela presença do casal.

- Boa noite. Tudo bem? O hóspede mudou de andar. Desde ontem a noite ele está nos observando. Passa pela janela de toalha e fica fazendo gestos. Eu não tenho cortina no meu apartamento e ele não pára de olhar, mudou de apartamento para enxergar melhor.

- Você tem certeza que é a mesma pessoa?

- Claro que sim; ele tem o cabelo bem curto, é alto e magro.

- Eu posso dar queixa na polícia por causa disso. - Falou a mulher olhando nos olhos de Peri.

- Em que andar ele está agora?

- No quarto andar.

- Na mesma coluna?

- Sim.

Peri consultou os slips de entrada e notou que o lugar indicado pelo casal, não era de um hóspede que tivesse mudado de apartamento.

- Não é o mesmo hóspede, pois o de ontem partiu esta manhã. O apartamento indicado no quarto andar está ocupado por um casal.

- Posso falar com ele? - Perguntou o rapaz.

- Um momento. - Peri respondeu a contra gosto.

- Alo. Não é você que estava olhando a gente pela janela?... Não? Você tem certeza?... Desde ontem a noite... Você não estava hospedado no oitavo andar? Hum... Boa noite... Não era ele - disse a Peri. - Eu não estou louco. Eu tenho certeza. Se você duvida eu lhe levo em casa e mostro como ele fica olhando o tempo todo. Eu tenho certeza que é ele, você precisa acreditar em mim. Eu não sou louco.

- Vamos embora, é melhor irmos dormir. - A mulher o puxou delicadamente pelo braço e o conduziu pelo lobby do hotel. Poderia se dizer que a mulher experimentava um certo orgulho, um sabor de vaidade. As voltas e meneios do ciúme, esse monstro que se engrandece nas entranhas do pensamento e faz sofrer a quem ama.

capítulo trinta e seis

- E você? O que você acha de mim?

- Você?

- É. O que você acha de mim? - Ela estava sentada na cama e seus olhos verdes brilhavam com lágrimas invisíveis. Seu vestidinho rosa, seus tamancos aos pés da cama; no pulso usava o relógio que fora de seu pai, presente de sua mãe depois do falecimento. Então, Peri recordou-se dos seus últimos meses de vida, tornara-se uma criança, vivendo num mundo diferente do nosso, uma tristeza envolveu-o. Nesses momentos Peri poderia tê-lo abraçado, ter-lhe dado conforto e afeto; mas não conseguira, não do modo que quisera, pois a morte nos joga na cara tudo o que poderíamos ter feito e não fizemos. - Hein, o que você acha? - Disse a mulher tirando-o das recordações. - Por que você sempre foge quando eu lhe pergunto sobre mim?

- Porque sempre que você faz esse tipo de pergunta há algum motivo escondido.

- Como assim? - Peri ficou em silêncio. - Toda vez que eu lhe coloco contra a parede você escapa... Onde está o livro que você me emprestou?

- Encima da estante.

- O que você acha de mim?

- Eu acho que você é muito insistente e deveria respeitar meu silêncio, mas você não consegue. Não é verdade?

- Com você eu perdi a vergonha. É, é isso mesmo: eu perdi até a vergonha. Eu sou uma cachorrinha que ficou muito tempo presa e sedenta e, de repente, está livre; estou morrendo de sede e bem aí está um pote cheio de água. Não consigo controlar...

- Eu tenho pensado sobre o autocontrole, sobre como é importante frear os ânimos em circunstâncias adversas. Mas é tão difícil. É mais fácil amadurecermos o intelecto do que entendermos nosso lado emotivo; explodir nas horas erradas, falar quando o prudente era ficar calado, revoltar-se e jogar para o alto as chances de burlar o que nos achata enquanto seres humanos, porque destruir o que há de errado é uma meta no mínimo impossível, então, somos obrigados a adequarmos o que somos ao que se torna necessário; vemos os pequenos erros do indivíduo agigantando-se nas instituições públicas, como um brinquedo de níveis, assim, criamos o estado, a justiça, a polícia, a igreja, o mundo do trabalho e, principalmente, a comédia humana. A sociedade do convívio forjado, onde o real é apenas uma piada sobre o ideal convicto dos homens de direito; funcionários públicos, filas, processos, papéis, tudo o que cria esse lugar autômato regido por leis, paredes e conveniências. Arquivos, números e desaparecimentos por onde os “fortes” exercem seu poder de mímica. Uma casa de espelhos. Entramos nela e vemos, estarrecidos, nossa imagem deformada por inúmeros prismas... Em suma, a vida é bela.

- Será que eu sou tão chata assim pra você não me dizer como eu sou? - Disse a mulher saindo de um momento de torpor. Ela se sentava com as pernas abertas e os braços no meio delas servindo de apoio. - Eu não sou ruim com você. Por que você faz assim?... Eu preciso ir embora, vem cá me dá um beijo, me abraça.

capítulo trinta e sete

Era assim, uma questão de luta, incessante e sempre prestes a eclodir quando menos se esperava. Peri virou uma esquina e esbarrou num homem que vinha apressado, continuou a andar e quando olhou para trás o homem estava encarando-o:

- Que foi? - Gritou o homem, indo em sua direção.

- Que foi o quê?

- Que foi o que, o quê?!

Ao dizer estas palavras, o homem, enfurecido, passou a agredi-lo. Um jogo de ritmos, rumos e punhos. Ele era rápido e forte, alto, tinha boa seqüência de golpes e seus olhos eram negros e vítreos, como os olhos dos loucos. Peri sentira sua respiração mudar instantaneamente, a adrenalina correr pela corrente sangüínea, enquanto a visão do mundo restringia-se a luta, ao instinto de liquidar o adversário. O primeiro golpe foi um cruzado de direita que, de cima para baixo, acertara o queixo de Peri, um golpe rápido e inesperado que despertara a besta que repousa dentro de cada um de nós, o lado violento. Peri deu um passo para trás e absorveu a pancada, acertando, logo em seguida, um chute direto no joelho do homem, assim ganhou espaço, gingando o tronco e desferindo um jab de esquerda, um direto de direita e um cruzado, novamente com a esquerda; o homem perdera o equilíbrio ao tentar se defender, assim, desferia golpes sem direção que, ora eram bloqueados com a cabeça, ora eram defendidos com os braços, aproveitando o movimento do adversário para usar sua força contra ele. Como tivessem apertado seu círculo de luta, Peri usou os cotovelos e joelhos, contundindo e cortando a respiração do homem, quando ele chegou mais perto, Peri deu-lhe uma cabeçada no supercílio, provocando uma torrente de sangue. Empurrou-o com o joelho e saltou, no alto chutou-lhe a cabeça e o homem caiu. Peri olhou-o no chão e continuou a andar, sentindo um outro mundo, diferente daquele que se vê nos chips, nas fibras óticas, nos prédios e arranha-céus, um mundo pré-histórico.

capítulo trinta e oito

A Ilha Porchat luzia num cinza áqueo de sexta à noite, um cheiro de cio propagando-se no ar; Peri saíra de uma festa, onde as mulheres andavam de maiôs pretos e sorrisos falsos nos lábios. Decidiu-se a ir embora, mas a chuva repentina fizera com que parasse à porta de uma danceteria. Como não parasse de chover, entrou. Uma escada íngreme, de pedra e estreita, uma arquitetura labiríntica, portas altas, janelas em arco e uma impressão futurista na pista de dança. Ao entrar, ganhou uma bebida doce e vermelha, a qual bebeu para esquentar o corpo. As músicas se trocavam e as pessoas dançavam embaladas pela hipnose do ritmo, pernas e quadris, costas se arrepiando e mãos dançando sobre o corpo impregnado de sensualidade. As meninas entregavam-se à música como se estivem amando, singela e deliciosamente. No canto direito, em cima de um tablado, uma menina de seus dezessete anos, com jeans apertado e uma sumária camiseta, olhava para todos os lados enquanto rebolava seu sexo, um movimento circular que começava na altura da cintura e ia descendo até os calcanhares e depois subia e se quebrava; Peri dirigiu-se a parede de vidro, no lado oposto, de onde via refletida a imagem da menina dançando e projetando-se sobre a Enseada, exatamente no lugar onde as ondas quebravam, a Porta do Sol. A música e a bebida se misturavam, as imagens se chocavam na imaginação e uma onda de calor invadia-lhe as têmporas. Ela veio em sua direção:

- Você tem um cigarro? Disse com uma voz doce e suada.

- Tenho. - Peri pegou um cigarro e deu à menina, observando o brilho da chama.

- Obrigada. Você está sozinho? Não gosta de dançar? Eu adoro dançar, venho aqui todos os finais de semana. Eu não me lembro de ter visto você antes.

- Eu não conhecia o lugar. É a primeira vez que venho.

- Está gostando?

- Muito. Quer beber? - disse entregando o copo à menina. Você dança sempre assim?

- Assim como?

- Como se estivesse transando.

- Você acha?

- Acho lindo. Que tal se nos sentássemos naquela mesa?

- Prefiro ficar em pé, sentada eu não posso dançar.

- E essa vontade nunca cessa?

- As vezes, quando eu danço a noite inteira e esqueço o mundo. - disse a menina, com um sorriso malicioso entre a fumaça do cigarro e o gelo seco da pista, entre as luzes, cores e movimentos suspensos no desejo. A embriaguez dos corpos, a volúpia do olhar, a música, a menina e a mulher pulsando dentro de seus olhos e silêncios repentinos; Peri desceu os olhos sobre seu corpo e o sentiu, coxas, mãos, quadril, seios e nuca. Segurou sua cintura e a puxou para si:

- Certamente eu devo ter lhe conhecido antes. - seus lábios estavam perto um do outro, ela fechou os olhos e Peri a beijou, suave e obscenamente. O beijo. As línguas, a umidade da saliva, o calor da respiração, a intimidade que se revela e o mundo que desaparece. Peri passava as mãos sobre sua costas e elas, respondendo a vibração do toque, dançavam e se perdiam num mundo de sensações, as pernas se roçavam e os sexos se tocavam sobre a roupa. Estavam dançando e se beijando no meio da pista, sentindo de olhos fechados o brilho ensurdecedor das luzes, o mundo girando e a consciência perdendo o sentido vago da razão, enquanto, freneticamente, suas roupas eram desabotoadas, rasgadas pela vontade. Uma nuvem de borboletas os rodeava e um trapézio convidava-os a se pendurar; a menina estava de lingerie preta e a nudez de suas pernas deslizava pelo rosto de Peri, ele a segurou no colo e a colocou em cima de uma mesa, jogou a bebida sobre seu corpo e sorveu cada gota que deslizava pelos seus seios, colo, sexo, pernas, dedos. Ao penetrá-la, abriu os olhos e viu, refletido nos olhos semicerrados da menina, o gozo explodindo em coro através das borboletas e da chuva que os invadia na alma. O gozo.

capítulo trinta e nove

Eram três horas da manhã e Peri pensava, enquanto um jornal abria-se a sua frente: “Trinta e sete mil famílias sem terra, latifúndios, capitânias hereditárias, matança, homens de metralhadora executando trabalhadores da terra. Trezentos e nove anos de prisão para o soldado militar envolvido em chacina de crianças de rua. Prostituição de menores, ataques à bomba no Líbano, xenofobia na França, atentados terroristas, aumento global da taxa de desemprego, o câncer, a aids, o ebola, o racismo. Cento e doze míseros reais de salário mínimo. Os dois tipos de lagarto venenoso, os monstros e os dragões da academia de letras. Arames farpados, alfinetes garganta abaixo, gritos na noite humana, o lado escuro do dia. Rebeliões nos presídios, brigas na rua, tortura nas delegacias de São Paulo. Uma orelha humana no dorso de um rato. As armas de fogo, o dinheiro e o pensamento burguês. Coturnos pela madrugada adentro. Ou a incrível história do bruxo Foda-se. Ou saber que a raça humana não é eterna? nada? se comparada ao tamanho daquilo que não conhecemos?”

“O mundo é punk e Cândido está no melhor e possível dos mundos; violetas e latas de lixo, Deus atravessando ruas espantado com jingles artificiais, perguntas e suspeitas de resposta, uma canção. O mundo desce ao diafragma e se aloja no plexo solar, o mundo, o mundo é tudo isso que não entendemos, tudo o que não podemos aceitar e, no entanto, está face à face conosco, vindo em nossa direção, atropelando-nos. Onde está o amor? Alguém o viu por aí? Perdido em alguma rua desapercebida de sua presença? O final dos tempos. Mil novecentos e noventa e nove depois de Cristo, dois mil e um. Ou ainda viveremos muito, talvez para destruir o planeta e morrer com ele, ou então fugir quem sabe para onde. Seria possível? Por que essa porcaria de ser humano engana-se tanto? O que importa? Você já parou para ler os jornais e depois se perguntou, enojado, se conseguia lembrar das boas notícias, ou será que estamos propensos a lembrar-nos apenas das coisas ruins? por um acaso, você já se imaginou no meio de uma guerra civil, vendo seus familiares sendo executados e você sem poder fazer nada? Ou quem sabe no meio de um templo hindu de adoração aos ratos enquanto os fiéis morrem de peste bubônica? Este é nosso mundo, mas podemos criar outro. Incrível, não?”

capítulo quarenta

São Paulo, a megametrópole; explosão de cores, sons, fisionomias distantes e inacessíveis. Suores frios e arranha-céus. Ela vestia-se de negro e caminhava com um brilho dúbio nos olhos; Peri a observava e perguntava-se como aquela mulher pudera ter se transformado num vazio tão absoluto, pois só assim poderia explicar esse estado de mudança, esse constante processo de interpretação de vidas alheias. Modelos que a mulher tomava para si como se fossem seus. Estavam na escadaria de um metro, fumavam um cigarro e a multidão de carros e pessoas atropelavam-lhes ao longe. A tarde fria ostentava um sol pálido. Peri estava em silêncio, sem conseguir olhar os olhos verdes daquela interrogação:

- Você gostou de me ver, assim, loira?

- Muito.

- Você é sempre tão irônico. Eu estou com olheiras. É por causa da festas, dorme-se tarde, levanta-se tarde. Ai, essas coisas, sabe? Me conta mais alguma coisa.

- Impossível.

- O que você tem feito, como está, sei lá, qualquer coisa.

- Tenho feito as coisa de sempre. E você? Está bem?

- Estou ótima.

Ela se aproximava de Peri, insinuando-se, enquanto Peri perguntava como aquela mulher podia ser tão descarada, quase como se não tivesse memória, ou vergonha. Ela lhe incomodava, uma sensação desagradável na boca do estômago.

- Me dá um beijo?

- Por quê? - Peri olhou nos seus olhos e sorriu.

- Um só, eu estou com vontade.

- Será?

- Tudo bem, você pode fazer um tipo. É seu direito.

- Se é o meu direito, vamos aproveitá-lo.

Ficaram em silêncio. Peri sentia o insustentável, a vontade de tê-la nos braços. A terra em transe. Controlara-se porque sabia que o prazer do enlace não compensaria o aborrecimento posterior. Era tudo.

- Terminou de fumar?

- Ainda não. Mas pode ir embora. Tudo bem. - Ela chegara perto de Peri e lhe dera um leve beijo nos lábios. Peri sorria silenciosamente enquanto descia as escadas do metro. Em breve estaria em São Vicente.

capítulo quarenta e um

Teriam levado anos e anos para colocar uma pedra sobre a outra, quem poderia saber?

capítulo quarenta e dois

O futuro. Tudo o que poderíamos ser num inextrincável jogo de anagramas, combinações do infinito no nome de Deus. Números. Letras e cores. Situações do fato. O fato mais que o instante. Adivinhações. Substituições.

capítulo quarenta e três

Cadeiras de madeira trabalhada, ipê. Máscaras de ferro. As bombas, fumaças, gazes, estilhaços e pedaços de construção. Argamassa. O cal, o caos. Saiu do cinema e perguntou se acaso a realidade não era aquela. Olhou assustado à sua volta. Os carros que passavam, os fios dos postes, os telefones públicos, bares, bancas de jornal, lojas, a calçada sob seus pés. À sua frente, seres semafóricos executavam sua encenação duvidosa, crianças dormiam dentro de caixas eletrônicos e a fina garoa caía obliquamente sobre seus ombros e pensamentos. Unhas. Ossos de milhões de unhas. Pele sintética, dentes de platina. Sobrecapas de chuva, chapéus. Chuva ácida. Segredos e sementes de guaraná. Conversas celulares. Diálogos perdidos na profusão de sons. Cápsulas espaciais, projetos de arquitetura futurista. A fé. Fez sinal e entrou num coletivo. Um homem cego levantou-se e pediu a caridade dos que estavam presentes e podiam trabalhar, desejando que nunca nos faltasse o pão à mesa. Seus olhos eram vazados por um azul sem vida e um helicóptero sobrevoava a cidade. Passou. Levantou-se e desceu. A rua era um tumulto de olhares que se concentrava em objetos móveis e rápidos como a imaginação e o medo dos passantes. Peri resolvera descer do coletivo, o vento roçava levemente seu corpo e agora estava numa rua escura, ladeada de árvores e casas antigas. Escutou vozes e música, a princípio muito distantes, mas que deixavam entrever uma festa nas proximidades. Sua curiosidade crescia com o desejo de conhecer outras pessoas e dançar a música do mundo. Virando uma esquina encontrou o lugar. Uma mansão com inúmeros carros e convidados aglomerando-se na porta de entrada. O portão de ferro estava guardado por tochas de incenso e seguranças desagradáveis. Um pequeno caos de vozes, pessoas, situações de ansiedade e tensão. Devido ao número excessivo de convidados, muitos que não se precaveram, ficaram do lado de fora tentando entrar. Os seguranças empurravam, as pessoas gritavam e a música, com suas meninas de penteados e tatuagens exóticas, misturava-se com o álcool e os ânimos alterados. A música acelerada e agressiva, a violência, a sensualidade. As pessoas dançavam e se jogavam na piscina decorada com balões de festa e serpentina plástica. Beijavam-se e se amassavam. Então uma briga começou na sala em frente à piscina, socos, joelhadas, gritos, aglomeração, chutes e, forte e seco, Peri ouviu o som de tiros. A multidão saiu correndo, atropelando tudo a sua frente. Duas pessoas passaram feridas, o sangue escorria de suas têmporas e manchava o couro de seus casacos. Uma pessoa inconsciente foi colocada em um carro, uma mulher chorava e gritava para que deixassem a coluna reta, as pessoas se aglomeravam em volta e, de repente, um homem passou pela multidão e deu três tiros na cabeça do homem que estava inconsciente dentro do carro. Peri ganhou as ruas e pensou sobre tudo aquilo enquanto bebia uma cerveja em frente à praia.

capítulo quarenta e quatro

Esquema simples de substanciação condicional. Fractais que se unem. A sociabilidade.

O fundamental era apegar-se ao fato que a realidade era múltipla, assim, qualquer pensamento teria seu correspondente, mesmo que escondido em outros significados, mas presente na teia das relações. Submerso. Então imagine que você está abrindo a porta do seu prédio. É noite e a lembrança de outras épocas invade-lhe o coração, um tempo em que você andava despreocupadamente nas ruas. Agora, você olha para o alto do prédio e percebe o céu da noite. O mundo está acabando. Os desertos se propagaram pelos continentes, o solo está podre para a agricultura, os rios contaminados e o ar cheira mal. Mas não há problema. Você entra no seu apartamento, senta-se na sua poltrona e reconforta-se. Você venceu. O mundo lhe pertence e não há uma viva alma pelas ruas.

capítulo quarenta e cinco

O quarto era um pedaço do mundo que era um pedaço do descabido concentrado em rumores de terras distantes e situações de surpresas. Comumente considerado, teríamos certeza de que tudo não passaria de um desvio na interpretação dos signos. Haicais que transmutaram o sentido dos fatos e os impregnaram de sentidos diversos em diversas faces de ver-se o mesmo. Apoteose semiótica de gestos em palavras, letras que se mesclaram e criaram a religião dos sons no lugar do silêncio, onda de freqüência na constante dos universos não imaginados. O peso suspenso no ar. O vento dos continentes antigos. A copa das árvores. Peri olhou para frente e vislumbrou o seu horizonte propagando-se pelo infinito. Os números e os fatos em projeções de mundo ao longe. Estrelas do mar na areia da praia. Sereias suaves nas nuvens homéricas do pensamento e do ato. Contemplação ativa. Fatorial.

capítulo quarenta e seis

“É preciso que eu diga que ainda não a conheço, mas que desde há muito eu a procuro. Sei que sua beleza é inconfundível e abraça-me os sonhos; seus lábios são doces e suas mãos macias. Um dia eu a terei nos braços e direi o quanto a amo, o quanto esperei por ela. Ela se alegrará, o vento roçará seus cabelos e caminharemos de mãos dadas.”

Márcio Barreto
Enviado por Márcio Barreto em 11/06/2007
Código do texto: T522037