O chá e a alucinação

Sou amante da boa música instrumental, improvisações, modulações, aprecio isso. Contudo, na minha vida, gosto de tudo programado, detesto os contratempos. Já trabalhei muito, e quando o caso é minha diversão, procuro não perder festivais de Jazz ao meu alcance. Ouvir música é uma arte, tocar bem um instrumento é mais do que isso, é a mistura retórica em caminhos pouco trilhados, é aventura, delírio, sentimento, emoção, e muito mais coisas que não sei definir.

Onde moro fiz boa amizade com os poucos músicos desse gênero. As vezes são tão bons argumentadores em conversa comum como são improvisadores nos seus instrumentos. Conheço um guitarrista bem versátil. Faz música em muitos eventos, da gravação de rock em estúdios às baladas mais pobres e jingle comerciais. Vive do que toca, como outros da área que, estão condenados a viver do que cantam.

Além dos sons do jazz, sou apreciador de motos estradeiras e degustador de bom uísque. Viajo para o litoral, sertão, serras. Minha mulher sempre me acompanha. Ela já se acostumou e vai comigo. Nunca fomos hippies, nem bicho-grilo. Levamos vida calma. Reservamos hotéis ou pousada para esses eventos, descansamos, nadamos em piscinas, e nos alimentamos bem. Depois do ritual saudável e revigorante dos resorts vem a hora de ouvir o belo som e degustar o bom malte. Após o evento, dormimos e descansamos, para nos preparar para as atividades dos outros dias de festival. Só pegamos a estrada de volta quando estou sóbrio e bem descansado.

Sou bom ouvinte e não sei descrever bem o que venha a ser harmonia musical, consonância, dissonância. Sei pouco do significado de tudo isso, mas sinto o efeito dos truques sonoros. Nunca me dediquei a tanger instrumentos, e quanto ao ramo das criações artísticas sou apenas razoável anotador das minhas impressões quando as julgo interessantes.

O tal guitarrista meu amigo do qual falei e é bom conversador, chama-se Grilo, estudou música erudita desde menino, depois passou para o estilo popular. Veste-se de forma despojada e relaxada. Vem de uma antiga família interiorana, gente abastada da pecuária que acabou com a criação por falta de alguém para continuar as atividades do avô. Este não teve filho homem, e as duas filhas herdeiras não quiseram continuar aquilo de lidar com gado e administrar casa velha de fazenda e vaqueiros... Venderam tudo após a morte do pai, e vieram para a capital. O Grilo é filho de uma delas e teve oportunidade de estudar em bons colégios. Nele, o gosto pela música vem do antepassado avô, que além de pecuarista, era homem admirador das festas regionais. Parecia aqueles coronéis do cangaço, vi o retratão dele na parede. Porém, aquela pompa toda era só aparência, o velho tinha mesmo era coração de artista. Na sua fazendola, contratava sanfoneiros e cantadores no meio do ano e o pátio da casa virava palco onde os moradores da redondeza faziam o grande e principal arraiá.

O Grilo se formou em matemática, como não era dado ao ofício de professor e a música lhe atraía mais, fez estudos também nessa área e passou a viver da arte. A mãe ficou viúva e ele, filho único, continuou residindo com ela. Na juventude universitária esteve entre os que faziam protestos pelos desmandos do governo militar. Porém, não teve grandes arroubos, foi coisa branda e ele percebeu que lutar por aqueles ideais de salvação da pátria, não cabia bem no seu perfil de artista. Ia acompanhando pelos jornais e pela televisão o que se divulgava sobre o inesperado golpe, contudo não teve a temeridade que inspiram os metidos a heróis, foi deixando aquilo para os mais afoitos.

Os tempos mudaram muito de lá para cá, veio a democracia e com ela os desmandos e corrupções às claras. A situação é tão feia que nesse momento tem gente querendo que generais assumam o comando da nação outra vez, quem diria! Eu também nem me preocupo com esses azares dos tempos, sei dos protestos pelos noticiários e redes sociais, mas estou mais ligado é na boa escuta da minha música. O Grilo tem feito boas apresentações em festivais, é grande no que faz. Modéstia à parte, também tenho muito bom gosto e às vezes sugiro certos temas que ele de pronto acata. Sempre que posso acompanho os primeiros ensaios.

Estávamos nos preparando para o festival de jazz de Guaramiranga que acontece nos dias de carnaval. A novidade do trio era uma cantora potiguar que o Grilo havia convidado especialmente para a apresentação, porém a mulher não pôde cantar. Vou contar o caso por partes, pois nisso estão inclusos, a música que escolhi, a cantora e o rapaz da mesa de som.

A cantora era uma experiente intérprete, ex-integrante de uma banda gospel, mulher de quarenta, gordinha, séria, de voz média e forte. Estava nas noitadas há alguns anos e havia adquirido o hábito de ingerir uma dose de uísque caubói à guisa de abrideira. Até aí tudo bem, faço parte da confraria e não vejo mal nenhum nessa prática. No repertório estavam duas canções das de minha preferência, e uma delas, “Flying to The Moon”, nunca havia sido interpretada por ela.

Quem operava a mesa de som, era o Marquinho que é conhecido por Bebinho, mestre em equilibrar graves, médios e agudos, sujeito boa praça, mas meio bobo. Há momentos em que ele faz perguntas como se fora um débil-mental. Há nele alguma demência, pois interpreta e pensa que os outros pensam e sentem exatamente como ele no seu mundo. Há uma causa em tudo isso, é que o Bebinho já passou pelo álcool, pela canabis sativa e agora bebe um chá de cipó do Norte, que ele sempre traz de uma tenda do litoral.

Os primeiros ensaios haviam transcorrido sem incidentes. No último antes da apresentação, eu resolvi ir assistir. A cantora, ao me ver chegar parabenizou-me pela canção que eu havia escolhido e disse que estava muito emocionada, porém prometia fazer o melhor que pudesse. Não sei se na emoção de falar sem pensar, disse que estava pronta para o festival da serra, mas era pena que não havia naquele momento do ensaio, uma dosesinha de uísque para ela aquecer a garganta. Quando as coisas têm que acontecer, parece mesmo que há a contribuição da coincidência, é que eu havia passado no supermercado e trazia no carro duas garrafas da bebida. Sem dizer nada, pedi licença, saí e trouxe uma delas. Usei o copo de plástico do bebedouro e servi uma generosa dose à cantora. O ensaio final começou e estava sendo gravado. Tudo normal, entrosamento, temas, intensidade, solos, mudanças de andamentos, voz e tudo o mais,, que até me deu vontade de tomar uma dose também, mas me contive. Em se tratando de sensibilidade no campo das artes, sei que a emoção pode balançar alguém e o artista no seu natural não está isento de ser arrastado para um estado inesperado. Aconteceu que, depois de umas quatro músicas, meu telefone tocou, levantei-me e saí para atender. Quando voltei a cantora estava interpretando “Leve-me Para a Lua”. O Grilo havia mudado o andamento e alguns acordes estavam alterados. A cantora fazia pequenas incursões e esperava os solos. O inesperado aconteceu quase ao final da música. Nunca vi nada igual aquilo. A mulher largou o microfone e começou a exclamar coisas sem nexo, com uns olhos esbugalhados como que alucinada por alguma visão do céu. O trio parou e os músicos pasmos e em completo silencio ouviram-na dizer dentro do estúdio coisas assim:

- Eu creio sim em ti ó visão dos céus, entendo e rendo a ti minha submissão, abandono de uma vez por todas, essa maléfica arte de cantar coisas do mundo, e renuncio a satanás e aos seus atributos e incompatibilidades...

O delírio continuou por mais tempo e ela chegou a se ajoelhar. Fiquei sem entender aquele transe. Foi quando o Grilo largou a guitarra e se dirigiu a ela. Também cheguei perto e como é natural, fiz algumas perguntas sobre como ela estava e se podia explicar o que estava acontecendo. A mulher, no meio da fala que parecia um juramento a algum santo, ignorava nossas perguntas e suada derramava lágrimas. Depois levantou-se e como que desesperada fez menção de sair. Abri a porta, e por pouco ela não vomitou dentro do estúdio.

O ensaio acabou, o Grilo a levou a uma clínica e eu acompanhei o caso de perto. A cantora esteve sob observação, tomou soro, dormiu e acordou melhor. No dia seguinte fui ao festival com a minha mulher. O Grilo resolveu ir mesmo sem a cantora, pois esta decidiu que não participaria mais do evento. Imagino que a apresentação do grupo podia ter sido melhor ela, pois a atmosfera era muito boa, mesmo assim pude ouvir pelo menos o instrumental dos temas que eu havia proposto ao Grilo.

Não me saía da cabeça o acontecido no ensaio do dia anterior. Pensei que o mal-estar da mulher tivesse sido provocado pelo uísque, porém naquele dia bebi da mesma garrafa e não senti nada de estranho. Naquela noite lá na serra, encontrei o Bebinho da mesa de som, que estava vendendo discos no meio da plateia. Falei com ele e toquei no assunto do ensaio. Foi quando tive a explicação cabal de que o sacana estava bebendo o tal chá de cipó no momento do ensaio. Havia levado o líquido dentro de uma garrafa de água mineral e no momento em que saí para atender o telefonema, ela, que havia tomado todo o uísque que lhe servi, perguntou o que ele estava bebendo e o demente disse que era simplesmente chá. Ofereceu e ela não recusou. Pois ali estava a explicação, o tal chá de cipó do Daime foi o responsável pelo delírio e alucinação da cantora, vejam só!