Frutos tempestuosos

As crianças tremiam coladas em minhas costelas, sob a proteção inócua de meus seios. Uma sob cada um. Olhinhos cerrados, dedinhos cruzados e lábios trêmulos sussurrando algo próximo de uma Ave Maria ou algo que o valha. Eu cobria suas cabecinhas com minhas mãos, forçando-os a se manterem bem juntos a mim. Tentava manter meus olhos abertos, mas sempre os cerrava quando os trovões rugiam ameaçadores próximos da casa. Impossível manter os olhos abertos com um estrondo monstruoso como aquele, principalmente sabendo o quão próximo os trovões se chocam do casebre de madeira onde você se encontra.

A tempestade já durava mais de uma hora e parecia ser incansável. Durante mais de uma hora ela bombardeava a terra com gotas monstruosas e relâmpagos que rasgavam o anil do céu. O dia tornara-se noite e agora que as gotas começavam a amainar eu temia o que veria quando tudo parasse. A destruição certamente seria grande. Monstruosa como a tempestade. Frutos torpes do humor inconstante de um Deus indiferente.

Alguns minutos se passaram e vislumbrei por entre as frestas das janelas alguns raios de sol. Meus filhos já haviam aberto os olhos e já não estavam mais tão colados a minha pele e também já não tremiam, pois o som dos trovões se fazia distante. A tempestade se ia, restava saber o que deixara para nós durante sua passagem. Vi quando meu marido ergueu-se da cadeira. Nós três olhávamos para o extremo do cômodo, aguardando que tomasse alguma atitude. Na verdade eu vi mais do que apenas ele se erguendo. Vi as centenas de detalhes que tornam aquele ser mais do que meu marido ou pai de minha menina e de meu menino. Olhava para o meu homem enquanto terminava de esculpir o toco de madeira que se tornaria em breve um brinquedo como dezenas de outros que esculpira antes para os pequeninos. Um cavalinho, um carrinho, um leitão gorducho, ou algo totalmente inusitado. O inusitado combinava com ele. Homem grande, tosco, rude, acostumado com os rigores da terra, mas ao mesmo tempo com mãos hábeis capazes de esculpir brinquedos carinhosamente para os filhos. Calejadas mas delicadas.

A peça de madeira semi-esculpida pousou sobre a mesa, a faca foi fincada no tampo, a cadeira deslizou rangendo sobre o piso áspero e lá estava. A face enrugada e cheia de linhas totalmente crestada em uma expressão de fúria. As mãos que há poucos instantes se distraiam com uma tarefa prazerosa, agora se cerravam como raízes. Seus passos firmes conduziram seu corpo e meus olhos até a porta. Quando saiu da casa, as crianças correram de meus braços e o seguiram. Fui também, andando logo atrás.

A visão foi impressionante. Mais dois ou três dias apenas e eu não teria essa visão. Era esse o tempo que faltava para a colheita. Apenas isso e teríamos salvado a plantação. Agora era tarde. Nada restava além do horizonte cinzento. A visão era realmente impressionante, mas somente uma mulher como eu seria capaz de se enaltecer com ela. Eu via ao fundo as nuvens tempestuosas seguindo em direção ao horizonte infinito. Em um plano mais próximo as colinas já iluminadas pelos raios do sol avermelhados. E já adentrando nossas terras, vi toda nossa plantação destruída; ramas, espigas e vagens jogadas na mesma lama onde as crianças chapinhavam agora. Aproximando-me até a distância de quatro ou cinco passos vi as costas de meu homem; largas, movendo-se em um sem fim de respirações levemente mais fortes do que o normal, certamente pelo esforço para conte-se. Essa era a minha visão. Eu via a raiva personificada. Ela era maravilhosa.

As crianças pareciam leitões rolando na lama, sobre o trabalho de meses que se fora. Eu choraria depois, no momento em que sentíssemos fome ou quando o banco nos negasse algum dinheiro para recomeçar, mas neste momento eu sentia vontade de sorrir. A cada passo que dava em direção ao meu homem eu me sentia mais calma. O rosto dele era o templo da ira divina. Sua face mostrava a raiva e a determinação que somente o ódio podia emprestar a um semblante. Isso era o que fazia as crianças brincarem e era a mesma coisa que me fazia sorrir. O ódio dele era tranqüilizador, pois a simples visão desse sentimento me fazia saber que não desistiria de lutar. Não se havia dado por vencido ou derrotado. Iria recomeçar, maldizendo o Deus que enviou a tempestade, arando a terra com mais vontade, amando sua família com mais paixão. Isso acontecia sempre e a cada vez eu acreditava que seria a última. Sempre pensava que a raiva iria se desfazer. Que o ódio não mais afloraria daquele coração. Que meu homem deixaria de ser um homem, desistindo da luta, extinguindo primeiro minha vida, depois a dos pequenos e por fim a sua própria.

O ódio em sua face é a melhor visão que eu poderia ter.

Fim.

Nota: Texto escrito devido aos arrepios causados por John Steinbeck em minha coluna ao iniciar a leitura de Vinhas da Ira. Seria uma homenagem se eu tivesse coragem para tanto; chamo de tributo.

Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e NecroZine (www.necrozine.blogspot.com), além de moderador dos Grupos "Tinta Rubra" e "Fábrica de Letras" pelo Yahoo!

Richard Diegues
Enviado por Richard Diegues em 04/03/2005
Reeditado em 14/04/2005
Código do texto: T5664