Irmandade do Adeus.

17h15 de uma terça-feira chuvosa. O limo do muro está mais do que escorregadio. Esse carcomido e indefinido divisor de moradias, tem proximidade ao convento da Irmandade do Adeus. Por ser totalmente desconhecida a sua rotina e o que impera além muro, essa incógnitus habitare, mais se aproxima de um solar das escarpadas de Meteora, do que um habitat arquitetônico de estilo despretencioso para os moldes religiosos.

Apenas mulheres habitam o convento. Sempre por volta das 16h20, um grupo de 9 “irmãs” passam — eu disse “passam” e não, “passeiam” — quase em fila indiana bem rente ao muro limado. Cabeça baixa não olham absolutamente para nada e ninguém a não ser para os próprios pés. Que por sinal estão descalços. Aí temos uma pista que remete ao mundo que essas “damas envoltas em misteriosos capuzes”, parecem viver (?). Uma longa túnica de linho preta é a primeira e última moda dessas contristadas. Quando surgem ninguém delas se aproxima. Claro, também elas a ninguém dirigem um simples e fugidio olhar.

Sabe-se que suas caminhadas em passadas firmes como se fosse uma marcha marcial, sem paradas, duram cerca de 2 horas diárias. O que dá mais ou menos uns 12km. Corre a informação imprecisa, que esse recanto do absurdo abriga cerca de 150 abnegadas.

Se alimentam única e exclusivamente apenas com o que elas mesmas preparam: azeite puro, pão e yogurt. Corre o boato que não falam. É. Fizeram uma espécie de absoluto voto de silêncio.

Mas, são religiosas na mais extrema acepção do termo? Não. São alguma seita fundamentalista? Não. O que são então? Ninguém sabe.

Possuem hábitos incríveis. Quando chove parece um irradiante dia de sol para elas. Saem todas para o pátio central do convento e deixam-se molhar até que a chuva passe. Encharcadas, permanecem estáticas sem se importarem com a umidade que assola seus pés. Quando alguém aniversaria, formam um largo círculo em volta dessa criatura em um frio e absoluto silêncio.

Acordam por volta das 4 horas e entoam um canto lamurioso como se estivessem clamando por auxílio. O canto é suave e tem uma certa beleza musical. Quem o ouve sente-se incomodado pela majestade inquietante do clamor que vem de dentro daquelas almas angustiadas.

Certo dia — ou no dia errado — uma invasão militar dominou toda a região. Tomando conhecimento do convento, o comandante da divisão ocupante adentrou pelo pátio principal sem nenhuma resistência.

Imediatamente ordenou que a líder dessa seita, comunidade ou sabe-se lá o quê isso possa ser denominado, fosse trazida à sua presença.

O pelotão designado para trazê-la, trouxe não uma líder mas várias, ou melhor todas se apresentaram sem individualização de liderança.

150 mulheres perfiladas no mais perfeito alinhamento. Uma ordem unida de causar inveja no melhor exército do mundo.

Olhando para o alto com intervalo exato uma da outra, algo muito estranho começou a acontecer. O comandante ensaiou algumas palavras de ordem mas emudeceu diante do que estava acontecendo. As vestes das mulheres de um preto opaco transpassavam a um rutilante brilho prateado.

O brilho foi aumentando e o comandante junto com seus comandados se afastando lentamente como que hipnotizados diante do inacreditável.

Diante daquele grupo de boquiabertos militares, aquelas silenciosas e misteriosas mulheres transformaram-se em 150 espelhos com a mais polida das superfícies.

Gritos lancinantes ecoavam por toda aldeia. Seus habitantes trancafiados dentro de suas casas, encolhiam-se imaginando as mais cruéis atrocidades provocadas pelos militares ocupantes.

As imagens mais horrendas que alguém possa ter imaginado, surgiam e um a um os soldados caiam sem vida com os olhos arregalados.

Um grupo de adolescentes subiram destemidos o muro daquela misteriosa cidadela. Presenciaram o que lhes marcaria para sempre suas vidas: as imagens demoníacas saiam das mulheres-espelhos penetrando cada militar que enlouquecidos se retorciam no chão. Agonizando, suplicavam o fim de todo aquele bizarro sofrimento. E ele veio repentinamente. As imagens simplesmente se dissolveram. E com elas todo o sopro de vida daquele exército ocupante.

Impassíveis, as mulheres mantinham-se ainda na ordem unida em profundo silêncio, agora com a cabeça baixa. Os garotos voltaram correndo para a vila chamando a todos para presenciarem o que restou. E o que restou foi uma pilha de corpos sem vida espalhados pelo pátio do convento.

As vestes das mulheres voltaram à sua condição original totalmente pretas e opacas. A população também em silêncio, observando a cena, compreendeu o que ali havia se passado. Envergonhados, recolhiam um a um os cadáveres.

Mal conseguiam levantar a cabeça. Perfiladas, a irmandade passou pela multidão. A última delas se virou e com a mão direita levantada, emitiu um último brilho àquela população.