Estrelas (mais reflexões sobre a hipocrisia)

 
     Despencava feliz rua abaixo. Trazia nas mãos pequenas um saquinho de pano. As sandálias velhas de borracha saltariam dos pés, não fosse a destreza em correr e mantê-las presas aos dedos sujinhos, adquirida com a prática constante. A carreira desembestada ressaltava seu contentamento. Vinha ligeiro e alegre. Sorria abertamente. E sorria tanto, que o mesmo sorriso impediu-lhe de me ver em meio a seu trajeto. O esbarrão foi inevitável! Não teria mais de sete anos. Negro, cabelo rapado para evitar os piolhos - sugestão da temerosa e precária professora -, olhos de fundos muito brancos a sustentar íris noturnas.

     - Você se machucou?
     - Não, moço... tudo bem! Desculpa, viu?

     Balbuciava as palavras quase em silêncio. Buscava em torno de si o saquinho de pano.

     - Cadê a janta?
     - Calma, homem, você mal chegou do trabalho. Vai tomar um banho primeiro! Está fedendo! Estou acabando de cozinhar.
     - Porra, tô com fome! Você sabe que eu venho do trabalho com fome!
     - Parece bicho, não dá pra se lavar primeiro e esperar um pouco?

     Quando percebeu o saquinho de pano, todo em azul desbotado e empoeirado, perdido próximo ao meio fio, pulou como um gato e segurou firme a presa. Deveria valer muito aquele trapo. O sorriso retornou. Respirou com alívio.

     - O que você tem aí?
     - Estrelas!

     O casal brigava quase todos dias. Ou era a janta que não estava pronta. Ou a criança que chorava. Ou alguma encomenda que deixara de ser adquirida no supermercado. Ou a previsão do tempo. Ou o eclipse da Lua. O motivo era irrelevante. A discussão, fundamental. Não raro, esbofeteavam-se! Não raro, também, encerravam a desavença na cama; uma sexualidade agressiva, feita com ódio mútuo e prazer.

     - Estrelas?
     - É...

     Quanta felicidade por um roto saquinho de pano recheado de estrelas!


     - Você trouxe o dinheiro do uniforme do Juninho?

     O marido rosnou: Não! Pedi um vale; só na sexta.

     - Mas você é um merda mesmo! Não serve pra nada! Casei com um fodido, um falido! Tanto homem me querendo e fui ficar logo com essa coisa!
     - Homem querendo você? Ah! Ah! Ah!
     - Por que, não? Até hoje... nem sei como eu não lhe coloco um par de chifres!
     - Porque não encontra com quem... só eu mesmo pra encarar!

     Com o indicador imundo, conferiu o conteúdo do saquinho. Pareceu-me que estava em ordem.

     - São as estrelas que você contou?
     - Não! São muitas estrelas! Não dá pra contar elas. Estão presas aqui.
     - Presas?

     Mesmo antes do casamento, não se mantinham em harmonia. Precisavam discutir. Sempre. Romperam o namoro diversas vezes com ameaças e ofensas. Depois, passado o tempo da ressaca afetiva, reatavam provisoriamente até o próximo desentendimento. Entre rupturas e colagens, chegaram a uma gravidez, a um compromisso combinado às pressas e a uma existência bélica.

     - Homem, você reclama, reclama... mas não faz nada! Por que não procura estudar, aprender alguma coisa? Fica nessa vida de peão, de obra em obra, carregando tijolos.
     - Não entra nada nessa minha cabeça. Você sempre soube. Casou comigo por que quis.
     - Por que quis? Tem certeza? Ou por que você me embuchou? Casei pra você assumir esse filho aí...
     - Você acha que filho prende homem?
     - Não. Eu sei que você tá aqui porque nem tem pra onde ir!

     A curiosidade me envolveu em um abraço apertado. Estrelas? Que estrelas? O menino alargou a boca do saquinho, enfiou a mão e retirou uma esfera de vidro, muito verde e muito clara, repleta de bolhas de ar aprisionadas que brilhavam estelares, transpassadas pela luz solar. Bolinhas de gude. Claro! Bolinhas de gude e a delicada imaginação da infância. Um cárcere de estrelas. E naquela bolsa minúscula, tão humilde, tão desgastada. Em mãos pequenas e sujas. Tão simples, quanto extraordinário. Não adivinharia: estrelas!

     - Oh! Moleque! Venha logo! Que menino! Fica de vadiagem na rua o tempo todo!

     A mulher surgira cuspindo saliva de um beco a uns dez metros de nosso singelo acidente e de minha admirável descoberta. Estrelas!

     O menino procurou se apressar o mais que pode.

     - Desculpa, mãe, estava jogando bolinha de...

     Não terminou a frase. O tapa veio.

     - Pra você aprender! Seu lugar é em casa, vagabundinho. Seu pai já me deu um esporro por sua causa! E o que você tem aí, escondido entre as mãos?
     - Nada, mãe, nada!
     - Que nada, seu safado, me dá aqui!

     O saquinho de pano - azul, desbotado - foi arrancado aos berros. As bolinhas de gude, jogadas com força ao chão e pisoteadas, converteram-se em cacos. As estrelas devem ter escapado. Com um único gesto, aquela mulher destruíra muitos sonhos e uma galáxia inteira.

     - Fez bem em não dizer que foi meu soco que arrancou seu dente.
     - Seu monstro! Não sei como não denunciei você.
     - Só iria apanhar mais. Fica calada!

     Quando retornaram do posto de saúde, emudeceram por hábito. Passariam dias nesta inércia dolorida. E como de hábito, as mãos rudes que carregavam tijolos procuraram na gaveta do armário um saquinho azul, desbotado. E vazio.
Verônica Machado
Enviado por Verônica Machado em 03/07/2016
Código do texto: T5686555
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