O sonho do Piru

O Piru, Ecce Homo! Nunca vim a saber-lhe o nome ou o sobrenome, muito embora ele sabia do meus, nome e prenomes, ainda que me chamasse por Vanguiné. Mas todos o tratavam assim por aquele aparente colante apelido, e, sem fazer glu-glu, ele ia levando a vida, diferentemente da ave homônima tão conhecida.

Menos nos dias de ação de graças, em que ambos iam indistintos à mesa. Tinha um irmão, o Guelê, semelhante no porte e semblante, mas mais retraído e menos vibrante. Operário na fábrica de tecidos, o miúdo e mulato Piru, nem por tanto, deixava de sonhar. E o objeto de seu sonho, até onde aí me enfronho, era choferar. Pegar o volante de um caminhão, sair transportando carga pela estrada, que vida mais

abençoada.

Uns poucos rapazes do povoado haviam logrado essa façanha e se tornaram objeto da admiração incontida do Piru, e de muitos outros aspirantes aos volantes.

E não era ainda nem o tempo do Fenemê, donde se pode ver a raridade de um caminhão, proporcional só ao impacto que causava a mera vista do bichão. Enquanto sonhava, ia o Piru tocando teares "coréia", aquela praga que quebrava a toda hora, impedindo-o de alcançar as metas de produção determinadas pela gerência.

Uma razão e uma motivação a mais para o Piru mudar de profissão. E aí, entrava, triunfal, o caminhão. Exigente, nada obstante a vida quase indigente, o Piru não se contentava com qualquer marca não: dizia de alto e bom som que queria mesmo era um International - que pronunciava exatamente com se grafava, fazendo ainda questão de arrematar ...TIONAL...pouca bola dando aos Fords e Chevrolets da ocasião.

Entretanto, entre o sonho e a máquina dos sonhos, havia a carteira de habilitação, profissional, por sinal. E ali, sem a escolaridade suficiente, sem tempo e cabeça para estudar aquela parafernália de sinalizações e de funções de um motor, de uma transmissão, deu o Piru um breque à sua aspiração.

Deu uma ré, fez meia-volta, engatou uma terceira e voltou à briga costumeira com os teares da vida inteira.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 26/07/2015
Reeditado em 25/01/2023
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