NADA DURA PARA SEMPRE

NADA DURA PARA SEMPRE

A velha senhora já estava pensando mesmo em comprar outro guarda-roupa, aquele que estava no seu quarto foi comprado logo que começou a montar o enxoval para se casar, nele guardou todas as roupas, os lençóis, as fronhas, colchas, as roupas de uso diário e as íntimas do casal. Não estavam mais lá os pertences do falecido marido, não tinha motivos para guardá-los, às vezes as lembranças eram caminho para a tristeza e a constatação da solidão.

O espelho na parte interna da porta era seu confidente, era ele quem lhe dizia se ela estava bonita e lhe ajudava a decidir qual roupa usar, a passar o batom e o talco perfumado nas axilas.

Aquela lagartixa macho já vivia por ali há algum tempo, quando o falecido ainda era vivo ela corria perigo de vida, o velho achava que se a lagartixa perdesse a cauda era sinal de azar, mas a velha nunca a incomodou e ela ficou tranqüila depois que ele se foi, assim ela deixou de correr o risco de perder o rabo e manteve a possibilidade de se defender. Encontrou no vão do piso do velho guarda-roupa o espaço perfeito para passar o dia e aguardar a noite, quando a velha senhora acendia a luz do quarto e as mariposas e outros insetinhos apetitosos que vinham do mato ficavam voando ao redor da lâmpada até se cansarem, eu acho. Na realidade, nem sei por que eles, às vezes, pousam nas paredes ou caem no chão, aí era a hora do bote e pronto, mais um na barriga – lagartixa que vive dentro de casa tem a cor meio creme, quase transparente, dá até pra ver o conteúdo do interior.

Até que numa manhã a porta do guarda-roupa soltou dos pinos e foi cair justamente no dedão do pé da velha que chegou a ver estrelas. Ela ficou tão cheia de raiva que resolveu mandar todas as recordações para o espaço e pela última vez pediu a opinião ao espelho que mesmo tombado não se negou a ajudá-la mais uma vez a se pentear, se pintar e devolver-lhe um sorriso de aprovação. Sempre aprovava, não tinha muito que fazer, assim pelo menos ficava com o moral elevado.

Antes de sair para comprar um armário novo, pediu ao faxineiro do prédio para quebrar o velho guarda-roupa e jogar os destroços na praça à espera do lixeiro, que na certa não iria gostar de ter que carregar aquele monte de madeira inútil, incluindo a moradia da lagartixa macho, que pega de surpresa, nem teve tempo de procurar outro local para ficar, até porque não sabia o que estava acontecendo. Como todas as suas roupas e outros utensílios ficaram jogados sobre a cama, a velha senhora fez questão que o vendedor mandasse entregar e montar o novo móvel no mesmo dia.

Pobre lagartixa! Teve que abandonar, lamentosa, o aconchegante fundo de armário, bem de acordo com as suas conveniências, receosa de um destino ainda mais cruel, a fogueira por exemplo. Mas logo encontrou uma fenda entre dois paralelepípedos que orlavam um canteiro onde vivia bem ao centro um pé de abricó-de-macaco. Escolheu um local em que batia sol pela manhã, assim não sentia muito calor. À tarde, do outro lado, sem a proteção das folhas da árvore, a pedra esquentava tanto que era impossível sobreviver ali, dava para sentir as patinhas queimando só em caminhar por elas.

Ela tinha que mudar seus hábitos, para enfrentar essa nova vida de lagartixa de rua, pobre coitada, caseira, despreparada para a vida de indigente, longe da fartura a que estava habituada, teve que mudar inclusive os alimentares após o inesperado despejo. Contentava-se agora com formigas, ácido fórmico não tem um gosto muito bom, aranhas, baratas (achava que não ia tentar comer baratas), se ainda fossem aquelas pequenininhas, francesinhas, que viviam lá no sobrado, talvez até tentasse, mas essas asquerosas da rua, do esgoto, arhg! Grilos e outros insetinhos estranhos ia fazer o possível, não podia era morrer de fome. Começou a sonhar em comer uma borboleta, às vezes apareciam umas mosquinhas pretas, mas só quando algum animal fazia cocô ali nas proximidades e enquanto ele não secasse.

A lagartixa macho notou que a sua pele antes creme-claro passou a mudar a tonalidade e ficou mais escura , agora era cinza bem escuro com alguns pontinhos brancos, bem de acordo com o seu novo ambiente. Assim, a própria natureza pelo fenômeno do mimetismo estava lhe dando uma mãozinha para se proteger. Até que ela gostou, deu um aspecto mais viril, só que meio vagabundo, brejeiro, morador de rua. Agora tinha que ficar mais esperto e essa nova cor veio a calhar, senão acabaria virando comida de alguém. Ele tinha receio de tudo, não estava acostumado àquele ambiente, achava meio promíscuo. E se aparecesse algum animal, ela não sabia se existia, cujo prato preferido fosse lagartixa, a natureza é tão rica, nesse mundo existem coisas que você nem imagina. Na ocasião adicionou mais um à sua lista de medos, andava com um receio danado de virar petisco de urubu, aquela ave enorme, preta e feia e fedorenta, asquerosa, que ela viu comendo os restos de um cachorro que se aventurou a atravessar a rua e foi atropelado. Se o urubu come carne podre, imagine os pulinhos de satisfação que ele daria ao ter no bico uma lagartixa limpinha, recém abandonada na rua.

Acabou aquela moleza de dormir tranqüila durante o dia e à noite era só partir pro banquete certo. Agora, por força das circunstâncias, teve que fazer uma mudança radical, tanto no que se refere ao horário quanto à qualidade da comida. Tinha que sair à caça durante o dia, à noite, no escuro, os insetos ficavam lá em cima voando em volta da lâmpada do poste, quando tinha lâmpada, claro, e ela, pra piorar a situação, tinha medo de altura, adquirida num dia em que ela estava lá na parede do quarto da velha prestes a saltar sobre uma mosquinha apetitosa quando bateram a porta com tanta força que chegou a estremecer a parede, aí não deu outra, foi direto pro chão, ficou quase uma semana mancando de duas patinhas, uma na frente e outra atrás, chegou a emagrecer porque teve que se contentar com aqueles bichinhos que caiam no chão. Além do mais tinha uns pássaros estranhos que passavam voando por ali, próximo à lâmpada quando começava a escurecer, era melhor não se arriscar.

À tardinha ainda apareciam alguns mosquitinhos que ficavam voando rente à grama. Eles tinham um aspecto apetitoso, mas a boca da noite amedrontava e ele também tinha medo de se aventurar porque começavam a voar por ali aqueles pássaros esquisitos e uns morcegos que ele não sabia se gostavam de comer lagartixa, portanto resolveu “ficar na dela” e não explorar muito aquele novo mundo. Ah! Como sonhava com aquele ambiente em que morava antes! Mas nem tinha idéia de como voltar pra lá, nem sabia onde era, além do mais, imagine uma lagartixa atravessando uma rua. Daquele ambiente só restou um pedaço do espelho do guarda-roupa que refletia o colorido do sol quando ele se despedia, mas nem isso durou muito, logo a sua superfície ficou embaçada e suja de resíduos de terra espalhados pelos pingos de chuva e de titica de passarinho, até que deixou de ser um espelho por não conseguir mais refletir.

A vida ali era mais agitada, sem aquela monotonia do quarto da velha, cheirando a perfume barato. Quem dera poder voltar a sentir nas narinas aquele perfume que agora seria bem agradável e inspirava segurança, sentir aquele cheirinho de novo, até da naftalina, humm! Um monte de espécies diferentes, perigo a toda hora, cachorro fazendo xixi, pior seria levar um pisão do dono do cachorro e perder o rabo, isso até que daria pra contornar, seria só por uns tempos, felizmente a lagartixa tem essa capacidade de refazer a cauda, é a autonomia caudal, assim, se alguém pisar no seu rabo ou estiver na iminência de virar comida de pássaro ou outro animal qualquer, larga o rabo à disposição dele que ele acaba por se contentar em comer a cauda que fica lá se debatendo pra chamar sua atenção enquanto ela fuge com o resto do corpo. Depois de algum tempo ela nasce novamente, felizmente assim eu perco a cauda mas não perco a vida. Uma vez aconteceu comigo, eu nem sabia disso, mas de repente pulou um gato lá na janela do quarto e eu tomei um susto tão grande que o meu rabo se soltou e ficou lá se mexendo, eu corri pro forro do armário, pensei que ia ficar cotó, aí ele começou a crescer novamente e eu fique satisfeita. Falando nisso, no outro dia eu conheci uma minhoca, a princípio eu pensei que tivesse encontrado outra lagartixa, porque ela anda de modo parecido com o nosso rabo se debatendo, mas era a minhoca, coitada virou comida de pardal.

Quando chegou a primavera a lagartixa macho começou a sentir um cheiro diferente, na verdade era um perfume delicioso que vinha do alto da árvore , do pé de abricó-de-macaco, sentiu-se totalmente atraída por aquele aroma agradável e decidiu que iria descobrir de onde ele provinha e então se aventurou a escalar o tronco. Foi aí que seus olhos bateram na coisa mais linda que ele já tinha visto na sua existência , a linda flor que aquela árvore tinha o dom de produzir, bem diferente daquelas flores de plástico, sujas de cocô de mosca espetadas numa jarra que ficava em cima da penteadeira do quarto daquela senhora em cuja casa antes morava. Então ele se deu conta que nunca tinha sentido nada no que diz respeito a gostar de alguma coisa, de uma outra lagartixa, por exemplo. Na realidade, onde ela morava nunca viu outro animal de sua espécie. Nunca tinha pensado nisso, mas também nunca se preocupou.

Agora que vive em outro ambiente ela tomou conhecimento que existe sexo, macho e fêmea: pombos, cachorros, grilos, gatos, que circulavam ali pela praça e até se acasalavam pra gerar filhotes ela tinha até dúvidas de como as lagartixas perpetuavam a espécie, ela nunca tinha visto uma lagartixa fêmea ou será que ela não era macho ou se não era nem uma coisa nem outra, como as minhocas que se reproduzem por regeneração do corpo, se elas se partirem formam-se novos indivíduos a partir de cada pedaço, apesar de que são hermafroditas e se reproduzem também por troca de espermatozóides e precisam de outra para esse processo. Ela prefere pensar que se reproduz por regeneração, na hipótese de não existirem lagartixas de sexos diferentes, até porque o processo de regeneração do rabo é parecido. Bem que ela gostaria de se deparar com uma outra lagartixa de sexo diferente do seu, de alguma forma ela ia notar a diferença apesar de ela não saber qual, se não for aparente visualmente a natureza sempre se encarrega de fornecer os subsídios necessários. Uma outra minhoca apareceu por ali no outro dia, melhor, não sabe se era uma ou duas porque entrava por um buraco e saía por outro ou entravam ou saiam de dois buracos diferentes.

Bem, ela se deu conta que estava apaixonada por aquela flor lindíssima e resolveu que ela seria sua fêmea e passou a viver ali, abraçadinha com ela a maior parte do tempo. Mas aquele tempo de paixão foi curto, porque a bela flor começou a murchar e numa manhã incitada por um ventinho mais forte as pétalas se desprenderam e caíram no chão. Restou à inconsolável lagartixa carregar o que restou da sua flor sem vida para o seu ninho, assim ela poderia continuar aquecendo o seu corpo mesmo depois de morta.

Dias depois, justamente no lugar onde estava a bem-querida flor começou a aparecer uma estrutura que parecia um ovo e a lagartixa macho, agora tinha certeza que era, ficou muito feliz porque achava que ia ser pai e passava os dias examinando a evolução de sua cria, pior que o trabalho era em dobro tinha que fazer o papel de pai e de mãe pra cuidar do pobrezinho que já ia nascer órfão. Depois de um tempo ela ficou muito preocupada achando que algo tinha dado errado, problema talvez provocado pelo cruzamento de espécies diferentes, mais que espécies, estruturas biológicas diferentes.

O motivo da preocupação foi que o “ovo” começou a crescer muito, já estava enorme, com uma casca grossa e áspera marrom-claro. Estava muito preocupada com o filhote que sairia de dentro daquele ovo gigante, anômalo, uma aberração com certeza.

A pobre lagartixa começou a ficar com muito medo daquilo tudo, achando que tinha provocado um dano à natureza se desviando do curso normal estabelecido para cada espécie pela miscigenação e resolveu não subir mais na árvore. Lá de baixo ela via aquela bola enorme pendurada e se martirizava por na ânsia de perpetuarem aquele belo sentimento de amor ela e sua linda flor acabaram por gerar aquele monstrengo e começou a desenvolver um complexo de culpa por ter contribuído para alterar o processo natural das coisas, pela perversão que ela praticou, com o que, pela sua falta de escrúpulos , pela depravação e sua inexperiência, acabou por provocar o desvio que não sabia o que poderia causar.

E foi numa hora dessas em que estava distraída em suas lamentações que não percebeu que o fruto se desprendeu do caule e se arremessou para o chão, esmagando contra o solo o infeliz animalzinho, cujo rabo se soltou e ficou lá, inutilmente, por cerca de um minuto, se debatendo para tentar salvar-lhe a vida pelo mecanismo de defesa que a natureza lhe reservou.