O pintor

Aqui perto de casa morava um pintor muito competente. Não era o único, mas, pelo menos, era o mais competente em desenhos à mão.

Especulava-se a história de que havia começado sua profissão numa cidadezinha ao lado da nossa, fazendo letreiros para pequenos comércios. Depois, quando veio para o nosso lado, aprendeu, sozinho e por necessidade, um outro nível dentro do seu trabalho. Então, de repente, tornou-se o melhor.

Mas, quando digo "tornou-se o melhor", refiro-me a sua grande desenvoltura nos benditos desenhos à mão; falo apenas disso, e ainda não estou narrando a benção (ou maldição) que recaiu sobre ele. Aliás, depois dela, o homem achou a mina de ouro e estacionou o seu burro na sombra. Claro que mudou de vida. Atualmente nem sei onde mora. E só o vejo quando ele aparece em algum programa de televisão contando um pedaço da história, o que é bem recorrente.

Sem mais delongas, a história, mas a verdadeira, começa em dois mil e quatro, quando o pintor foi contratado para um serviço ao qual se encaixaria perfeitamente bem e ainda ganharia sobre ele uma deliciosa grana. Seria preciso desenhar apenas uma paisagem, uma bela campina, para ser exato; um cenário de fazenda, com cercas e um imponente alazão mostrando-se em uma cavalgada pomposa. O desenho ficaria em uma parede da sala de jantar da casa de um homem bem criterioso e mesquinho.

— Em quanto tempo fica pronto? — perguntou o dono da casa com sua voz grossa e superior.

— Como a parede é grande, senhor, acho que em cinco dias — respondeu o pintor.

— Não consigo esperar... Preciso da sala para uma comemoração em família. Quero que termine em quatro dias. As tintas estão todas aí. Se aceitar, pago um pouco mais.

O pintor, como em outras oportunidades já foi dito, era o melhor para o serviço, e ele mesmo sabia que se recusasse, no fim o dono da obra não teria outra escolha e se dobraria para o tempo maior. Mas, por outro lado, o pintor ouviu muito bem a parte do dinheiro a mais e sentiu-se dentro da necessidade de aceitar o desafio.

— Pode deixar, senhor — disse ele.

Como ainda era cedo, o pintor iniciou seu trabalho naquele mesmo dia. E como a sala de jantar já estava desocupada e a parede, depois de analisada, foi considerada apta a receber tinta, o pintor não tardou em fazer logo a primeira mistura para a camada branca de fundo. Depois de pronta e seca a parede, afastou-se amigavelmente dela e iniciou seu processo de imaginar o desenho.

— Vai ter o mato baixo...meio verde, meio castanho...a cerca passando aqui...o céu limpo, fácil...não é necessário uma casa grande...e por fim o cavalo no meio do quadro. Perfeito.

Depois de muito tempo gasto, e ficando na obra para além do expediente comum, no quarto dia, no derradeiro, enquanto o pintor terminava a crina majestosa do pescoço do alazão, tão delicadamente, pois a tinta era escura e havia muito branco a sua volta, o estridente e perturbável telefone da casa tocou em meio a um silêncio sepulcral e a mão do pintor tremeu. No mesmo instante ele fechou os olhos, por medo e pavor. E quando os abriu, segundos depois, havia uma gota robusta de tinta escura sobre uma imaculada nuvem branca. E o telefone? Tocou e tocou, até parar sozinho.

— Droga de telefone! Olha o que fez? Olha essa mancha...Que morra o desgraçado que ligou...

E foi então que aconteceu o inesperado. Misteriosamente, aquela gota escura e robusta de tinta desfez-se num risco fino e comprido, esticando-se horizontalmente pela parede. E como se não bastasse, o risco, depois de pronto, organizou-se rápida e magicamente em um conjunto de palavras em letras garrafais: "Você matou alguém". O pintor, vendo a cena, arrepiou-se dos pés à cabeça e fez dezenas de sinais da cruz.

Instintivamente, afastou-se da parede, mas não podia tirar os olhos dela, apesar de apavorado. Então permaneceu encarando aquelas letras por algum tempo.

— Você é o demônio? — perguntou o pintor.

De repente, as letras reorganizaram-se em uma nova frase, bem maior e mais intensa: "Você também terá um fim, pintor. E ele ocorrerá quando a história verdadeira for contada".

Muito depressa o pintor tomou seu celular e acionou a câmera na função vídeo. Mas quando apontou para a parede, não pôde capturar toda a cena. Ficou registrado apenas um amontoado de letras unindo-se, magicamente, e tornando-se uma pequena gota escura, para logo em seguida desaparecer da parede.

Entretanto, esse pequeno registro foi o suficiente para fazer com que o pintor corresse pelos programas de televisão e contasse sobre o "sinal divino" que lhe ocorrera. Em um desses programas o vídeo foi analisado por um grupo de técnicos e julgado autêntico. Depois disso o pintor foi muito mais aclamado e perseguido pela mídia, que já o chamava de Detentor do Sinal.

Claro que em nenhum momento ele contou a verdadeira história. Ficou rico às custas de uma vida, uma pobre vida inocente, que sem saber de nada, ligou para a casa do patrão naquele dia só para falar com a mãe. E eu, a mãe, a pequena empregada e agora a mãe infeliz, ouvi e presenciei tudo. Mas por acaso fui errada por cumprir uma ordem? Fui errada ao obedecer ao meu patrão e ficar de olho no pintor? Me desculpe, se você que lê, me acha uma má pessoa. Mas acontece que meu filho morreu e não voltará mais. E eu, uma pobre empregada, aprendi a ler e a escrever só para te contar a verdadeira história. Enfim, matei o pintor.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 04/01/2018
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