Anônimo

– Você tem certeza disso? – Mirella entregou-lhe uma folha de papel e deslizou a caneta pela mesa. Ele encontrou um sorriso tolo ao deparar-se com seus olhos castanhos e sacudiu a cabeça, vendo as palavras presas em sua garganta. – Não tem volta, você sabe...

– Eu sei... – Ele passou os dedos pela textura da folha, sentindo poros que ninguém podia imaginar. Um terreno acidentado por onde as palavras formariam vales, cânions e rios, uma topografia de tipos mortos. – Mas é preciso.

Mirella encarou-o em silêncio. Lembrou-se do passado junto, dos poemas trocados ao acaso e de todas as frases lidas em voz alta, no timbre rouco da manhã, entre lençois incapazes de conter o frio. Seus olhos percorreram o resto da sala, um diagrama de idéias na parede, um amontoado de folhas em um canto, livros empilhados fora de ordem, ao chão. Pequenas folhas de papeis coloridos, encontrados ao acaso na rua, suportes de notas que beiravam a insignificância. Tudo em vão, tudo para nada.

– Talvez tenha outro jeito! – Ela não podia acreditar que estava tudo acabando daquela forma. Ele sorriu, tentando aliviar os seus temores. Era uma despedida, embora nenhum dos dois estivesse disposto a acreditar nisso. Ele fechou os olhos, tentando evitar as lágrimas que planejavam toma-la de assalto e ouviu a caneta sobre o papel, gritando seu nome. Mirella apertou as pálpebras, como portas de um dique, esperando que tudo acabasse logo e pensou ter ouvido um sussurro de adeus sob folhas que se rasgavam. A caneta caiu morta sobre a mesa e uma lufada de vento correu a sala, revirando seus cabelos com uma despedida segredada. Com o silêncio veio a coragem para abrir os olhos, lentamente, sem pressa, com a certeza registrada do que iria encontrar.

A sala vazia, com folhas reviradas, uma caneta solta que rolava preguiçosamente até a beira da mesa, pedaços de papel rasgados que haviam se espalhado pelo vendo, mais nada. Mirella estendeu os dedos trêmulos até uma das folhas e virando-a em sua direção encontrou as linhas curvas do que teria sido um nome. Um pedaço de vale, uma curva de rio, nada exceto um fragmento de mapa que a nada revelava. Mirella apanhou os pedaços de vida movendo-os entre os dedos como um tarô de um passado sem sorte. A idéia do que ele representava foi lentamente se apagando de sua mente, levada juntamente com outras lembranças. O jeito debochado com que gargalhava, a forma tranqüila com que discutia, o jeito carinhoso com que parecia se importar com tudo... a cor do seus olhos, o timbre de sua voz, seus cabelos, seu cheiro...

Seu nome.

Acordou sentada na mesa da sala vazia, movendo pedaços de papel entre os dedos. Tinha em si a sensação de que havia se esquecido de algo, mas não se lembrava o que. Algo pingou sobre a folha rasgada, manchando um pedaço de tinta. Eram lágrimas. Tentando entender o motivo de sua tristeza, Mirella juntou os pedaços de sua história, sobre a madeira, pedaços de terra lutavam contra uma brisa incessante e uma maré de lágrimas infindável. Lentamente um mapa se formava diante dos seus olhos, linhas azuis, rios de tinta, um segredo sem sentido algum. Talvez um nome.

Ela parou diante do quebra-cabeça, imaginando que algo certamente estaria errado, sem idéia do que poderia ser. As lágrimas secaram em depósitos de sal sobre sua pele e numa tentativa de ver aquilo tomar sentido ela leu o que estava escrito, em voz alta. Em retalhos partidos, em uma caligrafia amorfa, um mistério que nunca teria resposta:

“Anônimo”