O PINTO E A PERERECA

Eu o conheci tempos atrás.

Ele mesmo se considerava medíocre.

Vivera por mais de quarenta anos sem prosperar, não angariara nenhum patrimônio e perdera o contato com os raros amigos de outrora.

Separado, só, com míseros tostões no bolso, vivendo em vilarejo dos confins destes Brasis, com o que sobrou (computador defasado, impressora, aparelho velho de som, cds, roupas surradas e pertences menores), em casa velha, abandonada, cedida por simpatizante apiedado, fazia bicos para salvar o miojo de cada dia, como escritor fantasma de trabalhos estudantis e teses de mestrado. Não era, exatamente, empreita literária, mas matava a vontade de escrever e comer, simultaneamente.

Coincidentemente, começou a sentir nojo de tanta miserabilidade, ao mesmo tempo em que o fígado teimava em rejeitar a usual alimentação, preponderantemente constituída de xêpas, toxinas naturais, toxinas industriais e alguns parcos nutrientes.

-Hay que tentar alguna cosa!

Sempre dizia as frases de efeito em outro idioma, porque sentia em si mesmo um impacto diferente, como se estivesse em um filme estrangeiro, de orçamento milionário. Resolveu que, pra início de conversa, iria participar de concursos literários. Afinal, sabia escrever bem, ou ao menos medianamente bem, e era criativo, isso sim. Então vasculhou a internet, à procura de alguma oportunidade que se encaixasse em sua meta, e, sem muita demora, encontrou seu alvo. Um certame que visava encontrar novos talentos, com criatividade, senso crítico e fina ironia.

- That’s me! Parece descrição detalhada deste insigne escritor.

Pensando no tema, lembrou-se de projeto engavetado há algum tempo: pequeno livro erótico para adolescentes, didático, com estrutura romanceada, divertido e com linguajar apetecível aos jovens de idade tenra, que servisse de orientação sexual, sem ser chato. Julgando-se apto e pronto, considerou enviar texto introdutório, expondo a originalidade da idéia e sua capacidade literária. Trouxe-me o original para ler (em primeira mão) debaixo de chuva, em fria manhã de outono. Entregou-me três páginas e sentou, ensopado e ansioso, na cadeira ao lado, aguardando minha manifestação, ao fim da leitura.

A curiosa narrativa, que envolvia um diálogo, assim se desenvolvia:

- Ei ! Quem é você? Que é que está espiando? Quantos anos tem?

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- Tá pensando que sou maluco? Saia daqui agora!

- Não leia mais uma palavra! Isso não é pra sua idade. Se manda!

- Vou parar de escrever até que você se afaste.

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- Ainda está por aí? Não? Bom então, lá vai:

- O título pode ser...

- O BOCA MOLE

Tudo começou há alguns anos, quando eu ainda ensaiava as primeiras letrinhas, e já era muito curioso. Queria saber de tudo um pouco. Mas o que mais chamava a atenção eram as coisas que ninguém queria me ensinar.

Sabe, né? Aquelas coisas. Aqueeeelas!

Nunca fui muito tímido. Perguntava na lata, na bucha. Daí, todo mundo ficava vermelho. Um desconversava, outro dizia pra ter vergonha na cara, e sempre aparecia alguém que me defendia.

- Coitadinho! Tá curioso! Como é que vai aprender, se ninguém ensina?

Mas ninguém ensinava. Todos corriam. Alguns torciam o nariz para as perguntas, outros bronqueavam e havia os que riam e nada respondiam. Certa vez ganhei um livro, chamado: “aprendendo as coisas da vida”, e mergulhei de cara, pensando que ia encontrar um monte de coisa boa, mas que droga! Falava de flores, abelhas, papai do céu e sementinhas na barriga da mamãe.

Não passei da terceira página. Muito mané!

Reclamei e ganhei outro, menos idiota e cheio de explicação científica.

Parecia aula de ciências. Nem fotografia de gente pelada tinha!

Mas minha infância teve momentos que vale a pena eternizar.

Lembro bem, que por aquela época, na rua acima, perto de casa, havia um galinheiro. Ficava na parte de trás de um terreno baldio, aos cuidados de um velhinho. O seu Antenor. As crianças da rua, e principalmente as garotas, gostavam de pegar os pintinhos nas mãos e acariciá-los. Eram fofos!

Mas o que eu e os outros garotos gostávamos mesmo, era de procurar as pererecas, no brejo, que ficava na parte baixa da rua. Elas eram espertas, e quando conseguíamos pegar alguma, tínhamos de agarrar forte, para não fugir.

As meninas acariciando os pintinhos lá em cima, e os garotos agarrando as pererecas lá em baixo. Que lembrança gostosa!

Mas voltando à vaca fria, lembra que comentei a respeito das negativas dos adultos, sobre assuntos que me interessavam?

Pois é! Deixei o pessoal de lado e fui à luta. Tentei pesquisar por conta.

Não tinha dinheiro pra comprar revista de gente pelada, não podia entrar no cinema para ver filme proibido, não existia videocassete ainda e eu não tinha condição de bisbilhotar os outros; então, numa de minhas aventuras com pererecas (do brejo), ouvi um amigo contar ao outro, sobre uma perereca (de fora do brejo). Abri bem as orelhas, e quis saber mais.

Perceberam e se calaram.

É claro que não desisti de saber o tal segredo. Prestei atenção até que consegui descobrir. Foi minha primeira investigação, e foi bem sucedida. Foi também a primeira vez em que vi, ao vivo e em cores, como é que as coisas aconteciam por debaixo dos panos. Vou contar a história, que chamarei de ...

- O PINTO E A PERERECA

- Ei garoto! Está de novo atrás de mim? Está lendo o que escrevo?

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- Já lhe disse que isto não é pra sua idade. Se manda!

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- O que? Enrolação? Estou enrolando? Que é que você entende disso?

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- Ô coisa fofa! Isso são preliminares. Sabe o que são preliminares?

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- Já vi que não tem a menor idéia. Quando vai comer, não lava a mão antes ? Espero que sim!

- Quando vai viajar, não arruma antes a mala? Ou quem faz é mamãe?

- Quando toma banho, não tira a roupa antes? O banho mensal, sabe?

- Se gosta de alguém, não ensaia antes o que vai falar?

- Pois é, chulé! Para tudo tem um começo, um preparo. Pra entender o assunto e a história, tem de entrar no clima. O clima esquenta pouco a pouco, devagar e sempre. Agora, se você calar o bico, tiver um pouco de paciência e parar de se coçar, posso continuar a escrever e contar sobre quando o pintinho do meu amigo ficou apaixonado pela perereca mais maneira daquele lugar. Só que não vou falar assim, de cara, da bagunça toda, sem antes apresentar todos os personagens e explicar como a vaca foi para o brejo.

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- Como que vaca? O pinto!

- Olhe aqui! Veja se não me confunde.

- Aprenda sobre preliminares. Você vai precisar!

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Tudo bem ! Não precisa entender, por enquanto, mas pare de reclamar!

- Leia, se quiser, e pare de me encher a paciência!

- Ou será que o machão quer parar, para assistir o programa da Xuxa?

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Assim terminava o texto que ele iria enviar ao concurso literário.

Eu não sabia o que dizer de algo tão insólito, mas meu pobre, molhado e ansioso amigo aguardava minha impressão. Sorri e ensaiei um elogio, porém nem houve tempo de ampará-lo, antes que caísse, fulminado por um enfarte. Talvez alimentação inadequada, tristeza ou até incapacidade de resistir a mais uma eventual crítica, após tantos anos de ostracismo e perdas pessoais. Tomei a iniciativa de enviar o texto ao tal concurso e, surpreendentemente, a obra foi premiada. Quando, porém, fui receber o prêmio, que dedicaria à memória do autor, voltei de mãos abanando. Ao saber da morte do escritor, os juízes desclassificaram o trabalho. Nem morto ele obteve sucesso.

Era genialmente medíocre, suntuosamente pobre, e ao invés de se revoltar contra o mundo que o marginalizou, mantinha a ansiedade jovial dos idealistas e sonhava acordado. Mesmo que fosse um sonho meio confuso.

Se ele pudesse reclamar da desclassificação, talvez dissesse:

- Son todos unos papafritas, zanahorias!

E eu, nesse caso, estaria, totalmente, de acordo com ele. Punto!

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 27/07/2015
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