A NAMORADA MEZZO-SOPRANO

Custou-me cerca de quinze minutos acreditar em sua existência, tempo suficiente para vê-la passar pelo corredor, projetando-se como uma miragem, desertando todo o resto - feita pela aguardente, talvez!? Afinal, como podia ser tão linda naquele lugar de novos aspirantes a intelectuais malcuidados? Deveria sim, estar em uma faculdade particular, declaro que assim pensei , assumindo aos recônditos da mente meu preconceito para com pessoas bonitas. Passou levando consigo todos os olhares, seguidores voluntários, não obstante, foram também os olfatos, mártires obrigados a seguirem aquele seu cheiro bom de samambaia molhada, e meus sentidos estariam com ela até hoje se um amigo não lha tivesse chamado para devolvê-los. Os meus e os dele. Fomos apresentados.

Eu, um pícaro, aluno de filosofia frente àquela pele nórdica e busto saliente, ignorei todos os Sartres lidos até então, preparando-me para priorizar, quiçá, quimeras relativas ao Rick Martin. Entretanto, qual não fora o desespero do meu preconceito ao ouvi-la comentar com euforia ter lido duas vezes e fichado “A idade da razão”, livro que,no momento,lia. Voltei a munir-me de intelecto e descobri: gostava de literatura, movimento expressionista, existencialismo, filosofia, mas a música prevalecia no topo com seu violoncelo e o canto coral. Bom, exclamei. Soprano? Não.Contralto? Tampouco. Estava de frente à dona de uma tessitura intermediária de voz e quando se é mediano pode-se ser e deixar de ser o que quiser ao bel-prazer. Dar agudos e graves, ainda que pouco intensos, mas possíveis para a mesma pessoa. A condição das nuances melífluas e amargas. Era mezzo - soprano.

Tornamo-nos amigos de conversas filosóficas e trocas de partituras, mas intrigava-me o fato de aquela que tinha por um “achado” não ter um namorado. Perguntei-lha o motivo e me veio qualquer resposta resignada musicada no “MI” apaixonante de sempre. Suficiente para tomar a iniciativa de aceitar seu convite para vê-la cantar. Aquela bela voz e suas entonações conseguiam a façanha de obstruir até suas formas.

Ouvi-la pedir-me o que fosse, de um lenço a um livro, de uma opinião a um beijo, de uma carícia a ficar ali, somente com ela, fora formando uma canção agridoce aos meus ouvidos e , à medida em que fui solfejando, ficava grave , oitavas abaixo e , sem que me desse conta, faltava as aulas para ficar com ela , afastei-me dos amigos, já vivia em torno de seus humores, suas inconstâncias doces e fortes, graves agudas que saltavam bruscamente de uma para outra. Dedicava-me a pensar em seus gostos, seus caprichos, queria namorá-la, só não sabia com qual de seus lados.

Investi em minha morte moral. Estávamos juntos há um mês e tornei-me um dependente emocional dela. Ela me dizia tudo que eu queria ouvir, elogiava-me, era criativa, ardilosa, inteligente, beijava como ninguém. Fui ficando cada vez mais envolvido. A adorava tanto que fiquei cego às suas crueldades de fazer-me ciúmes, preferir as amigas, ignorar-me às vezes, sair sozinha, listar meus defeitos com uma dose de sinceridade e impulso, querer terminar alegando que não a completava e depois me ligar para esperar o ônibus com ela. Eu ia. Eu fui, sempre fui e iria. Já não era mais um homem, já não me conhecia mais em seus braços. O que tinha aquela mulher, meu Deus, perguntava-me já sabendo a resposta. Havia na faculdade quem me alertasse, mas não havia má fama, por isso sempre ignorei. E se houvesse, não faria diferença para mim. Ainda que em nossa relação nada mais restasse de carinho , que ela só me usasse, me traísse, terminasse comigo para com outros ficar, como o fez. Sim, fez tudo! Ficara ao meu lado abusando de seus tons, fez-me crescer, de fato, no entanto usou de meus melhores dias, meu carro, dinheiro, pensamentos e , finalmente, pediu para terminarmos. Deixou-me de vez. Disse-me querer superara decepção, estar sentida, mas eu sabia que estava bem . Nunca estivera mal.

Em uma coisa temos de convir, embora me doa o peito, o bolso e a cabeça: habitamos a fúria das cidades grandes. Sopranos são delicadas, contraltos, firmes, mas sob o ponto de vista contemporâneo, somente as tais mezzos-soprano parecem desfrutar plenamente das nuances e arquivam seus romances sádicos antes que algum homem que a desdenhe por sua beleza sem conhecê-la o faça. Não faltou-me dicas, nem teorias a respeito.Deixo todos os homens em alerta, de sobreaviso, porém como um bom existencialista, mesmo sofrido, sigo cético às lendas urbanas e suas justificativas, e assim , ainda mais suscetível a ser novamente uma vítima.

(LENDA URBANA)