Baltasar na Terra de Ninguém

Baltasar e a terra do sem esperança

Quando cheguei, fui lançado para fora do ônibus. Eu não lembro como foi a viagem. Dormi ou fui dopado durante o caminho. Eu também não sei de onde parti. Lembro apenas do dia em que eu vim parar aqui.

Normalmente uma viagem tem objetivo, uma missão. Não fui informado sobre o que eu deveria fazer nesta terra. É provável que eu tenha vindo obrigado, porque também não recordo do momento da deliberação.

Desembarquei e não tive nem tempo de perguntar ao motorista que lugar era este ou se eu deveria procurar alguém. Ele apenas fechou a porta e arrancou o veículo indiferente ao meu destino. Disse com o seu silêncio as seguintes palavras:

-Se vira...

Inicialmente fiquei parado por muito tempo no mesmo lugar. A justificativa que eu dava a mim mesmo é que era preciso conhecer mais sobre o lugar para poder explorar posteriormente. Mas, hoje eu reconheço que era apenas medo. O desconhecido parece esconder uma armadilha em cada rua nova que viramos e em cada nova porta que abrimos. É uma sensação terrível, como se monstros ou feras estivessem à espreita apenas esperando para nos devorar. Mas a paralisia também é ruim. Lhe devora aos poucos, só que por dentro.

O tédio e a imobilidade que eu vivenciei, não sei por quanto tempo, conduziam-me à uma realidade nefasta. Meu corpo ficava cada vez mais pesado. Raízes brotavam dos meus pés e penetravam a terra embaixo deles. Eu tentava mover-me e não conseguia. Aliado à isto, eu sentia vermes consumindo minhas entranhas e a minha força vital esvaindo-se.

Entrei num completo estado de letargia. Eu olhava para o vento carregando folhas de árvores e pedaços de papel e os invejava. Sem rumo, eles pelo menos estavam em movimento. As vezes até voavam. Pena que eu não podia fazer a mesma coisa. A minha vantagem é que mesmo sem saber para onde estaria sendo levado, eu teria consciência do processo no qual estaria imerso. Seria maravilhoso, eu pensava, descer, rodopiar, sentir o frio e o arrepio de todas essas revoluções. Até que isto deixasse de ser interessante e o império do tédio ser restaurado novamente.

Um dia, resoluto, decidi sair do lugar. Inicialmente, pelo fato de ter ficado muito tempo parado, qualquer movimento era dolorido. Algumas raízes que prendiam meus pés ao chão eu consegui arrancar com jeito e ficar liberado delas. Outras tive que cortar, pois já tinham alcançado uma profundidade razoável. Doeu muito, mas foi necessário.

Não me recordo o tempo que durou o processo de cortar as amarras e deixar o corpo preparado para movimentar-se por aquele estranho lugar que eu passei a habitar. Isso não importa agora. O importante foi que passou. Ficou só a lembrança ruim daquela condição que tornava as coisas piores ainda.

Para que não sabe aonde quer chegar, qualquer lugar está bom. Passei a pensar dessa maneira. E saí sem rumo em sem compromisso com um destino predefinido.

Como não sabia o que fazer, decidi copiar as pessoas. Observava o que elas faziam tentava repetir com o maior grau de fidelidade possível. Eu dançava, eu gritava, participava de contendas e escolhia qualquer um dos objetivos que estivessem disponíveis para as pessoas do lugar onde eu estava. Com isso, esperava sentir alegria no coração. Também ficava ansioso por reconhecimento, pois é isso que acontece quando fazemos as coisas que as pessoas esperam da gente. A reprovação é o contrário. E isso é muito faz a alma doer quando toma o lugar do reconhecimento. A punição para a reprovação é o esquecimento, o ostracismo e a solidão. Esta última é uma das piores dores que pode afligir a vida humana. Como toda dor, é um fantasma que nos assusta o tempo inteiro, e, por isso, fugimos dele de forma determinada, enquanto caímos em armadilhas mais perigosas ainda.

Certo dia eu percebi que, na verdade, eu apenas fingia quando tentava copiar e atender às expectativas de todos. Isto me cansava muito. Qualquer novidade, capturava a minha atenção apenas por alguns momentos. Em seguida vinha a ressaca ao saber que tudo não passava de simulação. É uma tarefa muito difícil, cansativa e enfadonha fingir que não se está fingindo. Só as pessoas com muita prática conseguem.

Para minha surpresa, percebi que todos ou quase todos que estavam na mesma terra que eu também fingiam. Vi homens cegos simulando ver a luz do sol. Vi pessoas bebendo café amargo enquanto diziam experimentar mel. Vi o ódio vestido e mascarado com a face do amor. Vi a inveja usando as roupas da admiração. Enfim, percebi que todos naquele lugar mentiam em algum grau.

Eu tentei avisar para algumas pessoas, mas logo notei que elas não queriam conversar sobre isso. Parecia dolorido e desconfortável o assunto do fingimento. Algumas agiam até de modo agressivo. Percebi, que da mesma forma que eu, no fundo eles sabiam que mentiam para si mesmos e para os outros. Mas não tinham opção. E, depois, eu as entendi. Olhar para a realidade também não me agradava, porque ela tinha uma cara muito feia. A sua fealdade era tão acentuada, que eu fica triste toda vez que eu tinha que olhar para ela. Ela também é chata. Nos enche de responsabilidades o tempo inteiro. Nos constrange, nos deixa sem desculpas e sem ter a quem culpar. Enfim, nos coloca em uma condição de impotência.

Depois desta constatação, resolvi que era melhor para mim e para os outros ficar em silêncio. Mas cometi um erro. Silenciei demais. O suficiente para chamar a atenção por não participar da simulação.

Fui descoberto. Então uma assembleia foi organizada para discutir a minha situação. De acordo com os líderes da sociedade local, eu havia cometido um sério delito. Ao recusar-me a participar da farsa, eu desrespeitava os princípios e as verdades que davam sentido à vida de todas aquelas pessoas. A condenação foi rápida. A conclusão que chegaram foi a de que as pessoas que agiam da maneira que eu agia, deveriam morrer.

Considerei a pena um exagero, mas nada que eu já não esperasse. Quando espalhou-se a notícia de que eu era diferente, passei a ser tratado com ódio e desprezo. Os maiores fingidores eram os mais revoltados.

Vi nos olhos dos acusadores oficiais que eles sabiam que eu não havia cometido crime algum. Eles perceberam que eu notei. Conversamos em silêncio enquanto nos encarávamos. O mais velho entre eles ainda cumprimentou-me com escusas:

- Sinto muito. Alguém tem que servir de exemplo para que a ordem seja mantida.

Não respondi. Não adiantaria nada. Aprendi que toda coisa vil ou nefasta pode ser feita desde que haja uma boa justificativa para fundamentá-la. Seria inútil defender-me. Seriam invocadas bibliografias, argumentos, princípios, tradições e mais uma horda de fortes motivos para mostrar que eu estava errado. Só restava a mim aceitar, com resiliência, o funesto destino que decidiriam.

O veredito foi dado. Eu deveria ser queimado em uma fogueira para aplacar a fúria dos seus deuses e fazer a multidão sentir-se vingada pelo fato de eu ter me recusado a encenar o meu papel naquele grande teatro.

E assim aconteceu. O tablado foi montado. A multidão ansiosa pelo espetáculo reuniu-se à minha volta. Cada líder discursou e foi ovacionado pelas pessoas que não entenderam sequer uma palavra do que eles diziam. Cumpriram-se os protocolos e os ritos necessários. A cerimônia até que foi bonita, tirando o momento da expiação.

Acenderam a fogueira. Inicialmente engoli muita fumaça. O desconforto só não foi maior do que o calor das chamas sobre a minha pele. Eu estava já para sucumbir quando o mesmo ônibus que havia me levado até aquele lugar parou atrás do tablado. O motorista desceu, libertou-me das amarras e disse:

- Vamos. Chegou a hora.

Confuso, e ainda atordoado com a experiência da qual participara a pouco, ainda perguntei forças para perguntar:

- Vamos para aonde?

- Não sei. Apenas precisamos ir.

Então embarquei no ônibus. As portas fecharam-se e, depois desse momento, nunca mais tive nada a dizer.

Rafel Dias Jr
Enviado por Rafel Dias Jr em 13/11/2017
Código do texto: T6170837
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