A incumbência - (completo)

Aos 7 anos, Daremon levantava-se às 6 horas, chamado por seu pai Estilianos, para uma caminhada matinal. Estilianos dizia a seu filho que era para saudar o sol nascente e receber os primeiros raios abundantes de energia. Isso ajudaria no seu desenvolvimento tanto físico como mental. Daremon a tudo ouvia com muita atenção. Tinha por seu pai uma profunda admiração, respeito e muito amor fartamente recíproco. Os dois amigos, depois de algumas frutas saboreadas, caminhavam por uma estrada de terra entre várzeas e plantações de milho e soja. Pássaros encarregavam-se de proporcionar a trilha sonora para a ocasião.

Daremon sabia que quando seu pai se aproximasse de uma formação rochosa que ficava a uns 100 metros da estrada, lá vinha uma conversa que muito lhe despertava o interesse.

Escolhendo o melhor e mais confortável lugar para o filho, Estiliano encostou-se a uma grande pedra como se fosse uma poltrona.

Um silêncio sem ecos, se instalou.

— “Filho, daqui há 14 anos, você terá um sonho. Nele se apresentarão 3 portas fechadas. Uma delas, você deverá abrir. Mas não será com as mãos. A forma como irá fazer isso, estará encerrado no lugar mais nobre dentro de você. Escolhas... é só o que temos de concreto. A conseqüência é o que o torna forte para continuar. Ou não”.

Após essas palavras, Estilianos levantou-se com a flexibilidade quase atlética que sempre procurou manter.

— Vamos Daremon, nossa caminhada mal começou.

Um céu sem palhetas para descrevê-lo, cintilava. Ao longe, as duas silhuetas caminhavam pela estrada de areia tão fina como os sentimentos. Vez e outra, Daremon arriscava um olhar de alegria para o pai ao seu lado.

Eram dois a caminhar. Mas eram muitos os caminhos a serem percorridos.

Estrelada a noite o sono veio. Um sono sem sonhos. Um mergulho no mais profundo do pequeno Daremon restaurou todas as suas energias. Descanso justo para quem terá pela frente os dias dos anos que se seguirão.

Um dia após completar 14 anos, Daremon foi convidado por seu pai a encontrá-lo na habitual formação rochosa onde lá um especial presente lhe aguardava.

Enquanto caminhava ansioso em rápidas passadas a esse encontro, na mente de Daremon desfilavam idéias fecundas sobre o quê seria esse “especial presente de aniversário” que o aguardava naquela tarde de verão.

A poucos metros das rochas, lá estava sentado seu pai, recostado à mesma pedra como sempre fazia. Um aceno recíproco acelerou os passos de Daremon. Um abraço que mais do que um abraço entre pai e filho, foi um abraço fraterno entre duas almas abertas.

— Este seu presente, meu filho, é mais do que um presente. É um testamento atemporal.

Sem entender muito bem essas misteriosas palavras do pai, Daremon assentiu pleno de confiança de que se tratava de algo de muito valor.

Estendendo-lhe uma caixa de madeira de 35 por 25cm de largura suficiente para acolher um livro, Estilianos olhou fixamente nos olhos de Daremon que tocando-a com as mãos sentiu-a retida pelas mãos firmes do pai enquanto este lhe dirigia as palavras: “ Você pode abrir a caixa mas prometa-me que o conteúdo somente após minha morte. Prometam-me isso. Resista a curiosidade.”

O jovem coração bateu num rápido descompasso diante do que ouviu. Se recompôs recolhendo as mãos com a caixa, lentamente. O pai lhe sorriu e disse jocosamente: “Não pense que vai se livrar de mim tão cedo.”

Um sorriso tímido relaxou o semblante de Daremon. “Vamos, abra” — disse-lhe o pai.

Abrindo a caixa, Daremon encontrou um livro. Era o que suspeitava. Na capa escura estava escrito “Palavras do Fogo”. Fixou os olhos no título por um pouco de eternidade.

Fechou-a num impulso. Olhou para o pai esperando o que viria a seguir.

Voltaram os olhos para o entardecer. Na silenciosa vermelhidão daquele momento, abraçados, desceram até o caminho que os levaria de volta ao lar.

No caminho Daremon não resistiu e perguntou: “Pai, abrir esse livro tem a ver com o sonho das três portas?” A essa pergunta, Estilianos apenas olhou bondosamente para o filho. Daremom entendeu.

O inverno se iniciou. Com ele um frio impiedoso gelou as noites na região.

Na casa onde Daremon morava, havia um recanto muito especial: era a biblioteca. Nela, Daremon gostava de ficar desde pequenino junto com seu pai. Uma sabedoria inata tornava-o silente à concentração da leitura de Estilianos. Imitava-o mesmo sem ainda saber ler uma única palavra.

Mas agora a biblioteca transformou-se num recinto de aconchego onde os dois travavam longas horas de apaixonadas conversas.

Em uma dessas frias noites, se encontraram na biblioteca e se puseram a conversar.

Daremon, já com seus 19 anos, bombardeava seu pai com temas filosóficos, desenvolto e muito à vontade.

— O que é, e o que não é real?

— Realidade só existe se existir uma consciência para interpretá-la — Disse-lhe Estilianos.

— Com a minha consciência posso dizer agora que percebo objetos variados à minha volta. Posso me levantar daqui e tocá-los. Assim, direi convictamente que são sólidos, reais — Afirmou Daremon.

— O que lhe dá essa convicção são os sentidos. E esses sentidos só são sencientes porque há descrição registrada de cada objeto, de cada elemento antes de você tocá-los.

Um conjunto quase infindável de descrições formam como que cubos, peças, um grande Lego. O que é feito é que lhe é ensinado a montar com esse Lego, objetos seguindo interpretações previamente organizadas.

— Mas quem as organizou o fez partindo de que ponto de referência?

— A referência foi a consciência da limitação. Esse é o único ponto de referência que temos. A consciência está enfeixada dentro de um círculo limitado pelo conhecido. O que ela faz é forçar a expansão desse círculo catalogando e renomeando as várias interpretações, os vários Legos, diante do desconhecido, tentando dessa forma tornar o que é desconhecido um agregado ao seu limite. É a Ilusão uma falsa alusão à possibilidade de que através dos sentidos “construímos” a realidade. Esse desconhecido passível de tornar-se “conhecido,” é o velho jogo de remontagem possibilitado pelo Lego de nossos sentidos. Mas há uma possibilidade de “salto quântico” dessa limitação. E não é com os sentidos que isso será possível.

Nesse momento Estilianos parou como quem está aguardando uma manifestação de interesse do filho pela continuidade da conversa.

— E onde se encontra essa possibilidade? — Indaga Daremon sem titubear.

— O local onde se pode encontrar não difere muito do princípio da “caça ao tesouro”. Isso mesmo. Aquela brincadeira tão conhecida na nossa infância. Alguém escondia algum chocolate, pacote de balas ou outra qualquer guloseima e lá íamos nós ávidos e cheios do espírito de aventura pura no encalço do tão valoroso prêmio. Isso nos enchia...

— Pai, pai... desculpe interrompê-lo mas me parece uma referência tão simplória para explicar algo tão grandioso, enigmático como essa metáfora do “salto quântico”.

Estilianos, compreendendo o natural frescor do ímpeto juvenil, pausadamente esticou o braço para apanhar mais um pouco de chá do bule irlandês que havia recebido de sua amada Beatriz, mãe de Daremon, pouco antes de sua morte prematura. Após o gesto, deteve-se a observar o bule por alguns segundos virando-se em seguida para Daremon que captando a aura significativa do momento, baixou a cabeça respeitosamente num impulso reflexivo.

— Dê uma olhada aqui na base do bule, Daremon.

Daremon se aproxima do ponto indicado por seu pai e pergunta do que se trata.

— Olhe atentamente, Daremon. Procure observar com toda sua atenção e me descreva o que observa.

— O que vejo são esses detalhes finamente trabalhados formando arabescos clássicos. Me parecem simétricos galhos de uma planta. Sim, é de uma planta. É de uma roseira. Um exímio trabalho de artista, certamente.

— Você consegue perceber o que há próximo à rosa na ponta do galho?

O bule já então havia perdido a quentura máxima devido à baixa temperatura ambiente, o que permitiu a Daremon pegá-lo confortavelmente com as duas mãos e contorná-lo com atento olhar.

— Nossa! Isso aqui me parece um dragão expelindo fogo. Incrível! Como alguém pode esculpir tão minúscula figura nesse metal? E com tamanha riqueza de detalhes. Estou impressionado. E nossa! Ainda tem aqui o que me parece uma casa no alto de uma arborizada montanha! É realmente fantástico! O que é impressionante pai, são essas riquezas de detalhes tão minuciosamente trabalhadas. Quem é o autor desse magnífico trabalho de arte em proporções tão microscópicas?

Estilianos se recosta na poltrona e solta uma gostosa risada espontânea e dirige o olhar cheio de um brilho que parecia indicar o quanto estava repleto de uma energia contagiante.

— Daremon meu amado filho. Esse é o tesouro.

— Como assim pai? Não entendi. Isso tem ligação com o quê estávamos conversando sobre a metáfora?

— Pare um pouco e deixe-se pensar.

Daremon seguiu a indicação do pai e silenciou-se por alguns instantes.

— Você quer dizer que observar atentamente detalhes tão microscópicos, passados despercebidos, nos conduzem a esse salto de consciência? Seria isso?

— Pense mais um pouco, sem pressionar-se.

— Já sei. O autor. Quem é o autor de tamanha proeza criativa é o ponto chave.

Nesse instante o brilho nos olhos de Estilianos pareceu saltar em chispas por todo ambiente.

— Sim é isso! Exatamente isso. Não se sabe a autoria de uma obra tão rica. Você se desprendeu por algum momento viajando nos detalhes esculpidos e se esqueceu completamente de pensar na autoria. O que importa? Se você viesse a conhecer o autor dessa obra, faria alguma diferença no que você acabou de sentir? Você poderia até se decepcionar com sua aparência e personalidade. E se fosse alguém em andrajos e mal cheiroso? No entanto isso não alteraria a essência do que você percebeu. O que tem o poder de alterar essa essência é a sua atenção. Esse é o princípio do salto quântico: não há como se conhecer o autor da obra criada. Somente a atenção é passível de ser conhecida. E a atenção conduz à intenção. O ser humano passa o tempo de sua vida sofisticando metodologias para definir, para catalogar, organizar, brincar com seu Lego perceptivo com o intento de conhecer o autor daquilo que ele não pode explicar. E como não se pode encontrar explicação, criam-se conceitos que depois serão substituídos por outros conceitos e assim sucessivamente. Há algo que o homem nunca irá conhecer. E esse algo é o Autor. Por isso o que lhe resta é tão somente “saltar“ os degraus de sua atenção.

Estilianos parou de falar. Sentiu que era hora de interromper a conversa. Daremon ao se notar, percebeu que estava encurvado, sentado em cima de uma grande almofada no chão bem próximo a seu pai. Já se passava da 1h da madrugada. O tempo havia concedido um pequeno vácuo de eternidade naquele ambiente tão aconchegante e tão aquecido pela interação dos “dois amigos”.

Estilianos levantou-se dizendo a seu filho que subiria até o banheiro para preparar-se para dormir e que Daremon deveria fazer o mesmo. Afagou-lhe o cabelo e subiu.

Daremon continuou ali sentado ainda mergulhado em tudo aquilo que seu pai lhe havia dito. Um carroussel de idéias girava em sua cabeça quando foi interrompido por um barulho seco e pesado vindo lá de cima.

Correu apressadamente pulando de três em três degraus a escada chamando por seu pai. A porta entreaberta do banheiro mostrava Estilianos deitado no chão com os olhos arregalados. Um grito carregado e ofegante de Daremon preenche a casa. Corre até o móvel ao lado da cama do pai onde ficavam os remédios para o coração. Mãos tremulas e cegas, procuravam desesperadamente. Ao encontrar, volta correndo para o pai.

O tempo, senhor absoluto de todos os momentos, congelou o corpo de Estlianos, ali, no chão do banheiro. Daremon corre ao telefone para chamar a ambulância. Volta para o corpo do pai e se agacha para abraçá-lo. Um turbilhão de imagens das inúmeras vivências juntos, desfilam como um filme em câmera rápida por sua mente. Põe-se a observar atentamente o rosto daquele que foi a forja que moldou sua alma para ser como um aço forte. Não via mais um rosto e sim um semblante com linhas suaves. O que impressionava eram os olhos muito abertos. Sentiu que deveria fechá-los lentamente. Ao aproximar a mão para fazê-lo, algo lhe chamou a atenção. Os olhos de Estilianos possuíam um brilho estranho. Mais perto percebeu que o brilho era um reflexo. Uma onda gelada percorreu todo seu corpo arrepiando-o e deixando-o estático por alguns segundos. Na íris de Estilianos estava gravada uma imagem que lhe era muito familiar: o bule de chá! Como uma foto retida por um instantâneo, a imagem do bule era perfeita apesar do tamanho. De súbito uma idéia aparentemente mórbida passou pela mente de Daremon. Lembrou do que seu pai lhe havia dito em certa ocasião durante suas longas conversas: “Diante do inesperado fantástico, haja com a naturalidade de uma criança pura e destemida”.

Correu até seu quarto e pegou sua câmera de alta resolução. Colocou a lente de captação microscópica, respirou fundo, e tirou uma seqüência de fotos da íris de seu pai antes que a ambulância chegasse.

6 meses haviam se passado da morte de seu pai. Daremon, agora com 20 anos, morava sozinho, Recusou educadamente reiterados convites de familiares para morar com eles. Estlianos o havia instruído para sobreviver muito bem consigo mesmo caso houvesse necessidade. Algo que sempre ouviu de seu pai foi sobre a importância de conquistar autonomia de vida. “Nunca dependa diretamente de ninguém, meu filho. Isso tira a sua força moral. E força moral é muito mais do que simplesmente moral. É o que constrói degraus na escada da progressão de uma consciência. Indiretamente sempre dependeremos de alguém e alguém dependerá de nós. Um dia você precisará da ajuda de alguém da mesma forma que alguém precisará da sua. Essa interdependência faz parte de um processo natural. Mas saber qual direção tomar não pode ser determinado por uma “autoridade externa”. A autoridade está dentro de você”.

Navegando por essas reflexões, Daremon pensou em retomar a observação da foto que tirara da íris de Estilianos. Desde o triste episódio, não havia tido ânimo para estudar aquele incrível fato: os olhos de seu pai haviam “fotografado” um objeto como última imagem antes de expirar. ”Por que aquele bule?” — se perguntava Daremon.

Ampliou o máximo que pôde a foto que tirara para observar bem os detalhes. Um senso investigativo lhe retoma o espírito.

Olhou... olhou bem cada detalhe do bule e... o incrível se lhe apresentou. Notou que próximo àquela imagem do dragão haviam 3 traços verticais lado a lado.

De repente um sobressalto! Um estalo em seu abdômem sincronizou com uma claridade mental: eram as 3 portas que seu pai lhe havia dito que surgiriam em sonho após completar 21 anos! Faltavam apenas 2 meses para seu aniversário.

Viver em uma metrópole não era bem o estilo de Daremon. Mas enquanto avançava nos estudos, era esse o seu palco de atuação. Seu talento e sensibilidade voltou-se para a fotografia. Enquadrar instantâneos da realidade; capturar as cores das emoções; congelar perspectivas do infinito como se fossem sonhos guardados em uma caixa de sapato. A imaginação elástica de Daremon, se encarregava de expandir seus horizontes de vida. Pura herança deixada por seu pai.

A tarde crepuscular de sexta-feira energizava toda ansiedade de Daremon em partir para a casa de campo que herdou. Resolveu ir mais cedo, logo após sair da faculdade. Despistou os amigos com muito esforço de atuação teatral e se dirigiu rápido para a estação de trem. Os parentes mais próximos já conheciam e entendiam seus hábitos. Queria estar só como sempre gostou de estar quando para lá se dirigia. Havia uma razão muito importante para isso: sábado era seu aniversário de 21 anos.

Chegando à estação de Várzea de San Martin, desceu com sua mochila de lona grossa distribuindo cumprimentos aos funcionários da ferrovia que já o conhecia desde criança quando perambulava e corria pelas instalações acompanhado de seu pai.

Passou pelo primeiro portão giratório e ao se dirigir para o segundo que o conduziria para a estrada em direção à sua casa, pediu licença para um homem alto que quase impedia totalmente a passagem. Usava um casaco e chapéu preto, O homem pôs-se de lado e o cumprimentou com um leve gesto segurando a ponta da aba do chapéu. De soslaio observou um rosto extremamente expressivo com um “quê” familiar. O sujeito tinha o rosto fortemente marcado o que lhe conferia um aspecto duro; a cor dos olhos era de um verde intenso; mas o que mais lhe chamou a atenção foi o olhar. Um olhar enigmático e profundamente sério.

Passando pelo portão e sem olhar para trás pôs-se a caminhar rumo ao sossego, enfim.

A primeira coisa que fez ao chegar, foi tomar um bom banho. Após, preparou uma reforçada e caprichada refeição, estimulado pela fome. Deitou-se confortavelmente no sofá. Procurava manter-se o mais descontraído e espontâneo possível. Mas o hábito de roer a unha denunciava sua incontida ansiedade pela hora do sono. Desligou celular; tirou telefone do gancho. Colocou uma música suave. Sua predileta que considerou adequada para ocasião como essa, era Claire de Lune de Debussy que ouviu muito com seu pai.

Recostado às almofadas, refletia sobre qual seria sua incumbência na vida após a partida de seu amado pai. Sentia-se só mas ao mesmo tempo uma força dentro de si o impelia a seguir adiante pensando em projetos a serem realizados. A música foi envolvendo-o num relaxamento natural até conduzi-lo ao torpor dos sentidos. Adormeceu.

Um barulho seco e pesado vindo lá de cima fez seu corpo saltar do sofá e ficar retilíneo em alto estado de alerta como se tivesse treinado isso várias vezes. O suor escorria-lhe a face lisa e tensa. De imediato lembrou das palavras de seu pai: “Diante do inesperado fantástico, haja com a naturalidade de uma criança pura e destemida”.

Voltou ao controle de si. Sua respiração aos poucos retomou o ritmo cardíaco natural. As idéias agora estavam extremamente claras. Uma temperatura agradável e um clima seco dominavam o ambiente. Notou um absoluto silêncio. Procurou o relógio e não o encontrou. Foi até a cozinha para encontrá-lo. Alguma coisa lhe parecia muito estranha. Estava tudo muito sereno. Na cozinha, olhou para a mesa e viu uma caixa branca em cima.

Aproximou-se e abriu a caixa. O que viu causou-lhe um impacto forte na altura do externo: era o bule todo envolto em puro papel de seda branco. Brilhava intensamente como se tivesse sido lustrado a poucos instantes. Sentou-se à mesa e dirigiu a mão para apanhá-lo. Sua boca secou, seus olhos brilharam intensamente diante do que viu: suas mãos não conseguiam segurar o bule; elas o atravessavam. Quanto mais esforço fazia para agarrá-lo mais o nada suas mão tocavam — tal como uma miragem. Notou algumas gotas caírem em seus dedos. Eram suas lágrimas que rolavam. Sem perceber, estava chorando. Mas não era um choro de tristeza. Nem sabia por que estava chorando. Fechou os olhos e as muitas conversas que tivera com seu pai desfilavam uma a uma em sua mente.

O que isso significa? Por que o bule? Por que o bule?... repetia para si. Voltou a atenção para os detalhes daquele último olhar de seu pai. Deteve-se no desenho das três portas cravejado minuciosamente no bule. De súbito lembrou do barulho que ouvira e resolveu subir a escada para averiguar. Levou a mão aos olhos para coçá-lo e ao abri-los, um susto o fez perceber que já estava no corredor superior. Só então se deu conta que tudo aquilo era um sonho.

Manteve o controle e caminhou em direção à porta do quarto que havia sido ocupado por seu pai. Hesitou em tocar a mão na porta por achar que isso poderia transpassá-la. Ledo engano. O maciço da madeira estava intacto. Abriu-a lentamente. O som arranhou o silêncio. E arranhou também sua lucidez. Diante de si apresentou-se um pátio em estilo século 18. Parecia um átrio de um colégio. Seu corpo gelou quando adiante lhe surgiram 3 portas de madeira escura, todas fechadas. Eram rigorosamente iguais. De imediato veio-lhe à mente a predição de seu pai: “Filho, daqui há 14 anos, você terá um sonho. Nele se apresentarão 3 portas fechadas. Uma delas, você deverá abrir. Mas não será com as mãos. A forma como irá fazê-lo, estará encerrado no lugar mais nobre dentro de você. Escolhas... é só o que temos de concreto. A conseqüência é o que o torna forte para continuar. Ou não”.

Continuar ou não... continuar ou não... essa frase rodopiava na cabeça de Daremon. Qual porta escolher? E de que forma poderei passar por elas se não poderei fazê-lo com as mãos? Escolhas... é só o que temos de concreto.

Um odor desagradável desviou-lhe a concentração. Pressentiu uma presença. Seu corpo estremeceu, músculos enrijeceram. Virou-se de imediato. Quase sem ar reconheceu o homem de casaco e chapéu preto que estático, ali o espreitava com aquele olhar penetrante. O homem vagarosamente movimentou a mão direita para dentro de seu casaco. Lentamente e com um meio sorriso sarcástico no canto da boca, foi retirando uma reluzente adaga de grande porte. Apesar do momento de pavor que foi acometido, Daremon pode observar detalhes no punho da lâmina. Havia algo familiar esculpido. Algo que já parecia ter visto em algum objeto. Sim, era isso, um dragão! Um dragão...

Não deu tempo de pensar em mais nada. O homem avançou em sua direção com a adaga em punho. Daremon correu em direção às portas.

As mãos trêmulas tanto quanto seus pensamentos, de imediato agarraram a maçaneta... mas que maçaneta? Não havia maçaneta na porta. Aliás, em nenhuma porta havia. Um pensamento repentino, como um raio lhe iluminou a mente: “isto é um sonho e essas portas não me impedirão a passagem!”.

O resultado foi o encontro de dois corpos sólidos. Daremon, com o impacto resistente de uma porta tão sólida, voltou-se para trás. Parado estava o homem com a adaga próximo a seu pescoço. O medo o deixara paralisado. Conduzido às últimas conseqüências, resignou-se a uma entrega total.

Nesse momento, o homem com a adaga gritou-lhe bem próximo de seus ouvidos: “vou matar o que corroi a visão de tua alma, seu estúpido e ignorante!”

Uma delas, você deverá abrir. Mas não será com as mãos. A forma como irá fazê-lo, estará encerrado no lugar mais nobre dentro de você. Escolhas... é só o que temos de concreto. A conseqüência é o que o torna forte para continuar. Ou não”.

A lembrança acendeu como um sol dentro de si um nível de compreensão como nunca tivera antes: O lugar mais nobre dentro de mim se encontra antes das batidas do meu coração.

Esse fulgor perceptivo não o encheu de coragem mas libertou-o do medo.

Quando voltou os olhos para o homem com a adaga, o que viu, só não o matou de susto porque seu estado de consciência pairava acima das sensações. O rosto do homem de negro transformou-se no semblante sereno de seu pai que lhe sorria com os lábios fechados.

Um pensamento lhe ocorreu: “Eu sou a porta”.

“Pai... pai... “Tentou em vão chamá-lo. Estendeu as mãos para tocá-lo mas não haviam mãos. Abaixou a visão tentando encontrá-las mas apenas luz era o que existia. Levantou a visão e à sua frente o rosto já não era mais de seu pai, mas o seu. Calmamente observou que estava com os olhos arregalados tal como estivera seu pai quando do último alento.

Fez um ajuste de aproximação no foco de sua visão como se fora um zoom de uma lente fotográfica. E na íris de seus olhos, bem delineados seus detalhes e contornos, lá estava a formação rochosa, palco de tantas conversas profundas com seu pai. A imagem criou movimento. E uma silhueta caminhava pela estrada em direção às rochas. A silhueta parou e virou-se: era Daremon que olhara para trás como que pressentindo que estava sendo observado. Nesse momento não havia mais sonho, não havia mais realidade. Não havia apenas um homem que trilhava seu caminho, lúcido, desperto. Havia mais do que isso. Havia uma incumbência.

leandro Soriano
Enviado por leandro Soriano em 19/08/2007
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