UNIDOS, ATÉ QUE...

Sentado na varanda, esperando o pôr-do-sol e a mulher. Todas as tardes essa era a rotina do casal. Ele chegava primeiro e ajeitava as cadeiras não sem antes colher umas flores e colocar no vaso em cima da mesa. Ela vinha depois e trazia duas chicaras de chá, rodelas de limão, mél, geléias e torradas. Antes de tudo, era obrigatório que se colocasse um Jazz suave, como música de fundo. Mesmo quando estava nublado ou chovendo torrencialmente. Nestas ocasiões, digamos sinistras, o casal se certificava, pelo jornal, da hora exata do pôr-do-sol e se recostava na cadeira imaginando-o. Nada mais fácil, além de interessante exercício de concentração. Aprenderam algo com isso, pois outro dia foram a um auto-cine abandonado e ficaram imaginando ver um filme. É claro que o filme já tinha sido visto inúmeras vezes e estava quase decorado, mas, mesmo assim, foi intenso. Saíram suados do episódio. O que esqueceram de contar, pois era omitido propositalmente de qualquer interlocutor que se dispusesse a escutar em detalhes esse episódio, é que fizeram amor no meio do filme. Apesar de não haver filme nenhum, como já dissemos.

Com o passar dos anos o casal se acostumou de tal maneira a imaginar até viagens, que mal sabiam distinguir os episódios reais de seu passado daqueles outros, os imaginados. Por vezes já não sabiam se o episódio tinha acontecido ou se tinha sido imaginado, mesmo que só parte dele. E qual parte terá sido? Quando? Realidade e ficção tinham se misturado de tal maneira que já não se sabia mais se realmente se conheceram um dia ou se um era a fantasia do outro.

Mas, enfim, Mirtes amava demais o Dimas e fazia-lhe todas as vontades e vice-versa. Certo dia, ele sismou que queria comer a jaca de uma frondosa árvore que havia visto na Ilha Bela. O nome da ilha já não deixa mentir e, realmente, mais parece uma ante-sala do paraíso. Conceituações e gostos pessoais à parte, para Mirtes essa estória de ante-sala não colava. Ela tinha ido na Escola Dominical quando pequena e sabia que se o paraíso tinha ante-sala esse cômodo era o purgatório. Para corroborar a sua teoria ela apontava o número absurdo e excessivo de borrachudos daquele lugar. Ninguém, jamais, a convenceu do contrário. Mas para Dimas, desta vez, não havia a possibilidade de se comprar um pedaço de jaca no supermercado e sair imaginando tratar-se da fruta daquela determinada árvore. Puro preciosismo, segundo Mirtes, mas fazer o quê. A única coisa que se podia fazer era comprar as passagens para São Sebastião e depois usar a balsa ou a lancha e aportar na ilha. Foi exatamente o que fizeram. Ao chegarem no Hotel, Dimas foi logo preenchendo a ficha em nome de ambos e pediu cama de casal. O porteiro estranhou, afinal só tinha uma mala, uma pessoa. Tudo bem o cidadão querer cama de casal, tem gente que é espaçosa para dormir, mas colocar dois nomes na ficha, isso lhe pareceu incomum. Sem papas na lingua, mesmo porque deveria prestar contas ao patrão, o porteiro perguntou: “a sua senhora chega mais tarde?” Dimas ficou surpreso, balançou a cabeça como quem não vê necessidade de explicar o óbvio e se foi para ocupar o número 214. No caminho já foi debochando do funcionário e quando chegou no quarto gargalhou a valer com o comentário da Mirtes, absolutamente pertinente e bem humorado. No dia seguinte, quando esperava sua amada para o café, Dimas encontrou um amigo lá dos tempos do primário, sim, ensino fundamental um dia chamou primário e ginásio. Descobriu que o amigo era dono de restaurante na Ilha faziam já muitos anos. Este, ao vê-lo, foi logo declarando seus pesar pela morte da Mirtes, também colega daqueles tempos. Dimas ficou revoltado: “a Mirtes não morreu! Ela está comigo, aonde quer que eu vá”... “Sempre”. O amigo desculpou-se e foi embora. Na saída comentou com o porteiro do Hotel: “amava tanto a mulher que não aceita a morte dela e já se fazem vários meses”. Mirtes aproveitou o ar da praia e dormiu até mais tarde. O que o casal não sabia era da missa em sufrágio de suas almas, que seus filhos e amigos mandaram realizar. Fazia exatamente um ano do horrível acidente ferroviário. O país tinha ficado chocado, imaginem a família, ao perder assim, dessa forma inesperada e absurda, dois dos seus mais queridos. Se soubessem, talvez tivessem ido. Afinal, a família toda reunida, hoje em dia, é coisa rara.

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 01/08/2007
Reeditado em 02/03/2010
Código do texto: T588018
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