O velório do morto bem vivo

— Me traz outra latinha de cerveja, Neusa — pediu o velho Agenor, enquanto assistia ao noticiário, deitado no sofá.

— Nada disso, homem! — Respondeu a senhora corpulenta de pele bronzeada e cabelos tingidos de preto, cortados bem curtos — Você já tomou quatro. O médico disse que você precisa se cuidar, homem. Olha o seu coração, Agenor. O velho deu de ombros:

— Mas que merda, mulher! Não vou infartar por causa de uma lata de cerveja. De repente o âncora do telejornal anunciava:

— O governo federal irá suspender pelo prazo de seis meses a aposentadoria dos aposentados que ganham até dois salários-mínimos.

Ao ouvir tal notícia o velho empalideceu, ficando roxo logo a seguir; levou a mão esquerda ao peito, deu três tossidas e, despencando do sofá, caiu duro no chão.

Foi assim que, aos 85 anos, o velho Agenor batera as botas.

Familiares e amigos estavam em volta do corpo, numa das salas do velório municipal. No caixão, o velho parecia zombar de todos.

— Pobre papai, morreu de desgosto — comentou a filha mais velha, dentro de um longo vestido preto.

Por sua vez, o caçula, jovem professor de filosofia recém-formado, aproveita a ocasião para filosofar:

— Antigamente as pessoas velavam seus entes queridos no aconchego do lar. Hoje, nossas sociedades querem afastar a ideia da morte, afastando os inconvenientes mortos de casa. Morrer é parte inevitável do ciclo da vida, mas nós nos recusamos a pensar na morte. Alimentamos a ilusão de que isto nunca vai ocorrer conosco.

Nesse instante o defunto abre os olhos, ergue a cabeça e reclama:

— Quem foi o filho duma égua que me botou este maldito paletó? Vocês não pretendem me enterrar com essa roupa, nesse calor, pretendem?

Sem esperar por resposta, o velho Agenor sai do caixão, despe-se daquelas roupas abafadas e pelado, começa a andar pela sala, entre os parentes e amigos presentes. Coisa estranha! Ao mesmo tempo em que caminhava livre e solto, ele se via ainda deitado no caixão, vestido com aquele paletó marrom horroroso.

O morto se aproxima de duas senhoras que conversavam num canto mais afastado da sala, para escutar o que falavam. A primeira comentava:

— Nem te conto, comadre, aquele seu Agenor era danado! Uma vez ele até tentou me agarrar por trás, enquanto eu varria a calçada.

— Tentei não, Maria, eu te peguei mesmo. Naquela época você tinha um corpo benfeito e tava dando mole, mas depois que se casou, virou um bucho.

— E além de sem-vergonha, aquele “véio” era um tremendo mal-educado! Ele peidava na frente de idosa, moça, criança, doutor... Não respeitava ninguém — acrescentou a outra.

— Em primeiro lugar, dona Zuleica, “véio” é o senhor seu pai. Em segundo lugar, ah, peidar é bom demais! Será que morto também solta peido?

— Cruzes! Senti um arrepio na espinha agora, Maria. E a primeira mulher adverte:

— Vamos parar de falar mal dos mortos.

Ao deixar seu próprio velório para ir tomar um ar puro, o defunto encontra sua neta adolescente encostada a uma parede do lado de fora, aos beijos e amassos com seu namorado. O rapaz propunha apaixonado:

— Vamos sair daqui, Gabi, conheço um motel que fica aqui pertinho. Ninguém vai sentir nossa falta, vamos!

— Não! Respeite a morte do meu avô, Geraldo.

— Acho melhor você ir logo, Gabi, pois você já está quase dando pra ele aqui na rua mesmo — troçou o morto. — Deixe de cerimônia, minha neta, não dê atenção para aquela beata da sua mãe; aproveite a vida, pois ela é muito curta. Só não deixe esse seu namoradinho colocar um neném no seu bucho antes de você decidir se quer mesmo se casar com ele. No criado mudo, no quarto do vovô, tem um pacote de camisinhas. Pode pegar, Gabi.

De repente a moça puxa o namorado pelo braço e os dois saem correndo.

— Gente! Será que ela ouviu a minha ideia?

Voltando para dentro, o morto percebe que algumas pessoas tomavam café e chá.

— Alguém poderia me arrumar uma cerveja? Já estou há muitas horas de boca seca. Em seguida, ao se aproximar do grupo de senhoras — incluindo a viúva e filha — que rezavam junto ao seu caixão, o defunto se posta à frente de uma freira, que ao percebê-lo dá um grito estridente:

— Tarado! Pervertido!

Ao perceber sua gafe, o velho Agenor cobre a genitália com as mãos, afastando-se do campo de visão da religiosa.

— Ora essa! — Considera o morto admirado. — Acho melhor eu colocar ao menos a cueca, para não assustar mais beatas.

— O que foi que houve, irmã? — alguém indagou à freira.

— Não sei. De vez em quando minhas faculdades mediúnicas insistem em me pregar algumas peças.

— Que Deus a proteja, irmã!

— Amém!

Na hora do enterro o morto se senta sobre o caixão lacrado e enquanto os carregadores conduzem o ataúde para o cemitério, o defunto acena para as pessoas.

Alguém reclama:

— Puxa, como esse caixão está pesado!

O defunto era só contentamento ao concluir:

— Foi o velório mais divertido que eu já participei.

No ápice do enterro, quando o caixão já se preparava para baixar à sepultura, a viúva começa a gritar desesperada:

— Eu quero ir junto. Por favor, me deixem ir com ele!

Sem perder tempo, o morto empurra a mulher para dentro da cova.

Para a multidão, parecera que dona Neusa perdera o equilíbrio, pois estava na beira da sepultura. O fato é que ao cair, a viúva quase quebrou a perna direita.

— Isso foi praga sua, Agenor! — Esbravejou a senhora, toda esfolada.

— Benfeito, Neusa! — O morto agora era só gargalhada — Quem mandou ser hipócrita.

Na saída do cemitério, o morto fita o céu e percebe que alguém lhe lança uma escada feita de um material flexível, quase transparente. Então o velho Agenor começa a subir os degraus, até sumir por entre as nuvens, enquanto os parentes e amigos retomavam seus afazeres cotidianos, alheios a tudo o que acontecera no plano invisível daquele velório.

" Estou morto, mas estou vivo.

Bem vivo, por sinal!

Agora me vou em paz.

Sem ódio, sem mágoas.

Sim, eu me vou.

E que essa gente hipócrita espere pela sua vez."