"Carreira" = Conto Insólito= Reedição

    Aquele pombo cinza e branco, nascido e criado nas imediações da avenida Paulista, como milhares de outros de sua espécie, jamais havia passado fome ou frio. Os freqüentadores e os passantes ocasionais do Jardim Trianon, os pipoqueiros, os executivos, as crianças e as babás tomavam a seu cargo alimentá-los e chegava a sobrar alimentos e pombos enfastiados nas calçadas.
Essa vida rotineira, sem preocupações ou ambições, de apenas voar, comer, arrulhar dar pequenos vôos por causa de um ou outro pequeno susto, não era o ideal de vida para aquele pombo cinza e branco.
Ele queria muito mais e sabia muito bem o que queria. Em seu desespero chegava a maldizer a Deus Todo Poderoso, no qual acreditava piamente, por tê-lo feito apenas um pombo comum. Nem ao menos o fizeram um pombo-correio, um estafeta alado, o que já seria alguma coisa. O seu sonho, na verdade, era ser um Executivo.
Olhava com inveja, respeito e admiração o desfile de Executivos, dos senhores Executivos sempre em ternos impecáveis, colarinhos brancos, pastas de couro impecáveis e brilhantes, gravatas multicoloridas e de extremo bom gosto, e perfumados. Ah, os perfumes...o que não daria para usar uma gotinha de um deles...Perfumes másculos, sóbrios, penetrantes e roupas lindas. Quem lhe dera um dia vestir-se assim, andar daquele jeito, cheirar tão bem...
Quem lhe dera um dia vestir-se assim, com um terno feito sob medida, o colete a estalar no peito, a gravata esvoaçando no pescoço. Ao menos, na pior de todas as hipóteses, ao menos uma linda gravata de cores sóbrias, combinantes entre si. Uma pastinha já não diria. Não teria como carregá-la nas asas. No bico não ficaria bem.
Seu sonho levava-o a percorrer as janelas dos escritórios, até que se enamorou de um deles. Perdidamente.
Era um salão enorme, com mesas, mesas, e mais mesas de cerejeira, divisórias brancas e cadeiras pretas. Carpetes cor de mel, muitos telefones, muitas máquinas funcionando sem parar e um intenso movimento do que lhe pareceu ser o mais belo desfile de Executivos e Executivas que seus olhos jamais haviam visto.
Pousou na janela e ali ficou um tempo imenso, imerso em seus sonhos de impossível realização. Tão cheio de amor, tão cheio de inveja, de vontade, que se esqueceu de sua hora sagrada do almoço na calçada da avenida.
Uma pessoa em particular lhe prendera a atenção. Era o Chefe do escritório, o Executivo-Mor. O seu ideal de vida. Homem bonito, de olhos azuis, cabelos grisalhos bem cortados, e um terno com colete que era o supra-sumo do bom gosto e elegância, no entender do pombo idealista.
Depois de muito tempo o homem reparou na ave. Largou o trabalho e passou a observar aquele pássaro diferente, que o encarava com insistência. “Quem sabe o bicho está doente?”. Abriu a janela pensando que o pombo fugiria apavorado e, com surpresa, viu-o aproximar-se e pousar em sua mão. Confiante e sempre a olhá-lo fixamente.
- Fome não deve ser. Parece bastante forte para disputar a comida, e os outros estão comendo lá embaixo.
Em vôo curto, Cinza e Branco alcançou uma máquina de escrever desocupada e passou a bicar as teclas, sem assustar-se com o movimento causado pela eletricidade. O Chefe riu alto.
-Onde já se viu? Um pombo datilógrafo..e “catamilho” ainda por cima. Igual a Ângela, minha secretária... Ângela, venha conhecer quem quer roubar seu emprego.
   Em poucos minutos o movimento era intenso na sala da chefia. Todos queriam ver o “novo funcionário”, que inflava o peito e arrulhava satisfeito. Deus do céu! Será que ele estava mesmo realizando o sonho de sua vida? Conseguira de verdade um lugar ao sol no mundo dos Executivos, a quem adorava em silêncio forçado?
No dia seguinte, para espanto de todos, lá estava o pombo bicando valentemente o vidro da janela do chefe, às oito em ponto. Levantada a janela pelo Chefe, risonho, Cinza e Branco entrou, escolheu um lugar ao lado da secretária e ficou como que “aprendendo o serviço”.
Aos poucos foi tomando confiança, intimidade, e dentro de pouco tempo levava clips de uma mesa a outra, recolhia, às duras penas, canetas do chão e levava ao cesto papéis amassados. No primeiro dia sentiu-se útil. Nos demais dias foi se sentindo cada vez mais necessário e por fim julgava-se indispensável
à rotina do escritório.
Um dia a emoção violenta, a surpresa máxima de toda sua vida. O sonho realizado de repente, sem o menor aviso: Ângela, a secretária, em momento de ócio caseiro e de bom-humor, confeccionara uma gravatinha de tricô na medida certa do pescocinho do novo funcionário que até então usava apenas penas. Só não acreditava que ele a deixaria colocá-la nele. Queria apenas divertir o Chefe e os colegas.
Foi com espanto que Ângela o viu ficar imóvel, paralisado, enquanto ela enfiava o acessório em seu pescoço.
No peito do passar o coração em disparada, a emoção avassaladora, a tontura deliciosa da felicidade demais.
Engravatado, resolveu mudar de residência. Não suportava mais a mediocridade do meio em que havia nascido. Era intolerável viver no meio daqueles piolhentos, arrulhadores, comilões e inquietos pombos vulgares, medíocres e sem assunto.
Escolheu, como convinha a um executivo bem sucedido, uma cobertura mais próxima do escritório, onde, aliás, também fazia suas refeições para não perder tempo. A vida lhe transcorria feliz, tranqüila, plena de projetos e realizações.
Chamavam-no agora de Mascote, um nome que achava simpático, e até mesmo fora fotografado em um dos ombros do Chefão quando de uma entrevista para uma importante revista de negócios. Teria tanto a dizer, caso pudesse falar, sobre sonhos, ideais, fé e persistência...
Nos fins-de-semana não havia ser mais infeliz na face da Terra. Eram dois dias infindáveis, quando não eram mais com feriados emendados. Dois, três, quatro dias até longe do serviço, das reuniões, dos muitos sons das vozes humanas. Uma verdadeira e torturante agonia.
Quando a firma começou a passar por maus momentos, graças à infalível eficiência do Governo, é claro que ele nada percebeu. Não se deu conta, imerso em suas tarefas cotidianas, agora mal toleradas, que o desânimo, o medo e a insegurança haviam se infiltrado de forma angustiante na empresa. Assustava-se apenas com as explosões temperamentais do Chefe. Felizmente os gritos nunca eram dirigidos a ele.
Um dia serviu-se decerto de algo indigesto no almoço e, de repente, sem que pudesse, ou ao menos quisesse controlar-se, deu a maior evacuada de sua vida. Justamente em um monte de papéis importantíssimos e aconteceu a catástrofe: o Chefão espumava de ódio, gritando como nunca em sua vida. Eram papéis importantíssimos que representavam a última e derradeira tentativa de salvar a
Empresa e agora, aquilo !! O Chefe berrou, esbravejou, deu murros na mesa e acabou por expulsar o apavorado pombo do escritório a jornaladas.
Sem saber como, Mascote chegou em casa. O corpo quente de vergonha, o peito dilacerado de dor pela expulsão desonrosa. Como aparecer de novo no serviço? Com que cara? Executivo cagão...Logo em cima dos papéis do adorado Chefe? Como acontecera aquilo com ele? Um pombo organizado, caprichoso, civilizado e com toda uma vida profissional pela frente...
Levou três dias agonizando, definhando solitário, com a cabeça pendente sobre a gavatinha de tricô, símbolo de seu status, personificação de seu sucesso.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 22/07/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T575571
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