Um simples caso de família

Havia umas certas ondulações entre mim e Verna. Estávamos um diante do outro, coisa de poucos centímetros, e os devidos acertos combinados para aquela noite não haviam sido ainda discutidos. Já estávamos desse jeito há mais de meia-hora, sem palavras. Pensei em ser prático e ela, provavelmente, não menos objetiva. Ficamos, no entanto, apenas nos analisando com terror, como se fôssemos duas pinturas bizarras, dois quadros colocados ali ao abandono. Verna tremia, e acreditei que fosse devido a uma lufada fria que entrasse pela porta escancarada do restaurante. Os pratos já estavam postos ao sabor, tão-somente, da formalidade. Nenhum de nós pretendia sequer tocar nos talheres. De súbito, moveu-se o braço de Verna e a mão delicada trouxe a taça com vinho aos lábios trêmulos. Uma lágrima ousou rolar, e acreditei que fosse se misturar à bebida. Ambos esperavam um do outro um primeiro pronunciamento. Era necessário dizer alguma coisa, e, calmamente, joguei as primeiras palavras.

- Pois é, Verna, a que resolução chegaste sobre as crianças?

Ela me olhou perplexa, depositando a taça sobre a mesa. Talvez não esperasse que eu dirigisse a questão assim de maneira tão direta; achou que eu faria algum comentário trivial sobre qualquer coisa; talvez quisesse um tempo para dar uma resposta mais precisa à minha pergunta e se desviou:

- Não estás com fome?

– Não – Respondi seco.

– Também não muito. Mas este vinho não é dos piores.

Calamo-nos. Sabia que se voltasse a insistir naquela pergunta terrível, assim de imediato, Verna sucumbiria. Mas já estava me sentindo mal na presença daquela mulher, de modo que não havia escolha.

- O que restou da casa? Pelo menos há portas ainda?

A pobre Verna baixou a cabeça e os cabelos ocultaram parcialmente a face. Olhou-me por cima dos óculos cor de caramelo.

- Bem, Wladimir, a questão não diz respeito a portas ou janelas, mas ao comportamento dos nossos filhos, que já ultrapassou a justa medida. Ontem, por exemplo, por pouco não tive um colapso. Fabiano dissolveu a parede do banheiro com aquela maldita mania de ficar se cuspindo.

- E quanto a Rita? O que andou aprontando, agora?

- Ah, não sei mais o que faço com ela! Decidiu trazer um novo namoradinho, mas estou preocupada com as conseqüências disso. Já é o quarto que ela mata em menos de um mês. Ontem, ainda, eu recolhia alguns ossos do desgraçado com a vassoura.

- Já os levou ao psicólogo? - Perguntei, acendendo um cigarro.

- De que adianta? Todos dizem a mesma coisa: “ah, dona Verna, isso é uma fase. As crianças estão crescendo, e essas descobertas são normais.”

- Entendo – disse, olhando-a com indiferença, enquanto acomodava as costas no espaldar da cadeira.

- Quero que tu entendas, na verdade, que talvez estes desajustes sejam devido à falta de um pai.

- Mas o que quer que eu faça, Verna? – contestei – Eu não serei mais vítima dessas excentricidades. Quando te disse para mantê-las na jaula, tu me chamaste de tirano, alegando que as crianças também se habituariam ao convívio humano. Agora, o pior: as paredes tombadas por Fabiano, Rita matando namorados. Daqui a pouco os vizinhos começam a reclamar quando perceberem suas propriedades devastadas. E queres agora que eu presencie tudo isso? Ora, Verna, um pouquinho mais de sensatez, por favor!

Verna comprimiu os músculos do rosto. Achei que teria um acesso. Confesso que senti um forte desejo de abrandar a dor daquela mãe e ex-mulher. Cheguei, mesmo, a demonstrar afeto, o que pareceu tranqüilizá-la um pouco. Mas não podia ceder. Voltei a ficar fechado. Não podia mais retornar àquela família. Cometemos o erro desde o início, quando saímos do deserto de nossa antiga pátria, a fim de tentar novas possibilidades. Chegamos a este país há mais de dez anos e, aqui, encontramos belas paisagens que se contrapunham à aridez daquele mundo já posto à extinção. Aqui, fomos recebidos por um povo hospitaleiro. Seria nossa última chance de um convívio social. Mas os gêmeos vieram um ano depois de nos estabelecermos, o que nos causou espanto e medo, quando, ao romper-se o casulo, brotaram duas crianças de uma só vez. Isso não era comum, talvez mesmo tenhamos sido os primeiros a gerar uma prole desta forma. Antevi um péssimo futuro, mas Verna procurou me tranqüilizar com o fato de sermos os únicos a receber tal dádiva e, dessa forma, seríamos amplamente abençoados. Criamos, então, aquelas criaturinhas com todo o carinho natural de pais. Mas ainda não tínhamos certeza de que seria a hora certa de colocá-los em contato com as demais crianças da redondeza. Daríamos nós mesmos a educação necessária para, pelo menos, puderem discernir a nova realidade que as cercava. Os primeiros sinais de aprendizado nos satisfizeram bastante, pois já tinham noção do que representávamos para elas, mas ainda não entendiam o conceito de bem e mal e, tampouco, quem elas eram realmente. Insisti para que este último ponto fosse trabalhado com insistência. Compramos uma jaula e, nela, nossos filhos iam absorvendo nossas lições. Até que Verna foi sendo tomada por uma devida melancolia ao ver nossos adorados bichinhos um pouco irascíveis. Por várias vezes brigamos. Tentava lhe explicar que tudo tinha seu tempo, mas a revolta foi tomando o lugar da tristeza...

– Que faremos, Wladimir?

– Não há mais o que fazer. As crianças assumiram a própria liberdade. Que função eu teria agora?

Verna estremeceu. Pôs as mãos no rosto e chorou. Mantive-me forte e resoluto. Acompanhei as lágrimas daquela mulher que perfuravam a mesa e se empoçavam no chão roído. Ela enxugou os olhos e foi se erguendo. Deixou um resto de vinho na taça e uma marca de tristeza na borda. Iniciou-se uma tempestade e as cortinas chicoteavam. Verna foi seguindo entre mesas e cadeiras viradas, até sumir-se de todo. Peguei na taça e tomei o que havia sobrado, enquanto os meus ouvidos consumiam o silêncio do restaurante.

Tom Lazarus
Enviado por Tom Lazarus em 27/07/2007
Reeditado em 04/08/2007
Código do texto: T582100
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