A flor

Nasci perdido e cresci solitário numa vastidão erma de puro lixo.

Daquele enorme e antigo lixão, criado e abandonado por alguém já há muitos anos, me alimentei com os restos da morte, decomposição e putrefação.

Apenas vermes, ratos, abutres e urubus eram minha companhia. Ninguém mais conseguia viver ali.

Não me lembro de como lá cheguei, e não conseguia sair.

A feiura e o fedor tornaram-se minha existência, e nada de horrível que eu lá descobria me chocava. Me acostumei.

Todo dia eu subia e descia morros e vales de lixo, caminhava por planícies de carniça esturricada pelo sol, contemplava catedrais de dejetos, margeava lagos de chorume, espantava revoadas de moscas, me perdia em névoas de vapores tóxicos. Sentava e observava todo aquele formidável espetáculo de degradação ambiental, aquele gigante defunto que se movimentava como se estivesse vivo em suas inúmeras reações químicas de reacomodação, destruição e renascimento da matéria.

Certo dia, numa de minhas andanças próximas ao mais alto daqueles morros de lixo, um que eu jamais conseguira galgar, fixei meus olhos para o cume e pude enxergar algo colorido, dum vermelho belo e vívido, destoando das cores cinzentas e pardas ao redor.

Fiquei algum tempo extasiado por aquela visagem; como, naquele lugar medonho, pude ver algo que eu poderia definir como belo?

Confesso que a confusão me tomou conta e, sem saber o que fazer, apenas fiquei ali, olhando até quase minhas vistas se queimarem contra o reflexo do sol que se punha por detrás do morro.

Ao anoitecer, voltei para minha cabana com estranhas sensações, que fazia muito tempo eu não experimentara: fascinação e alegria.

Mal consegui dormir aquela noite.

No dia seguinte, despertei cedinho e rumei para o morro, disposto a subi-lo e poder colher aquilo que despertou em mim sentimentos mais nobres do que a rotina do caos.

Enfiei minhas mãos entre os dejetos e fui subindo, lento, desajeitado, escorregando, caindo e voltando. Suava muito, e este trajeto me custou alguns dias, nos quais acampava no meio do caminho. Muitas vezes pensava em desistir, mas bastava olhar para aquilo e me animava novamente.

Chegando cada dia mais perto, tive uma vaga lembrança do que podia ser aquela coisa tão bela: uma flor! Nalgum dia eu tive a fortuna de conhecê-la, e rosa era o nome dela!

E como essa lembrança me fez mais feliz! E perplexo! Como daquele lugar poderia nascer uma rosa? Como?

Meu coração se aqueceu, meu corpo formigava. As feridas nos dedos e nas solas dos embrutecidos pés não foram capazes de me parar. Como eu queria aquela rosa! Como!

Por fim, contornando a volta por detrás do cume, consegui alcançá-la; e quão grande foi minha decepção…

Me aproximando calmamente, para não cometer nenhum erro naquele momento tão esperado e crucial, acreditando sentir algum perfume, pelo contrário, senti o horror que há tempos não conseguia sentir também: aquilo que eu pensava ser a expressão da beleza da Criação divina fora de seu devido lugar apenas era mais uma obra grotesca da mão demoníaca que criou o lugar onde eu estava.

Era um aborto.

Um ser disforme totalmente virado do avesso, que de longe se assemelhava a uma flor, tamanha era a sua formação bizarra. O vermelho era de suas vísceras expostas, agora já perdendo a cor viva e tornando-se de um triste marrom como todo o resto ao seu redor.

Fiquei desolado. Estarrecido. Como também fazia muito tempo não me sentia.

Olhei para o alto e vi o grande número de abutres rodando, famintos, atraídos coincidentemente apenas naquele exato momento pela carniça não mais fresca. Porém, por mais que ocupassem os céus, a imensidão azul por detrás deles, com o sol e as nuvens, me deram novo alento, um novo sopro de esperança.

Aproveitando minha localização privilegiada, olhei tudo ao meu redor e vi que, ao longe, havia uma saída além do lixão.

Desci a montanha com dificuldade, e com mais dificuldade ainda abandonei aquele lugar horrível que provia meu sustento.

Hoje estou aqui, sentado com vocês neste imenso deserto, contando minha história. Confesso que hoje a vida é mais dura, pois aqui é mais extremo de se viver, e a monotonia da areia e das dunas que dançam ao sabor dos ventos é maior do que a contraditória monotonia cheia de novidades do lixo, tão rico em coisas descartadas.

Por mais que eu pense que a tragédia de minha vida e, especialmente, da ilusão da tal flor nunca mais me deixarão, continuo caminhando. Assim como um dia me livrei da segurança do lixão, impelido pela decepção, acredito que eu possa me livrar da solidão deste deserto.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 09/11/2015
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