Leituras incompletas...

Tive acesso franqueado à biblioteca particular de meu Embaixador Jorge de Sá Almeida por quase meio ano, quando ele se ausentou de Jacarta para o gozo de umas férias acumuladas, visitas de ofício e de espairecimento e, naturalmente - como ele salientara em seu pleito - realizar exames de saúde no Brasil ..."conforme é curial, em razão da insuficiência dessa atenção na capital indonésia".

O ano era 1979 e eu experimentava minha primeira missão no exterior. Escolhera o posto - ao qual muita gente relutava. A proposta original era de um serviço provisório de 12 meses, que satisfazia as necessidades da Administração da Secretaria de Estado, e liberava finalmente o chefe para as suas carências ..."curiais".

A caminho do aeroporto, que era ainda o antigo Halim Perdanakusuma, e que, anos mais tarde, viria a se converter mais tarde em base aérea, em consequência da construção de instalações vistosas, mais funcionais e em maior conformidade com a fascinante arquitetura do arquipélago, Sua Excelência buscou tranquilizar-me sobre a longa encarregatura de negócios que eu teria pela frente, sem contudo muito detalhar, e menos ainda mesoclizar - muito embora sua redação e seu discurso fossem modelares. Demais, tinha os reclamos das atenções da Excelentíssima esposa, Dona Carmen, da filha prendada e casadoira e da cadelinha Tigra que, farejando a separação iminente, crescia em indocilidade.

Era uma bela e funcional propriedade a mansão que servia de Residência aos Almeidas, embora de acesso relativamente complicado, no bairro de Kemang, a parte mais baixa de seu terreno, era também suscetível a inundações sazonais, que poderiam, no mínimo, afetar a prática do mini-golf de seus ocupantes, com o risco adicional de encher a casa de pererecas.

Vamos às leituras: percolei muitas lombadas chamativas mas me fixei inicialmente foi num livrinho de formato de bolso, de cujo título até me esqueci, mas o seu conteúdo amarrou-me ab initio. Era a história de um jovem estudante que sentia-se crescentemente desafiado por não acompanhar o ritmo de crescimento físico de seus colegas, e que até se auto-punia por aquele descompasso. Com as meninas, então, o seu suplício só fazia se agravar, e cada vez mais se angustiava e se isolava o pobre coitado.

Um raio de esperança surgiu no ano letivo seguinte quando, entre novatos na turma, apareceu uma graciosa garota com dilema similar, aparentemente. A solidária fusão de ambos foi espontânea e rendeu frutos e furtos que só Cupido pode oferecer, entender, e estender.

Mas até certo ponto, contudo, pois de repente, não mais do que de repente, a cumparsita, em quem tantas esperanças botava, deu um espichão e o nosso herói foi sentido como se estivesse tentando agarrar água pelos dedos, medos e degredos...

Do último encontro que tive com o então aposentado Embaixador Sá Almeida, coisa de 20 anos atrás - eu estava então lotado no Consulado em Londres, onde ele costumava passar alguns meses de cada ano em companhia de outra filha que lá residia, a casadoira estava casadinha em Paris - cheguei a mencionar-lhe essa minha curiosa leitura em sua biblioteca e ele, já sem o élan de seus gloriosos dias em Jacarta, referiu-me ao fim trágico que sua biblioteca tivera numa inundação...e não na pluviosa Jacarta, mas sim, of all places, na Árabia Saudita, onde a caixa d´água no teto desabara, sem no entanto ferir mais que a cultura ocidental.

E tu leitor, leitora, amigos, se eventualmente souberdes do fim dessa história, ainda que inglória, rogo que mo contem... e nem precisa ser em alto brado, pode bem ser baixim, baixim...afinal, a vida é mesmo axim...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 20/02/2018
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