Ah, Ção de graças...

Você que é do tempo do ginásio, Gildásio, comigo há de convir: muito lá teve que esgrimir. Minha vida ginasiana foi de 62 a 65: peguei uma Copa e uma revolução. A ilusão da Copa murchou logo na edição seguinte do torneio, mas a redentora só nos deixaria ao completar sacudidos 21 anos.

Concentremo-nos contudo naquele quadriênio que me marcou a existência, e por pouco teria desaguado na desistência, pois foi um período conturbado lá em casa, e papai, desiludido com a fábrica, que lhe negava progressão funcional, começava a se persuadir de que a melhor educação para a juventude era o trabalho, por meio da busca de um ofício, uma profissão, em detrimento dos estudos. Trabalho dobrado e bem obrado, mamãe teve em convencê-lo do contrário, e por fim, sua perseverança prevaleceu.

E, com a irmandade, eu ia tirando de letra, nem sempre na melhor grafia, os encargos letivos. Era, em geral, de boa qualidade o corpo docente, e havia aquela motivação de se estar aprendendo algo além, que nos levaria a ser mais alguém. E até a companhia, com que se competia, bem fazia.

Driblar a fome ao longo da quatro a cinco horas matinais é que era um desafio. E aí, não se singularizavam os menos dos melhorzinho aquinhoados. Todos discentes éramos uns esfomeados, pela dureza da concentração nos estudos, ainda agravados. Ainda não havia uma cantina, e se houvesse, estaria acima de muitas posses.

Foi quando a Ção deu sua lição: sem quiçá ter encarado o primário, lá de seu fundo de quintal, que divisava os terrenos do ginásio, a Ção, em ação, desafiou a cerca de arame farpado para oferecer um café com pastel para a molecada. Mas mais do que a cerca, rompeu ela também o apartheid da negritude, que tanto desilude, num café ainda mais preto do que sua cútis.

E o suplementou com pastéis. Que não chegavam brastemporais, tanto em forma ou conteúdo, mas que enganavam a fome. Também não davam pro bolso de todos, mas atendiam os mais afoitos.

Sem acesso regular àquela iguaria, arranjei, todavia, uma forma de homenagear a pasteleira quando o esguio Professor João Bicalho, entusiástico, bombástico, tentava nos inculcar as noções dos modos e tempos do verbos. À sua pergunta a quem pudesse definir o que era ação, eu lasquei: a Ção é aquela mulher que vende pastel. Mas minha voz foi tão fraquinha, vai ver que de fome, que só um colega ao meu lado, o Osvaldino, foi que notou e me olhou atônito: se o Professor tivesse ouvido o que Vc falou ele te botava pra fora. E não sendo a hora do recreio, nem pastel - sem recheio - eu poderia comer. E em casa, mais cedo, alguma bolacha havera de arder...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 19/09/2015
Reeditado em 17/11/2022
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