O Suíno Pensador

Sebastião sabia ser um leitão condenado. Na melhor das perspectivas, em vez de ser servido de leite com as mandíbulas a abocanhar uma laranja, o focinho e a pele estaladiça pela braseira do forno a lenha, só poderia aspirar a ser copiosamente cevado, encarcerado no meio da imundice numa pocilga de carriças e giestas secas, crescendo em tamanho e dilatando-se em peso, para mais tarde sentir o golpe do facalhão a trespassar-lhe o cachaço, ao aproximar dos frios, quiçá numa manhã geada de Dezembro, os membros amarrados e estendido nas pedras gélidas do eirado, rodeado de homens rudes enquanto as mulheres na cozinha se atarefavam com os alguidares, os tachos de água fervente borbulhado entre o borralho e atiçada pelas chamas da lareira, preparando os condimentos e os temperos, por fim retalhado e acondicionado em salmoira, para mais tarde as suas carnes repousarem em enchidos, postos dependurados a secar sobre o fumo irritativo e espesso do fumeiro.

Adivinhava fatidicamente ser essa a sua sina, como o havia sido a dos seus progenitores e tal como a de qualquer outro porco. Mas Sebastião era um suíno intelectual. Tinha sido bafejado na sua gestação pelo gene analítico da sabedoria e a sua curiosidade desenvolvia-se com o seu corpo, engrossando em dúvidas e em conflitos existenciais tanto quanto as banhas e a sua atrofiada massa cerebral o permitiam.

Compreensivelmente as suas angústias caracterizavam a sua postura taciturna e conspícua, absorto em raciocínios sábios e pragmáticos de comprovação incipiente, pois a vedação da pocilga e por vezes os muros do quintal, talhado de culturas sazonais, impediam-no de comprovar as suspeições que o agitavam com exemplos e demonstrações palpáveis que pudessem corroborar as suas teorias.

Sabia que havia céu, luz, breu e formas e que essas formas, mesmo as estáticas e intransmutáveis, adquiriam contornos díspares, consoante o estado de espírito com que as observava.

Concluiu que se certos corpos são rígidos e inalteráveis, e se no entanto lhe pareciam diferentes, tal só era justificável porque ele assim o julgava. Logo a sua capacidade de observação era a chave do pensamento analítico e sintético e por via deste, tudo o que o rodeava girava em torno da sua percepção, mesmo que esta fosse de demonstração questionável.

Quanto a ele, pouca importância dava à fundamentação científica das suas suspeitas, consciente de que ao se tornar enchido ou lasca de presunto salgado iria sair mais tarde ou mais cedo por um qualquer buraco transformado em excremento desaproveitado e inútil. Em todo o caso era-lhe impossível escamotear a sua ânsia de compreender enquanto o coração lhe batesse e a sua depauperada massa cinzenta se agitasse com os estímulos e os impulsos percepcionais que, na sua suína opinião, eram tão válidos, embora levitando num patamar paralelo, quanto os dos arrogantes humanos, convencidos de serem os detentores da verdade e da sabedoria.

Afastara a intenção de entregar a alma ao criador, opinando que a dita lhe pertencia e que o senhor, preocupado com o flagelo das almas humanas, desdenharia as chagas da sua. Deduziu deste modo que nem todas as criaturas eram bem-vistas aos olhos de Deus. Para si também Deus não passava de simbologia mítica, o que ele aceitava plausivelmente como um elemento transcendente e concomitante no todo cósmico intemporal, tanto material como espiritual.

O seu grande dilema de porco, o qual nunca viria a interpretar, era a problemática da origem da génese. O nada sendo nada, conceito credível e compreensível, existia como contraposição ao físico e ao palpável mas o fosso vazio anterior ao perceptível, origem das origens elementares, escapava-lhe e não o sossegava a justificação de ter sido um ser superior a criar o que quer que fosse, porque para que tal acontecesse era necessário haver massa e espírito e um antecedente ao ser superior, logo, a explicação das origens remetia para uma origem anterior a essa criação. Problema bicudo que lhe fez derreter parte das banhas e que nem as doses reforçadas de bolotas e de cascas de fruta e de batatas conseguiram atenuar. Esta sua busca constrangedora da compreensão dos primórdios, preocupação maior da sua existência, redundou em fracassadas e inconclusivas deduções, o que o levou ao abatimento generalizado e quanto mais e melhor alimento lhe davam mais ele se recolhia nas suas reservadas cogitações, procurando, de focinho erguido ao alto ou recolhido em grunhidos inquiridores pelas ervas do quintal, desgastando as energias, respostas críveis para as suas temerosas dúvidas.

Quem não achava graça aos seus arroubos eram os donos, que se fartavam de o nutrir, sem que os seus cuidados se traduzissem em resultados palpáveis. O que só prova que nem todos os suínos devem ser cevados para se tornarem alheiras. Perdidas as esperanças e antes do tempo, numa seca e gélida manhã de Novembro, a sua pele herege foi chamuscada pelas línguas de fogo das carquejas purificadoras, para alívio das mentes puritanas da comunidade suína e consolo dos apetites gulosos dos humanos predadores.

Moisés Salgado