O salão dos mascarados

O salão dos mascarados

Despertara cedo aquele dia, combalido e com sensação de areia no olho. Era de duvidar que de fato houvesse repousado. Ao lado do meu leito de casal - que já há muito fornia calor e acalento para um único corpo-, jazia um despertador antigo, preto e com visor vermelho e com rádio. Lembro-me que fui dormir às 23:00 da noite anterior, com o barulho aprazível da chuva a rufar o telhado colonial do vizinho. Fitei celeremente a hora, com a cabeça ainda meneando para os lados, de sono, e atônito fiquei com a visão de caracteres de toda sorte que giravam no visor do relógio como que uma antiga máquina de cassino. Abruptamente, o visor, que outrora mostrava os números que representavam o meu cansaço diário e a hora de ir ainda ao dilúculo para o trabalho, indicaram, através de códigos arcanos, o endereço de um lugar não muito distante.

Levantei-me e pus-me a andar em direção ao misterioso salão- por alguma razão assombrosa, eu sabia exatamente para onde ia, conquanto nem mesmo tivesse ouvido falar da existência de tal lugar nas imediações da minha casa. Subi uma ruazinha de pedra, ladeada por muros altos de uma mansão próxima, cobertos de hera e, ainda confuso com toda aquela peripécia, tive meus devaneios acordados por uma figura estranha e egrégia, que estava de pé, em frente a um portão dourado. Esse homem usava um sobretudo longo, cor bege e com bordados diversos, que me lembravam tapetes persas. Ele estava parado, com peito estufado e olhar de águia, acima do horizonte, como se pretendesse infundir medo. Sua máscara, feita de ouro e com as extremidades dos lábios caídas para baixo, mostravam medo e dor, inconsistentes com sua postura estentória e amedrontadora. Passei pelo portão faustoso e faraônico e apenas acenei com a cabeça, cumprimentando-o de forma cordial. Ele foi-me indiferente e interpretei sua impassibilidade como uma anuência salão adentro.

Extasiei-me ao pisar no chão marrom camel do palácio. Seu teto, o qual era tão alto que parecia tocar a calda das estrelas no firmamento, era ornado com lustres pomposos de cristal e rubi. O corredor principal, longo de se perder de vista, era ladeado por estatuetas de homens e mulheres de expressões variadíssimas: uns exibiam seus músculos poderosos, segurando suas armas e eretos, em postura bélica, mas com faces amedrontadas, como se fossem crianças ouvindo pela primeira vez um conto de terror; outras com postura elegante e aberta, inspirando confiança, mas com olhar escarninho e riso cínico, como se estivessem celebrando a mendacidade recém-praticada. Toda a confusão do relógio-despertador naquela manhã -caracteres incógnitos e afins- fora acentuada pelo desacordo emocional de todos aqueles que estavam no salão majestoso.

Vali-me da pouca audácia e brio que me restavam e rumei em direção ao refeitório real, onde uma súcia de pessoas, trajadas em roupas finas e elegantes, dançavam com suas máscaras bizarras: umas eram melancólicas; outras irascíveis; outros com serenidade nas feições, reminiscentes de um grande mestre.

Percebi que o refeitório era dividido em távolas, algumas mais salientes e elevadas que outras; algumas isoladas no canto escuro, húmido e empoeirado do salão; alguns comiam no chão, como se não lhes pertencesse lugar em mesa alguma.

Havia informações demais para que pudesse prestar atenção diligente em qualquer coisa, mas um homem, inicialmente, chamou-me a atenção: era corpulento, com braços fortes e postura beligerante. Trajava uma capa vermelha, e se não fosse por sua máscara de arcanjo, poder-se-ia dizer que era um guerreiro espartano ou outra figura guerreira de alto status. Ao chegar a sua távola, onde uma mulher e uma criança comiam avidamente, como que para suprimir um desespero interno, o homenzarrão tomou seu lugar à mesa e como uma criatura primeva, irritável e pueril, batia com truculência seus braços na mesa, sacudindo todo o vasilhame que sobre ela havia. Talvez aquilo explicasse a tal braveza atribuída aos arcanjos, embora não soubesse que possuíam esposas e filhos.

Perambulei um pouco mais pelo salão, e percebi que podia compreender o que se passava na cabeça daquelas pessoas, apesar de não ter familiaridade nenhuma com o idioma que eles falavam. Mais adiante, sobre um retângulo de azulejos no chão, no qual se encontravam figuras estranhas de homens despidos, numa cerimônia e falando, creio, sobre os problemas existenciais da vida, estava um grupo de pessoas, com uma máscara verde escura e brilhante, assimilando-se a carapaça de um besouro. Reconheci que o que diziam era mentira, e que suas máscaras destoavam de toda sua vestimenta. A radiância da máscara incandescia à medida que a mendacidade se intensificava nos colóquios.

Não muito distante, logo abaixo do lustre de rubis e cristais que mencionei, um outro grupo, com máscaras bipartidas, sorrindo e chorando ao mesmo tempo, se distanciavam, intencionalmente, do grupo dos de máscaras verde escuro e brilhante: usavam a máscara branca, da verdade! Estranhamente, como tudo que ocorreu desde que chegara ao faustoso salão, reconheci na essência daquela conversa, apesar de desconhecer o idioma, que eram mentirosos. Mentiam o tempo todo, mas não percebiam isso. Valiam-se do autoengano inconsciente para se proclamarem corretos. Pobres fidalgos sem nobreza!

Andei e andei, e pensei se, de alguma forma, usaria a máscara da mentira, pois já havia afirmado amiúde entre amigos que não mentia, e que a mendacidade era atributo dos fracos. Esse pensamento conduziu-me numa odisseia reflexiva sobre meu comportamento, meus defeitos, atributos e distinções. Conclui que era valente, correto, pacífico e que nunca usaria aquelas máscaras que aqueles forasteiros usavam no salão. Andei cabisbaixo meditando sobre o passado, o presente e o futuro, quando me deparei com um gigantesco espelho, de bordas douradas e como uma serpente nas laterais. O local do espelho estava apenumbrado e não pude ver bem meu rosto. Aproximei-me. Lado a lado com aquela assombrosa imagem de mim mesmo, notei que estava todo o tempo com a máscara branca e bipartida do autoengano, e que eu mesmo era só mais um mentiroso qualquer. Demorei a digerir aquele tapa de luvas no rosto, até compreender que quem mais enganei a vida inteira fui eu mesmo.

Desolado e sem reação, pus-me a correr em desvairo por todo o salão, procurando me consolar com as figuras que, de algum modo, pareciam em pior situação que eu. No salão das máscaras, a verdade alheia é despida sem pudor, ao passo que as nossas são ocultas pela variedade sorumbática e desalentadora de máscaras. O grande espelho era o único que revelava o que havia naqueles rostos sôfregos, e, por essa razão, vivia em completa solitude, como que em ostracismo social dentro daquele suntuoso palácio. Ah, que desespero devem sofrer os verdadeiros e ingênuos...

Anelante de deixar aquele lugar de verdades sórdidas e mentiras universais, procurei em vão a saída, porquanto o portão de entrada havia evanescido sem deixar rastros. Contentei-me em fitar a noite escura e empalidecida pela lua enevoada lá fora, num grande janelão igualmente faustoso, tal como era todo o salão. O silêncio da noite era sepulcral: o único som que podia ser ouvido era o soluçar preso de pessoas em desespero, abafado pelas horrendas máscaras. Pessoas que corriam pelo jardim abandonado, por entre as fontes cobertas de musgos e águas turvas acumuladas do relento e por toda a desolação que contrastava enormemente com o esplendor do interior do salão. Aqueles sofredores usavam máscaras de pedra, sem olhos ou boca, com apenas pequenos orifícios em suas narinas, de modo que o ar, obstinado a não entrar, precisava abrir caminha à força para satisfazer aqueles peitos angustiados. Não falavam idioma algum, ou se falavam, a máscara ,presa rente aos seu rostos, impedia que aqueles balbucios desalentados se transformassem em algo audível e interpretável. Soube, através da onisciência que me fora dada naquele dia insólito, que aqueles padecedores usavam a máscara do passado. Uma máscara fixa e inexpressiva, empedernida e sufocante. Diferentemente dos habitantes do salão, que frequentemente trocavam suas máscaras conforme as circunstâncias, estes morreriam se debatendo, como porcos entregues cruelmente ao abate, a fim de se livrarem de algo que já não mais lhes pertencia. Padecido com a visão mefistofélica de todo aquele teatro, corri de volta para o espelho e mergulhei no reflexo de mim mesmo, quando despertei em meu leito, e ao lado da escrivaninha, sobre o chão, um lembrete do que parecera ser um sonho: uma máscara estilhaçada.

UM VIKING DE ÓCULOS PERFIL DOIS
Enviado por UM VIKING DE ÓCULOS PERFIL DOIS em 01/10/2016
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