O PACTO*

Ninguém soube me dizer como o grupo surgiu. Dos 10 integrantes originais que entrevistei e de todos que seguiam suas publicações no Facebook, não havia memória ou relato de um ato fundador ou dia especial. Simplesmente foram se identificando por gostarem de postagens irônicas do cotidiano. Suas características (não regras, todos são taxativos quanto à isso) também nunca foram formalmente estabelecidas. Mas eram claras. Todos eram da Grande São Paulo, tinha-se liberdade de se comentar sobre o que quisesse no bate papo, não se admitiam postagens chulas e ninguém devia se conhecer pessoalmente. Isso mesmo alguns sendo vizinhos ou trabalhando muito próximos. O caso desses dois nisso era emblemático. Moravam na Penha. Um trabalhava em um banco no Paraíso e outro em uma agência de seguros na Consolação (início e fim da Av. Paulista). No entanto as fontes são categórica em afirmar que nunca se viram na vida.

Um belo dia um deles, vamos chamá-lo de João, enviou para o grupo um post assim; em um fundo branco aparecia a figura do Ceifador. Tinha como dizeres: "Quando eu morrer, alguém poderia ir vestido de Morte no meu velório? É só ficar lá parado, não precisa falar nada". O segundo, daqui por diante denominado José, no mesmo instante respondeu: "Eu topo, eu vou no seu e você vai no meu!"

Eram 8 horas da manhã, momento que já era tradicional todos estarem on-line. Foi uma gozação geral. Ué? Como um vai no do outro? Se um for, o outro não vai! Ah, fácil! Tendo em vista a amizade, pede licença celestial e faz uma aparição especial! Hahahaha! Licença celestial ou infernal? Sei lá, meu! Deus deu a vida para cada um cuidar da sua. Já sei! No caso do segundo a gente pede para tirar o capuz e vê se têm auréola ou chifrinho. Hahahaha!... E por aí foi a conversa pelo dia inteiro. Os dois chegaram a fazer um contrato virtual e todos do grupo assinaram como testemunhas.

Batata! Uma semana depois João faleceu. Acidente de carro. Família quatrocentona, daquelas de cinco nomes, o enterro e o velório foram no mais tradicional cemitério de São Paulo, o da Consolação. O mausoléu em que foi sepultado fica há cerca de dez metros do da Marquesa de Santos. Todos do grupo compareceram, inclusive José. Cumprindo o pacto.

Foi um farfé! Os irmãos queriam expulsá-lo, um chegou a dar-lhe um murro no rosto, o padre quase que não faz os rituais devidos. Mas ele continuou lá, impassível. Com seu manto negro em um calor de 30ºC e sua foice de plástico comprada na 25 de Março. As coisas acabaram se acomodando pelas provas que havia de que este era o último desejo do morto. Ficou na conta, pelo que apurei, de que João era visto pela família como meio "fora da curva". Quarenta anos, nunca casou, sem namoradas, único corinthiano entre são-paulinos e alguns palmeirenses, esquisitão. São deste funeral as poucas fotos que rolam na rede.

Mais uma semana e veio como uma bomba a notícia . José falecera também. Vítima de um tumor cerebral que já combatia há muito tempo. Um rapaz de 29 anos, o mais novo deles. Todos os dez restantes compareceram ao seu funeral no Cemitério da Saudade, em São Miguel Paulista, o mais humilde da Zona Leste. Garoto esforçado, orgulho de seus pais. Deixava esposa e uma filha de 4 anos.

Para surpresa geral, mas não consternação, aparece uma figura trajando as mesmas vestes que ele tinha usado uma semana antes. A família dele entendeu como homenagem e ficou profundamente comovida enquanto os membros daquele grupo tão íntimo que tinham se conhecido à apenas uma semana se olhavam perplexos. Os parentes e amigos vinham e o abraçavam. As crianças brincavam com ele e tiravam fotos nos celulares como se estivessem sendo degoladas pela sua foice. Mas entrou mudo, saiu calado. Só ficou ali. O enterro foi no final da tarde e muitos dizem que viram sua figura desaparecer quando subiu andando ao anoitecer pela Av. Pires do Rio. Não saiu em nenhuma selfie. Virou uma lenda paulistana.

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 16/04/2016
Reeditado em 28/03/2022
Código do texto: T5606693
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