A pedra

A história que passo a narrar está um pouco além do que se poderia chamar de insólita. Talvez seja melhor chamá-la de absurda. Bom, o leitor saberá o que dizer melhor do que qualquer preâmbulo.

Afonso estava ali de férias. Mas a amplidão do mar e do céu o fazia desejar estar naquele lugar para sempre e nunca mais voltar ao trabalho de administração de empresas. Vestia uma sunga azul escura que destacava seu corpanzil moreno. Portava seus indefectíveis patuás de boa sorte no pescoço, como o dente de tubarão, a mão de Fátima e o pequeno pentagrama com água marinha. Também usava uma fitinha no pulso de Nossa Senhora que havia adquirido na Bahia.

A praia de Itacoatiara como ele conhecia há muito tempo estava mais cheia do que o habitual. Porém, mesmo assim, havia lugares meio que “desertos” entre as grandes concentrações de barraquinhas e sombrinhas. Foi numa dessas partes da praia que o solteirão de meia-idade encontrou aquilo que mudaria a sua vida para sempre. “No meio do caminho havia uma pedra. Havia uma pedra no meio do caminho. Nunca me esquecerei (...)” O poema do poeta maior bateu forte na memória de Afonso quando estava por subir a formação rochosa que dava para uma pequena lagoazinha, um pouco afastada da praia. Mas no meio do caminho havia... uma pedra.

O homem não saberia explicar porque sentiu-se atraído por aquela pedra lisa do tipo basalto. A pedra totalmente preta, com um leve brilho e extremamente lisa era usada em tratamentos de saúde alternativos e esotéricos. Disso Afonso sabia. O que o nosso amigo não sabia era que aquela coisa poderia exercer o que ela exercera em sua mente e coração a partir daquele momento. A pedra não era nem pequena nem grande, podia ser transportada facilmente com as duas mãos e, com certa dificuldade, com apenas uma mão.

Mas o encantamento com que Afonso segurou e a levou para casa, transcendeu tudo o que o homem vivera até então. Quando chegou no seu lar, preparou um lugar todo especial no jardim. Revolvendo a terra e arrancando as plantas por perto, modelou uma espécie de altar para Clara. Sim, Clara. A pedra tinha nome, era necessário respeito. A pedra era preta. Totalmente preta. Como então Afonso chegou ao nome Clara? Explico: nas suas muitas andanças às bibliotecas públicas, leituras muitas de livros muito esotéricos, o homem tinha se deparado com a definição de Deus pelos essênios – e também por São Dionísio, como ficou sabendo depois de mais pesquisas – e aquela definição teve singular influência nesse nome. Por que os essênios, como saberão os minimamente iniciados nesse conhecimento, consideravam Deus como escuridão e não como luz. A escuridão, diziam esses espiritualistas, é eterna e não necessita de nenhuma fonte externa para vir a ser, como a luz necessita. Dessa forma, a escuridão é adequada muito mais à concepção de Deus do que a luz que é, além de tudo, efêmera. Por essa razão, podemos perceber como Afonso deu o nome de Clara à pedra preta, embora o leitor possa continuar achando uma excentricidade enorme.

Monolitos e pedras colocadas numa certa disposição em grandes campos existem em todas as culturas, sendo as mais famosas as de Stonehenge e Avebury. E isso existe desde a pré-história. Afonso também tinha esbarrado nesses assuntos em suas pesquisas de esoterismo. Sendo um adepto informal da cultura da nova era e sem nenhum atrelamento às religiões organizadas e nem às ordens iniciáticas, o homem considerava-se um neófito nesses conhecimentos. Se era um neófito, Afonso era dos melhores, candidato a mestre, pelo menos em teoria, em pouco tempo. Mas a teoria, como se sabe, não é a prática e pouco conhecimento, nesses casos, é mais perigoso do que conhecimento nenhum.

-- O que você está fazendo? – perguntou Cássia sua namorada quando o homem passou várias horas diante da pedra.

-- Estou meditando com Clara. – foi a resposta de Afonso tão repentina quanto absurda.

-- O que?

-- A pedra se chama Clara. Eu estou meditando com a pedra.

-- Como assim, meu amor?

E não houve jeito de demover Afonso do seu intento. O homem tinha uma disposição fora do comum para com a sua companheira Clara. Tanto que passou praticamente o resto das férias, todos os dias, de frente para o objeto natural que, à essa altura, não era mais um mero objeto. Era algo sagrado.

Quando chegou, finalmente, o fim do descanso do trabalho, mais ou menos vinte dias depois, Afonso não fora trabalhar. Sua vida estava devotada à Clara. Se aquela era a famosa pedra filosofal, então, nada seria mais importante do que estar na presença dela todo o tempo. E o pensamento de Afonso levava em conta essa possibilidade – a de que Clara fosse realmente uma pedra capaz de transformar qualquer metal em ouro -- embora o administrador partisse do pressuposto que a alquimia verdadeira era com o seu espírito e não com objetos. O ouro sendo a elevação máxima do espírito, o êxtase e o metal inferior sendo a alma do neófito a ser trabalhada. O homem tinha necessidade quase estóica de estar com a pedra todo o tempo também por causa do medo de que ladrões – e nesse caso, só poderiam ser alquimistas – estivessem atrás de Clara.

Aquilo havia se tornado uma verdadeira obsessão na vida de Afonso. Não foi à toa que Cássia finalmente rompeu com o homem e o deixou sozinho com a pedra. Depois disso, o homem tornou-se anda mais recluso e passou a falar com Clara.

-- Estamos a sós agora, Clara. Me fale, me revele o segredo. O segredo da vida. O segredo da vida e da morte.

A pedra impassível à sua frente não respondia. Mas o querido objeto passou a responder depois que Afonso submeteu-se a um intenso jejum por doze dias: o dia inteiro sem nada comer só quebrando à noite, com um breve jantar.

--Me fale, Clara. Me fale o segredo que você guarda.

-- O segredo é muito simples.

-- E qual é? Diga, diga.

-- Só posso revelá-lo no local adequado. Na praia onde você me encontrou nessa sexta-feira 13, à meia-noite.

Partiu então, o administrador para Itacoatiara na sexta-feira 13, à noite, como havia dito Clara na esperança de que o querido objeto revelasse o segredo dos segredos para sua pessoa. A transmutação com elementais da terra havia sido fartamente - e superficialmente quase sempre é bom que se diga – abordada pela mídia quando fala dos gnomos. A bem da verdade esse conhecimento já tinha sido até ridicularizado muitas vezes. Mas esses elementais existem, pensava Afonso enquanto dirigia seu Land-Rover até à praia.

Seria possível que o espírito de um gnomo estivesse se comunicando com o homem enquanto falava com Clara? Nesse caso poderia ser um espírito zombeteiro e não uma entidade em elevação de mana como Afonso pensava. Mas logo afastou o pensamento:

-- Não, claro que não. Você não seria falsa comigo, não é Clara?

-- Claro que não, amigo. — respondeu na mesma hora a pedra.

Chegando ao seu destino, percebeu que a praia estava deserta e pôs-se logo a fazer o que tinha que fazer. Não tinha, na verdade, certeza do que era, mas que haveria de fazer sim, isso sabia.

Colocou Clara de costas para as águas e sentou-se de frente para a amplidão do mar, respirando o cheiro da noite. Era quase meia-noite quando o homem perguntou à Clara se aquele era o momento certo.

-- Leve-me para o mar.

-- O que? – perguntou aturdido Afonso.

-- Quero ir para o mar, me leve para lá.

Sem saber muito o que significava aquele desejo de Clara, o homem obedeceu. Carregou a pedra por entre as ondas que estavam bem altas. Porém logo percebeu que sua tarefa seria inglória, porque toda vez que avançava um bocado, Clara pedia que fosse mais longe. E cada vez mais longe.

Adentrou o mar, nadando o máximo que pôde, sem pestanejar. Para seu azar, as ondas estavam além da sua capacidade de nadador porque, além de todo o esforço, ele carregava a pedra numa das mãos. Não seria errado dizer que o administrador levou até as últimas conseqüências sua obsessão com uma mera pedra, mas o leitor deve compreender que Clara, enfim... tinha um nome, chamava-se Clara e podia ter profundas conexões com o mundo espiritual...mas... bom, deixa para lá... É, não é possível continuar a defesa do nosso amigo...

Só Afonso era capaz de perceber as implicações espirituais de Clara e por mais que possamos deliberar a respeito nunca chegaremos ao pensamento que norteou sua última noite.

Afonso e a pedra nunca mais foram vistos em Itacoatiara e em nenhum outro lugar depois daquela sexta feira 13.

Mauricio Duarte (Divyam Anuragi)
Enviado por Mauricio Duarte (Divyam Anuragi) em 31/08/2015
Código do texto: T5366252
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