FLOR

FLOR

Ouvir a canção, embora distraidamente, deixou-lhe uma sensação de nostalgia, como uma emoção há muito afastada da lembrança.

“Caetano Veloso, em Você é Linda”, informou o locutor da estação de rádio. Não era adepto à música popular, mas intrigado, ligou o PC, e fez a busca. A letra da canção é bastante longa, com um estribilho: “Você é linda e sabe viver, você me faz feliz...” Fora o estribilho que o provocara, agora sabia.

Fechou os olhos; evocou o passado. Entreabriu-se a cortina cerrada há três decênios: viu-se aos vinte anos, num salão enfumaçado e quente; entre outros dançarinos ele circulava enlaçando seu par, ao ritmo executado por um regional.

Ela se chamava Flor, e exalava perfume de lírios.

Terminada a música ele a manteve estreitamente perto, num abraço.

“Devo ir...”, ela disse, sorrindo, soltando-se dele com delicadeza.

“...Fique... Sou tão mau dançarino?”

“Dançaria com você por toda a noite, mas amanhã cedo tenho compromissos, não posso ficar”.

”Seus amigos irão leva-la”?

“Não dependo deles. Meu carro está aqui perto, vou sozinha”.

Tomou-a pelas mãos: “Se não vai ficar, perdi a graça; chamarei meus colegas para irmos embora”.

“Não faça isso... Deixe que fiquem... Se precisa de carona eu ofereço”.

Aceitou a oferta. Não queria perde-la: sucumbira ao seu perfume, à sua sensualidade, à sua voz profunda.

Encaminhando-se à mesa, ela acertou a parte que lhe coubera na consumação.

Ele apenas disse aos colegas que se encarregassem da despesa, e eles o despediram com acenos e sorrisos cúmplices.

Foram trocando beijos no curto trajeto percorrido até o pequeno carro esporte, cuja direção ela tomou com desenvoltura, após rebaixar a capota e por o radio a tocar em surdina. Depois de dar algumas voltas perguntou se ele possuía carteira de habilitação. Á sua resposta afirmativa entregou-lhe a direção do veículo, e, sentada no banco do carona cerrou os olhos, entretendo-se em ouvir as canções tocadas no rádio.

Não fez perguntas quando ele buscou o destino que lhe impunha a vontade. Lá chegando, entregaram-se: assoberbados pelo desejo, alucinados, ardentes, sem reserva ou pudor. Ao partirem, já com a manhã raiada, inebriados pela intensa noite de amor, ela ia esquecida dos compromissos; ele, por sua vez, sabia que a aula suplementar que devia assistir no cursinho estaria perdida.

Em casa esperavam-no a preocupação dos pais e duras reprimendas pela sua demora.

Arranjou-se como pode com as explicações; precisava dormir...

Acordou faminto; juntou-se à família à hora da refeição, sendo recebido com olhares de censura e mudas interrogações. A irmã caçula, maliciosa e indiscreta, deu o recado com voz doce e audível: “A Flor ligou... disse que encontrou seus documentos”.

“Muito bem... só disse isto?” perguntou, fazendo-se de calmo – (sentia o coração aos pulos!!!)

“Ela vai ligar de novo...,” a irmã cantarolou, maliciosamente.

Em torno da mesa reinou um silêncio constrangedor.

O velho telefone da família ficava ali sobre o aparador, na copa, para ser atendido por quem estivesse próximo.

Terminado o almoço ele trouxe uma apostila, fingindo-se absorto na sua leitura; a irmã permaneceu por perto, curiosa. Ao primeiro toque ela se atirou ao aparelho e o atendeu.

“Ricardo, - gritou, como se ele não se encontrasse ali perto - A Flor está na linha!”, e estendeu-lhe o fone.

“Encontrei seus documentos no porta luvas do carro”, ela justificou-se (só em ouvi-la, ele tremia de emoção).

“Por volta das quatro estarei na pracinha para entrega-los. Pode encontrar-me”?

“Agradeço por avisar, irei busca-los”.

“Quem é Flor?” Quis saber a irmã, mal ele desligara o telefone.

“Deixe de ser enxerida: uma colega do cursinho, e já chega de perguntas”!

Um pouco antes das quatro saiu de casa sem ser notado. Rapidamente percorreu os cinquenta metros que o separavam da praça, onde Flor já estacionara o conversível.

“Vamos dar uma volta”? - ela convidou; ele aceitou, magnetizado pelo frescor perfumado que dela emanava. Rodaram pelo bairro: em uma rua com poucas edificações, estacionados sob o arvoredo de um quarteirão deserto, renderam-se a beijos e carícias.

Quando ele lhe narrou a preocupação desencadeada em casa por sua chegada tardia, ela replicou:” Devemos dar mais atenção aos horários”... prosseguindo: ”Não estarei na cidade neste fim de semana”. Entregou-lhe os documentos esquecidos, concluindo, “Ligue-me na segunda feira”.

E a partir da segunda feira as ligações se tornaram frequentes.

Levados pelo pequeno Puma conversível iam dançar nos bailes da saudade, comer e beber nos botecos da moda; e, invariavelmente no final da noite entregavam-se ao desejo estonteante que os consumia.

Em casa estranharam suas chegadas tardias, as distrações, as desculpas sem sentido. Preveniram-no dos perigos das drogas; da má influência de amigos; cobraram-lhe o importante aproveitamento das aulas do cursinho.

Julgavam suas noitadas tão somente como saídas com amigos para as estripulias comuns da juventude. Isso até serem ele e Flor surpreendidos, num bar, por um dos irmãos, que levou aos pais a notícia, observando, intencionalmente, que a mulher, vista em sua companhia, bonita e elegante, era notoriamente mais velha que ele: ( “uns dez anos ou mais!”).

Fez-se surdo às admoestações ouvidas a partir desse dia.

Nenhuma exortação ou conjuração conseguiram afasta-lo de Flor, que ignorava a campanha feita contra os dois. Não lhe interessava a idade que tinha; nunca a havia perguntado. Importava-lhe apenas o que ela tão bem sabia ser: sensual, afetiva, generosa, independente, perfeita!

Cerraram as baterias contra sua aventura. Imputaram à Flor descréditos inimagináveis; chamaram-na de pervertida, dissoluta, corruptora de menores. De repente, para todos, ele havia-se tornado vítima da influência de uma sibila. Esqueciam-se de que ele era um adulto, consciente de suas escolhas e ações.

Desde que, com ela, regressando de uma de suas noitadas, haviam ouvido aquela canção pelo rádio do carro, ele guardara na lembrança o pequeno refrão, que cantarolava enquanto corriam, ruas afora, com a capota do carro rebaixada, sob o açoite do vento. “Você é linda e sabe viver, você me faz feliz”...

Tudo o que queria era ser feliz! Naquele tempo, estar com Flor era a sua felicidade.

Prontamente a adversidade determinou as mudanças. Nas provas do vestibular foi reprovado na primeira etapa.

Não foi poupado. Os irmãos mais velhos caíram-lhe em cima censurando-o; a mãe debulhou-se em lágrimas; o pai fechou-se em cismas e silêncios ameaçadores.

“Prepare-se, Ricardo (o pai ordenou) vamos os dois para a fazenda; sairemos no sábado”.

Aceitou a determinação com a alma em pedaços. Próximo ao Natal Flor viajara para a Europa onde viviam seus pais, sem data certa para retornar.

Assim, sem poder contatá-la para despedir-se, partiu, na companhia do pai, para a longa viagem, amargando a tristeza.

Perdeu a noção do tempo enquanto o carro corria pelo asfalto de uma estrada infinita. Á chegada da noite detiveram-se para descanso; mal raiou o dia retomaram a jornada, desta vez avançando por estreitos caminhos de terra cheios de curvas, beirando precipícios, até que, depois de rodear montanhas recobertas de um verde primaveril, chegaram á fazenda, ao casarão solitário, aos laranjais frutificando ao sol, ao arroio de águas claras, que marulhando entre as pedras, embalava sua saudade.

Quietude, silêncio... Por companhia as apostilas do cursinho. ( O pai o fizera trazê-las, com o austero comentário: “ A leitura diária o fará relembrar a matéria; a dedicação ao estudo o deixará curado”).

Não queria ser “curado”, Flor estava no seu sangue, na sua lembrança. Sonhava com o calor do seu corpo ávido, perfumado a lírios, nunca esquecia a entonação grave de sua voz.

O tempo arrastou-se. Tentou não contar passagem dos dias com medo de enlouquecer.

Veio o dia do retorno. Eram esperados para a cerimônia do casamento de um dos irmãos. Não havia pensado que apreciaria tanto as perigosas curvas da estrada que o levavam de volta ao asfalto, ao lar e de novo a Flor. Aproveitando um momentâneo descuido de atenção dos outros; procurou-a pelo telefone. A chamada não foi atendida, e, repetindo-a outras vezes sem obter resposta, calculou que Flor ainda não retornara da viagem.

Passados os festejos do casamento, não houve perda de tempo; para sua surpresa e desgosto, o embarcaram num voo noturno rumo a Porto Alegre, para morar em companhia de um tio. Lá frequentaria um cursinho, prestaria o vestibular e cursaria a faculdade.

Foi o fim das suas ilusões.

A princípio sua revolta o fez entregar-se ao desânimo, à insociabilidade, à irreverência. Cercado dos cuidados e carinhos dos tios e primos muito mais velhos que ele, sentia-se também atado pela vigilância de todos, ainda que discreta.

Seu estado de espirito foi vencido pela turbulência dos vinte anos, desafios de seu atual status, outra escola, novas amizades. Sua genuina vocação para a medicina o fez empenhar-se nos estudos, dedicando-se em alcançar o que se propunha.

Curtiu outros amores...( ainda que sempre os comparasse ao deslumbramento tido com Flor, e por não se conformar com a forma com que se haviam separado.

Trancorrendo a vida amadureceu, criou raizes, consagrou-se ao seu ideal, foi bafejado pelo sucesso.

Nos trinta anos que se haviam passado, desde que lhe fora imposto o exílio, sepultara os ardores da mocidade.

Das mulheres de sua vida guardava vagas lembranças; algumas haviam chegado querendo aninhar-se, outras tinham passado como vendavais; houvera as que desejara que ficassem, outras vira partir sem sentir pesar. Nenhum relacionamento se tornara permanente.

Apertou o play; ouviu de novo a canção; a cada repetência do pequeno estribrilho, desnudava-se intensa, vinda do longínquo, a imagem da mulher (que fora única!), a encantadora mulher que emanava o perfume de lírios e se chamava Flor

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hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 10/05/2016
Reeditado em 08/06/2016
Código do texto: T5631453
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